segunda-feira, 24 de setembro de 2018

"Ciúmes", de Raymundo Netto para O POVO



“Eu também amo a sua mulher!”, afirmou Padilha, o seu melhor amigo, numa sinceridade brutal, quase desumana. Honório, mais ébrio do que uma adega, duvidou dos próprios ouvidos, recusando a crer naquela despropositada revelação. Silenciado, largou o copo no balcão e partiu para casa, encontrando a esposa a esperá-lo na sala, acolhendo-o como uma Pietá. Jogando a cabeça tonta em seu regaço, compartilhou o acontecido. “Que cretino... e na minha cara, Madalena! Ele está pensando que sou o quê?” Ela sussurrou ao seu ouvido: “Calma, paizinho. O que importa é quem eu amo: você. Só você.” Então, sovado por beijos da amada, foi deitar. Porém, Honório teve pesadelos: “Madalena não... Ela não! É minha. Só!”. Pela manhã, ainda doía-lhe o juízo. “Como pôde, minha filha? Nós éramos tão amigos. Ele vivia aqui em casa. Olha no que deu.” Ela nada dizia. Pegou-lhe a mão e a beijou, suave e apaixonada. “Esqueceria”. Mas ele não se esqueceu. Pelo contrário. Daquele dia em diante, entranhado de ciúmes, determinou-se a perseguir o seu rival, que, de fato, nem se esforçava para sê-lo.
Nos bares e no trabalho, Honório encontrava amigos em comum e não perdia a oportunidade de contar a desfaçatez “daquele sujeito”. Eles diziam não acreditar e se mostravam solidários: “Sentir uma pontinha disso ou daquilo vá lá, mas confessar assim, na cara do marido, é uma insanidade.” O certo é que, depois, cada qual com seu motivo, vez ou outra lhe segredava: “Vi a Madalena hoje. Estava com o safado do Padilha.” Ele enlouquecia e ligava dali mesmo para tomar satisfações com a esposa, à sombra de um meio-sorriso do alcaguete. Ela, a princípio, calmamente, dizia ter sido um acaso. “Ele também estava lá e mal nos cumprimentamos. Ele nos respeita, amor.” Honório, ferido, não se convencia: “Não quero saber de você em tititi com esse ordinário. Com qualquer um, mas com ele nunca, ouviu bem?” Isso aconteceria outras vezes. Assim, quando a mulher saía de casa e não lhe dizia o destino, ligava anonimamente para a secretária dele e perguntava: “O Padilha está? Tem certeza? Vai passar a tarde aí?” Mas se ele ali não estivesse, era batata: “Foi ao encontro dela... cachorro!” Começou a exigir que a mulher só saísse após lhe contar e bem contado aonde iria. Ela, já bastante incomodada, mas sem querer piorar a situação, dizia, e ele logo questionava: “E ele vai estar lá? Tem chance de ele estar lá?”
Também na cama, quando não se saía bem, explodia: “É o Padilha. Deve ser praga. Quando penso que aquelezinho pode estar agora se imaginando com você, tocando em você, isso me acaba, minha filha... eu não presto!”
Nas ocasiões sociais, dominado pela sua neurose galopante, se Honório o visse chegar, segurava, a ponto de machucar, a mão de Madalena. Chegasse perto, ele a arrastava. E se ele ousasse apenas olhar para ela, de imediato, ouvia: “O que foi? Não vê que esta senhora está acompanhada?”
Madalena não cabia mais de tanta vergonha e humilhações. Não queria mais sair de casa, não ia às compras, deixou de trabalhar, trancava-se no quarto, desgostosa até de olhar pela janela, pois decerto ouviria: “É ele que está aí fora? Se eu o vir, o quebro de pau!”
Após meses de angústia, enfraquecida, definhou a olhos vistos e, sem ter nem para quê, morreu!
No velório, mais do que tristeza, percebia-se uma ansiedade do viúvo. Estranhamente, perguntava a todos o tempo inteiro: “E o Padilha, ele não vem? Ele já chegou? Cadê o Padilha?” Adiou por horas a missa e o enterro da mulher na esperança da iminente e aguardada chegada do suposto amante que, por fim, não veio.
Do cemitério mesmo, sem dar ouvidos ao conselho dos amigos, correu à casa de Padilha. Bateu-lhe à porta desesperadamente. Quando ele o atendeu, surpreso, ouviu de Honório: “Padilha, você está bem? Não está doente, sentindo-se mal?” “Não... eu estou ótimo, claro. Por quê?” “Por quê? Cara, e que diabo de amor é esse seu, hein?”
E caiu num pranto inconsolável, esparramando-se em soluços no ombro do cúmplice amoroso.


domingo, 23 de setembro de 2018

Rádio Nova Brasil FM 106,5: Música brasileira de qualidade!


