Insistia o relógio na parede: desista, homem!
A manhã sobranceirava à ruína da caneta embotada há tempos.
Imerso num oceano de sem-ideias, o gramático se rendia à evidência:
“Não consigo escrever... Logo eu?”
De fato, descobria-se engaiolado entre velhas regrinhas endurecidas da palavra. O rigor afetado e a gramatiquice quase não o deixavam pensar. Tinha ele a mania de concordar com tudo, tropeçar em vírgulas, falar quase que soletrando. Como todo homem-nalgas, elevava a metáfora à potência logarítmica e se enfurecia com o desrespeito às conjunções; mas daí a detestar a liberdade “quase imoral” dos poetas? “Necrófilos!”, afirmava.
Escrevia, escrevia, escrevia... direto ao cesto de papel. Nada o contentava. Nada, nem significado nem significância.
Naquele dia, porém, desbastou-se em sua mágoa vernácula. Pegou o caderno repleto de imbróglios de norma culta e, suspendendo-o à janela, pôs-se a sacudi-lo, furioso, esparramando toda aquela gramaticagem no jardim, até deixar suas páginas completamente em branco. Por outro lado, a grama, agora adjetivada, estava verde, linda, sublime e viçosa.
Em sedição contra o dogma, gizou, na parede mesmo, um círculo que chamou de “ó”. Afastou-se, estendeu o braço e o polegar, fechou um olho, voltou à parede. Ladeou seu “ó” de letrinhas imbricadas e ponteou, ponteou, ponteou finalmente. Alucinou: enquanto o mundo gira, somente as estátuas ficam paradas. Na parede, apenas:
“Oras. Oras. Oras.”
* Extraído de Os Acangapebas e publicado em O POVO em 2009
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