Agora em Fortaleza, Nova Brasil FM 106.5, 100% música nacional, repertório escolhido a dedo (e bom ouvido). Mais um motivo para você ficar coladinho no seu rádio, no carro, em casa, no escritório, na hora daquela caminhada... Abra as portas de seu coração e SE LIGUE na FM 106,5 que é NOVA BRASIL!

Rádio AlmanaCULTURA: "Assinado Eu", de Tiê




Para assistir ao vídeo:



Já faz um tempo que eu queria te escrever um som
Passado o passado, acho que eu mesma esqueci o tom
Mas sinto que eu te devo sempre alguma explicação.
Parece inaceitável a minha decisão. Eu sei.

Da primeira vez quem sugeriu, eu sei, eu sei, fui eu.
Da segunda quem fingiu que não estava ali também fui eu.
Mas em toda a história, é nossa obrigação
Saber seguir em frente, Seja lá qual direção.
Eu sei.

Tanta afinidade assim, eu sei que só pode ser bom.
Mas se é contrário, é ruim, pesado e eu não acho bom.
Eu fico esperando o dia que você me aceite como amiga,
Ainda vou te convencer. Eu sei.

E te peço, me perdoa, me desculpa que eu não fui sua namorada,
Pois fiquei atordoada, faltou o ar, faltou o ar.
Me despeço dessa história e concluo: a gente segue a direção
Que o nosso próprio coração mandar, E foi pra lá, e foi pra lá.



quarta-feira, 19 de setembro de 2018

"Tardes no Observatório: Histórias de Fortaleza" (20.9)



Tardes no Observatório: Histórias de Fortaleza
Narrativas sobre a cidade e memórias compartilhadas.
Roda de Conversa: “Fortaleza em Quadrinhos”

Convidados:
Eduardo Pereira
Diretor da Biblioteca Municipal Dolor Barreira
Daniel Brandão
Quadrinista, ilustrador, arte-educador e empresário
Raymundo Netto
Quadrinista, designer, escritor e produtor cultural

Convidados Debatedores:
Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult)
Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (SecultFOR)
Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude

Quando: 20 de setembro de 2018, das 14 às 17h
Onde: Observatório de Fortaleza (Prefeitura Municipal de Fortaleza)
(rua Major Facundo, 584, Praça do Ferreira)

O que é o Observatório de Fortaleza:
É o ponto estratégico de uma rede de conhecimento voltado à produção, difusão e acesso à informação sobre políticas públicas, gerando confluência de ideias, promoção de diálogos e intercâmbio de experiências com a sociedade. Ele busca influenciar as transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e científicas, qualificando a governança municipal e contribuindo para tornar Fortaleza uma cidade mais acessível, justa, acolhedora e criativa.

sábado, 15 de setembro de 2018

"Oswald do Barro Barroso: desventuras e desencaminhos", apresentação de Raymundo Netto para "Menino Amarelo", de Oswald Barroso



Mundo, mundo, vasto mundo, ah, se ele se chamasse Raimundo e tivesse nome de flor. Mas, não. Ele era feito de barro, do barroso resto da criação do mundo, mundo que trazia em seu nome, como um rei, “Rei Mundo”, e que assistia, moleque e nu, cercado de passarinhos, tijubinas e calangos, o curso melancólico de um descuidado berço Pajeú.
Alheio a esse ainda estranho mundo, nosso herói, um menino amarelo, magro e empombado, fincava seu universo em uma casinha de motor de puxar água, fortaleza pessoal da solidão, na qual planejava seu futuro e contava a memória de seu caminho, moldando sonhos de barro em caixas de fósforos, com pedaços de palito de picolé e hastes de flores. Um mundo de encantamento, o seu teatro da vida, que aqui entra em cena nesta enfeitada e descartesiana publicação. Aliás, aos 5 anos, foi aqui, no palco do José de Alencar, que Mundinho estreava no teatro.
Sim, era o que todos já sabiam: ele tinha pressa! Queria vir a este mundo, vasto e perverso mundo, e por promessa nasceria e seria Raimundo e “feito um pequeno deus, entre ritos, risos e batalhas, criou-se”: dona Albinha, “Nâna êite mim”, “Nâna êite mim”.
Em Menino Amarelo: as desventuras de um rei desencaminhado, o pentalógico Oswald Barroso debulha a história do menino Raimundo Flor – qualquer semelhança é mera coincidência –, retratando, assim mesmo, feito um grande álbum de retratos, suas histórias e as histórias de seus ancestrais, mesmo os mais longevos e dantescos, de sua família, de seus amigos, de seus amores, de seus lugares e impressões, de suas saudades e dores, como se a puxar, sossegado pelo cordão, um caminhão de madeira com molas de flandre, em um caminho de terra, com gosto de terra, da nossa terra.
O menino, filho de dona Alba, uma genealogista inata, e de seu Antônio, que assegurava: “Se me perguntassem (quem ousaria?)/ qual o maior poeta  do mundo/ o que sofreu na carne a dor da poesia/ responderia apenas: infelizmente, eu!”
Neto de dona Alda e de seu Luiz, de dona Nenén e de seu Theodorico, o Tidico, como era chamado, e que partiu ao som da canção de rádio, como despedida, cortando o seu coração de menino: “Eu sei que em breve, muito em breve morrerei, por esse mal que me tortura o coração. Já não suporto mais viver sem teu amor e vim me despedir nessa canção.”
Antes mesmo do Moacyr das 7 mortes, Raimundo Flor havia de conhecer a morte na pele bovina de Flor do Campo, depois pelo cachorro Fly e, por fim, pela irmã, a pequena Diana, perda irreparável de dona Alba, primeiro e eterno amor do menino. Um garoto que descobria o mundo pela janela de trem, que precisou até tirar quebrante de mau-olhado, que tinha medo do mar aberto, da força das ondas, das pancadas d’água nos paredões de quebra-mar, que tinha medo dos medos. Que detonava bala em penico, eternamente assombrado pela figura de um boi holandês, com argola de ferro no focinho, preso, esmurrando o chão e cavando a terra em fúria. Um pequeno cabo eleitoral de um pai candidato a nunca eleito. Menino que se deliciava doente com maçã, marmelada e guaraná com biscoito ou com a novidade da merenda na escola: o sanduíche de pão com doce de goiabada! Que aguardava em casa na fila do banho “talco, pente, sabonete, toalha, sapato, tamborete”. Que subia na caixa d’água a pensar no desconcerto do mundo, lançando letras ao sol, saudoso a rememorar: os passeios no zoológico da Cidade da Criança, a sorveteria da Loja de Variedades, as vitrines do centro, as matinês do Cine Rex, o cordão das Coca-Colas, o bloco dos bombeiros e das Marietas, o maracatu, o corso de automóveis no carnaval, os circos montados na praça da Faculdade de Direito, a Procissão dos Passos, os bondes, os cata-ventos, o acendedor de lampiões em noites sem luar, o sereno dos teatros, a Noite de Violas com o Cego Aderaldo na Casa de Juvenal Galeno, a festa de São Sebastião no Ipu, as retretas da praça da Lagoinha, a irradiadora do padre Caubi, o Grupo de Pajens de São Luís, o Grupo de Escoteiros da Aldeota, as sessões do Clube de Cinema do Ibeu, as histórias contadas na beirada de rede pela Non, índia do Ipu, cria de sua avó Alda, dos quintais repletos de frutas (manga espada, atas, goiabas, seriguela, maracujás) e tantas e tantas outras suas, mas poderiam ser também nossas, lembranças e aventuras retratadas com detalhes de quem talha a cinzel esse Ceará de curumins e curuminhas.
Entretanto, na obra não há só doçura e encontros, mas amarguras e desencaminhos. Ela, aquela mulher, a cigana, um dia diria a seu pai: “Esse menino fará uma grande figura, terá grandes aventuras, mas muitas penas.” Foi ou não foi, Raimundo Flor?
É quando o caminho de uma Rural desgovernada se encontra com o sonho de nosso beque central, camisa nº 3 do Fortaleza – embora seu coração fora Ferrim –, e o desperta para o “Risco Vermelho” que se inicia.
Menino Amarelo é uma surpresa alada, um mergulho profundo no coração, uma punhalada de saudades, uma torrente de emoção. É um voltar para casa paterna, deitar-se no colo seguro, é a reunião à mesa da família, sem a incerteza de um futuro, pois ele... já chegou!

Raymundo Netto
Escritor, editor, amigo e admirador de Raimundo Oswald Barroso

A partir da semana de 17 de setembro, a obra poderá ser encontrada nas Livraria  Arte & Ciência (no Benfica, av. 13 de Maio, 2400, e no Centro, na rua Major Facundo, 594), na Letra L (na av. 13 de Maio, 2383, Benfica, quarteirão da Reitoria da UFC) e na Livraria Lamarca (av. da Universidade, 2475, Benfica)

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

"Talento", ensaio sobre escrita criativa por Pedro Salgueiro

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Um escritor importante (não lembro se Flaubert) afirmou, certa vez, que o talento, na verdade, não passava de uma longa paciência. A frase ficou rodopiando em minha cabeça desde então, muito mais pelo que ela deixa de dúvida, desconfiança, do que pelas gotas de certeza que traz em suas entrelinhas. 
Já nasceria o artista com uma dose genética, inata, de talento? Uma sensibilidade diferenciada, uma maneira própria de ver o mundo, um ângulo qualquer meio enviesado de perceber certas coisas que a maioria dos mortais não é capaz? No meu modesto entender, acho que "sim" e que "não". Explico: o artista já nasce com essa sensibilidade especial (não diria jamais que ela seja superior) de ver "certas" coisas de um ângulo, digamos, não (ou pouco) convencional. Mas perguntaria: e apenas essa sensibilidade diferenciada seria suficiente para o suposto artista desenvolver com êxito sua arte? Outra pergunta que me persegue quando penso sobre o assunto: somente uma criatura com essa tal característica seria capaz de se desenvolver como artista? Aí que entra a resposta "não", que veio junto com o "sim", um pouco atrás. 
Acredito que mesmo um escritor "naturalmente" talentoso, cheio de "inspirações", não vá muito longe se não tiver toda uma carga de trabalho. E aqui lembro que "trabalho", para mim, não significa apenas o ato em si de escrever, reescrever, lapidar. Mas, bem antes disso, o ato de ler (muito e bem), pensar (muito e bem), ter curiosidade e coragem para aprender sobre "coisas" as quais, muitas vezes, não estão obrigatoriamente e diretamente ligadas à ação imediata de escrever; dialogar com os textos lidos dos grandes autores, os que encontraram suas próprias soluções artísticas, mas, obviamente, não para imitá-los apenas, e pode não conseguir escrever uma grande obra.
A nossa história literária, mesmo o nosso meio artístico contemporâneo, está cheia de exemplos: artistas, que, por um motivo ou outro, deixam de obter êxito em seu ofício. Já outros tantos escritores, mesmo não tendo essa "facilidade" toda do "bom talento de berço", conseguem, através de esforço, dedicação, enfim, do suor de seus corpos e mentes, desenvolver obras importantes, competentes, de mestres, até. 
Trocando em miúdos, acredito que ocorra na arte o que, muitas vezes, vemos acontecer no mundo do futebol. Vou tentar justificar comparação tão esdrúxula. Muitas vezes, acompanhamos aquele jogador visivelmente talentoso, de bom drible, boa habilidade, mas, que, no final da carreira, não consegue uma reputação de craque. Mil também são os motivos que o impedem ou dificultam seu êxito. Por outro lado, quantas e quantas vezes, acompanhamos aquele jogador de qualidades técnicas apenas medianas, mas que, com uma dedicação grande, uma concentração incrível, não consegue muitas vezes ombrear (vejam o caso de jogadores como Vavá, em 1958, Amarildo, em 1962, Dunga, em 2002, e diversos outros) em êxitos com os grandes mestres do gramado? O que não significa que preferimos o jogador esforçado ao craque, claro que o craque esforçado, preparado e num bom time, conseguirá chegar aos píncaros da glória. 
Entremeando estas categorias de craques desleixados, medianos esforçados e craques dedicados está a maioria dos nossos escritores contemporâneos: os sem (ou com poucas) habilidades que não se esforçam. Esses enchem o mundo de livros, escrevem com uma "facilidade" espantosa, exploram o "talento fácil" até a medula, se vangloriam de seus já quase 50 livros.
A maioria de nós (me incluo com unhas e dentes nesta categoria) é dos que levam jeito pra coisa, tem certa habilidade, mas sabe que se não ralar, se não ler muito, se não for curioso, se não dedicar-se com afinco ao ofício, sucumbirá sem ter alcançado sequer o primeiro degrau do êxito. Por sermos maioria, ficaremos a vida inteira lutando com revisões, remendos nos textos, leituras dos mestres, correndo que nem loucos atrás de editoras, que parecem (sempre) correrem bem mais que nós.
Outro assunto que às vezes me vem à cachola é o da originalidade. Sabemos, e acho que a maioria concorda, que pouquíssimos são os artistas realmente originais, que criam algo inteiramente novo. Aparece um ou dois em cada cem anos (pessoalmente acho que um pouco mais, levando-se em contas as diversas artes) e passam a ser imitados por séculos e séculos. São os Dante, Camões, Fernando Pessoa, Proust, Faulkner, James Joyce, Virginia Woolf, Kafka etc. da vida. Pois bem, depois vêm os imitadores, diluidores. Ou será que mesmo um diluidor, imitador, pode chegar a desenvolver melhor do que o criador aquele "tipo novo de arte"? Será que Clarice não foi (sem querer ofender, claro, os claricianistas de carteirinha) uma imitadora do irlandês Joyce? Um amigo diz que ela deve mais a Hermann Hesse. E daí se tiver sido, se ela tiver partido daquela inédita ideia de literatura e pensado, sonhado em cima e conseguido dar sua contribuição pessoal importante, que, mesmo sem ser totalmente inédita, será necessária e terá novos diluidores, que pululam por esse mundão afora. Mas será que o conhecimento humano, a arte em especial, não será uma grande diluição, imitação, continuação; novos pontos de vistas sobre os mesmíssimos caminhos? Quantos de nós, prosadores modernos, não devemos um tiquinho a Kafka, que deveu a Robert Walser, que deveu a... Quantos de vós, pobres contistas modernos, não devem um tantinho a Borges, que deveu a Marcel Schwob... Quantos não devem um neologismozinho que seja a Guimarães Rosa, que deveu a Joyce, que deveu a... Quantos romancistas não devem a Proust, que deveu a Montaigne, que deveu a... Quantos contistas cearenses não devem um tiquinho a Moreira Campos, que deveu a Tchekov, que deveu a... Acho que estaremos sempre tentando subir um degrau, pouquíssimos conseguirão ir além do modelo, do que inventou o "novo". Imagino que, no fundo do fundo, somos todos uns imitadores, uns diluidores. E ainda bem! Mas claro que todos devemos tentar ir além, dar uma contribuição pessoal em sua arte, tentar uma fresta nova na porta, um ângulo nunca antes utilizado, um efeito distorcido na frase, uma sonoridade sugestiva no verso, enfim: ousar encontrar uma voz própria. 
Também ando matutando sobre se nós, escritores, devemos mesmo ter um estilo próprio, inconfundivelmente pessoal, a ponto de que alguém que nos leia saiba logo de quem se trata. Algo assim como a nossa marca registrada. Alguns grandes autores adquiriram uma maneira de escrever que, de tão peculiar, se tornou inconfundível. Uma crônica de jornal de Clarice Lispector é facilmente reconhecida, mesmo que se omita o nome dela. Um poema de Fernando Pessoa (qual deles?, perguntaria alguém mais atento) poderia não ser tão óbvio. Franz Kafka é outro quase inconfundível em suas parábolas. O alemão W.G. Sebald e o italiano Claudio Magris, para quem conhece minimamente suas obras, também são inconfundíveis. Mas talvez a canadense Alice Munro e a escocesa Ali Smith não sejam tão facilmente descobertas. Dalton Trevisan desenvolveu um tipo de enredo que dificilmente não se descobre de quem é o conto. Rubem Fonseca, idem. José J. Veiga nem se fala... 
Mas penso: Cada livro, cada conto, cada poema não exigiria (seria melhor falar "não necessitaria de") uma maneira própria de ser escrito? Acho que "sim" e "não" também. "Sim" porque alguns escritores muitas vezes abusam das "fórmulas" descobertas, do êxito alcançado por determinadas livros seus, e criam assim como uma "fôrma" na qual cabe tudo: um conto alegre e um triste, um de suspense e um de aprofundamento psicológico. Vemos tais características em escritores de renome, mas muito mais em iniciantes, que na maioria das vezes não pensam, antes de escrever uma história, qual "voz" dará ao seu personagem (quando em primeira pessoa).
Ana Miranda certa vez afirmou que só começa um livro quando "descobre" a voz do personagem (que em terceira pessoa pode muito bem ser a do narrador). Certa vez a vi copiando um livro enorme de determinada época histórica somente para tentar adquirir a "voz", a cor, o cheiro, o ritmo, daquela época. Também responderia "não", porque acho importante que, mesmo encontrando uma maneira própria para cada caso literário, o escritor tenha uma característica sua marcante, mesmo que não tão óbvia e superficialmente visível, que permeie seus livros, um a um. Algo como, me falta palavras apropriadas agora, uma "alma subterrânea", que os seus leitores mais atentos, constantes e sensíveis, vão encontrar em qualquer um de seus escritos. Não seriam pontos de vistas contraditórios os meus? Como não sucumbir às armadilhas fáceis de um estilo próprio, de uma "fôrma" pronta a ser usada em situações distintas? E como adquirir essa voz subterrânea pessoal e não parecer que escreve sempre o mesmo livro, o mesmo conto, o mesmo poema? Perguntas difíceis de serem respondidas como uma fórmula. Cada autor deve tentar fazer uma obra singular, sim, pensada com esmero, paciência. Talvez tenha sido isso o que o escritor que afirmou que o talento não é nada mais do que uma longa paciência tenha querido afirmar nas entrelinhas. 
Para fechar essas minhas ingênuas divagações, digo que aprendi uma coisa muito importante com o mestre moderno do conto, o russo Tchekov, ao afirmar que a arte deveria estar mais preocupada em fazer as perguntas certas do que em encontrar respostas verdadeiras.



Mônica e Menino Maluquinho no Troféu HQMIX 2018



Os personagens “Mônica” e o “Menino Maluquinho”, criados respectivamente por Maurício de Sousa e Ziraldo, são temas do Troféu HQMIX 2018, escultura feita pelo artista plástico Olyntho Tahara e reproduzida por Michel Costa.
O Troféu HQMIX, maior prêmio do segmento dos quadrinhos da América Latina, criado em 1988 pelos cartunistas Jal e Gual, a cada ano, por meio da Associação dos Cartunistas do Brasil e do Instituto do Memorial de Artes Gráficas do Brasil, empresta um personagem do universo quadrinístico ao Troféu, homenageando, claro, o seu criador.
Conforme o blog oficial do Troféu HQMIX, que em 2018 atingiu a sua 30ª edição (sempre com a participação de Serginho Groissman como cerimonialista), já “foram 1.271 troféus HQMIX entregues aos vencedores por uma votação nacional entre os próprios autores, editores e pesquisadores na área dos quadrinhos”.
O Troféu tem a finalidade de premiar e divulgar a produção de histórias em quadrinhos, cartuns, charges e as artes gráficas como um todo no Brasil.
É natural que nesses 30 anos, a comenda venha se adaptando, inovando e renovando, inclusive reconhecendo trabalhos de cunho acadêmico e publicações digitais, ampliando o número de categorias contempladas e agregando maior valor ao Troféu e divulgando ainda mais os quadrinhos na sociedade: “são cerca de 20 milhões de leitores de quadrinhos ativos, considerando que quase toda a população do país já leu algum gibi na infância ou em algum momento na vida”, assegura o blog do Troféu: http://hqmix.com.br/blog/



segunda-feira, 10 de setembro de 2018

"Airton Monte: crônica derradeira", de Raymundo Netto para O POVO



Há 6 anos, no oitavo dia de um agosto mês, Airton Monte, cronista-mor deste periódico naquele tempo, assinaria a derradeira coluna de sua laboriosa e diuturna cruzada de 19 anos de publicação. Como essa indigesta e inacabável pausa não se tratasse de uma despedida anunciada e muito menos voluntária, a crônica “Domésticos Percalços” nem de longe poderia ser colocada entre as suas melhores peças literárias. Mesmo assim, podemos encontrar nela os elementos mais frequentes que serviriam de matéria-prima para o cronista: a casa (“simulacro do mundo lá fora”), a família (histórias de Sonia – a sua “amada” e “ministra da Fazenda” –, dos filhos Pablo e Bárbara – a nossa irreverente Babita –, e mesmo do cachorro – do qual não recordo o nome), a incapacidade de lidar com as coisas práticas do mundo (“sujeitos imprestáveis como eu, totalmente desprovidos de qualquer habilidade numa dessas mecânicas atividades, incapaz até de pendurar um quadro na parede sem derrubar a própria utilizando martelo e pregos”) e, claro, a sua rotina (nesse texto, um domingo à tarde, as coisas que quebram, a dificuldade de conseguir profissionais e a crítica a peregrinos do Caminho de São Thiago e a romeiros cearenses, a partir de um documentário que assistia). Também é inegável a dicção de Airton, aquela mesma, adornada de ironias, metáforas e deboche anárquico, a mesma que conquistava a audiência dos amigos e leitores com quem frequentemente dividia mesas de bar, esquinas, botequins (“Somente numa mesa de botequim é que se realiza a verdadeira, legítima democracia”), até mesmo o seu consultório do finado Hospital Mira Y Lopez, e, claro, o tão propalado clã do Solar dos Monte.
Aos 63 anos de idade, alguns meses antes, ele já se queixava: “Vaga tão sem graça o meu cotidiano, tão deserdado de mistérios, tão óbvia e repetitiva a minha vida que nem uma telelágrima das seis, das sete, das oito, das dez, das onze.” E filosofava: “não sei se é uma merda ou uma bênção haver vivido tanto”. Provavelmente, nessa hora, beijava o escapulário do “Chiquinho”, “beque central contra os maus olhados”, que trazia fielmente ao pescoço, colocava um disco na vitrola, acendia um cigarro e se punha a batucar amorosamente à máquina de escrever aquilo que antes rascunhou de punho. Na mesa de trabalho, um dicionário era posto aberto, mesmo quando optava pela “mesmice ramerrã”. Já ali, no legítimo palco dos escritores, o autor conversava com seus leitores. Refletia. Brincava. Sofria. Comemorava. Criticava. Enaltecia. Amava. Convidava um punhado de gente a parar um pouco e simplesmente olhar para cima: “Afora esses pequenos distúrbios, nada mais surge no céu do que os aviões de carreira, além das brancas nuvens polvilhando o azul solar da tarde acima de minha cabeça atarantada.”
Hoje, dia 10 de setembro, no momento em que você leitor(a) estiver lendo isto, completam-se exatos 6 anos de encantamento desse cronista suburbano e “pós-moderno” (por que passara a usar e-mails), frequentador assíduo do Flórida Bar (o “Hezbollah do Clube do Bode”), autor de diversas obras, como O Grande Pânico, Homem não Chora, Alba Sanguínea, Moça com Flor na Boca e Os Bailarinos. Então, continuo sem entender a passagem de pessoas assim. Muito menos entender como é que o mercado editorial, principalmente o local, ignora tal manancial literário. Aqui, do meu palco particular, ouço na voz de Airton Monte: “O meu medo do tempo não é o medo de morrer, não é o medo de envelhecer. O medo da palavra tempo é o de me tornar obsoleto em relação ao presente.” Obsoletos, amigo velho, são aqueles que não ouvem o seu apelo. Viva entre nós.