quinta-feira, 29 de outubro de 2020

"Dolorosa", de Raymundo Netto para O POVO


 A sisuda e determinada viuvez de Dolorosa era de causar espanto até no falecido.

Não fosse para comprar o pão matutino, nunca de sair às ruas, de oferecer-se em janela e muito menos de se desocupar em calçada. Durante o dia, flagrada em oração diante do bem cuidado oratório onde descansavam aromáticas flores do campo em torno do derradeiro retrato de seu inesquecível amor. Depois, por horas, calava a respiração na imagem do morto, sabido que impressa ainda mais no peito em luto. Assegurava cumprir a clausura em vida, pois se dava por jurada ao ser amado, aquele que, dizia, só lhe contrariara uma única vez: na prematura morte!

Assistindo àquele martírio, imploravam os amigos: “Tão moça. Vai, mulher, viva!”. Para Dolorosa, todavia, amor que o tempo consome não é amor. O verdadeiro, único e exclusivo amor, herança maior do Deus que um dia os unira, sobrepujava a tudo, inclusive, a ausência física, merecendo ele toda e qualquer renúncia. Realmente era esse seu pensamento. Uma agonia, porém, a enredara, justo na solidão das eternas noites, quando suores e desejos eram contidos violentamente a pedradas de vergonha pela casta consciência. Sim, vivia ela um dilema secreto: o despertar do querer por outro homem.

João era um jovem auxiliar de padaria, bem mais moço que Dolorosa. Há meses, naquele estabelecimento, um descuido: trocaram olhares, e, num desses, Dolorosa fraquejou. No momento não sabia, mas João já a observava. Soube ele daquela viuvez defendida a todo custo. Isso o atraía profundamente. Também ele, às noites, em seu catre cheirando a farinha, se via perdido em lençol e no domínio da branquidão do corpo intacto daquela mulher. Imaginava ela entregue e em delírios, por tanto vigor reprimido. Naquelas manhãs, mesmo quando apartados pela lonjura incalculável do balcão, lia, escrito nos olhos divinos dela, a recusa ao toque alheio. Vê-la, sentir a polpa dos seus dedos ao receber os trocados do pão, buscá-la no interior das janelas da casa escura, passaram a ser as suas motivações de existir nesse mundo.

Um dia, Dolorosa despertou lívida e mais cedo que o de costume. Aguardou a abertura das portas de ferro da padaria. Correu ao longo do balcão e dirigiu-se ao rapaz. Entregou-lhe um dinheiro: “Moço, preciso ir à rua. Você poderia levar meus pães mais tarde em minha casa?”

João, surpreso, não recusaria. Assim, ao vê-la passar de volta, imediatamente enrolou os pães e plantou-se à sua porta, cuja soleira, há anos, não cruzava um coração masculino.

Dolorosa o aguardava. Ávida, abriu a porta e, por instantes, os dois permaneceram parados e mudos. O que João não sabia é que ela não o via exatamente como a vida o pintara, mas, sim, um quadro mórbido e repugnante. O corpo em ruínas e farrapos. Os ossos e traços de músculos revelados por entre carnes escuras carcomidas em vermes. A caveira sorridente a denunciar olhos amarelecidos, a língua negra e seca. Apenas os restos da imagem do homem que um dia o marido, e não o João, foi.

Depois, cerrada a porta, a respiração de ambos abrasava a casa de tal modo que os espelhos da sala embaçaram, recusando assistir ao ritual feroz e lascivo daqueles amantes que exalavam, no ardor do suor e do amor, o perfume frio e acolhedor da mais fiel sepultura.



terça-feira, 27 de outubro de 2020

"Houve uma vez um Anarquismo em Fortaleza", de Tião Ponte para o AlmanaCULTURA


 Tião Ponte ao lado de "Flor Punk"

Foi assim:

No início dos anos 1980, à medida q a ditadura militar caía feito um viaduto, crescia um sôfrego desejo de liberdade no país após tantos anos de mordaça. Sem esperar pela oficialização do fim da ditadura – pois quem sabe faz a hora, não espera acontecer –, a nossa gente sofrida despediu-se da dor, voltou a sorrir e já falava, cantava, encenava e publicava expressões e criações sem de medo de censura, prisão e tortura.

Duas dessas manifestações, no entanto, foram surpreendentes: a volta do anarquismo depois de quase cem anos, e o aparecimento do movimento punk. No meio disso tudo, eu fazia o mestrado em São Paulo e também fiquei tomado por aquele clima contagiante, mas especialmente tocado por esses dois movimentos.

De uma hora pra outra, emergiam núcleos anarquistas em São Paulo e em outros estados; na Bahia o jornal libertário Inimigo do Rei voltava a ser publicado, enquanto livros de história do Brasil resgatavam o movimento anarquista brasileiro durante a Primeira República.

Paralelamente, jovens proletários do ABC paulista e de subúrbios de Sampa criavam o movimento punk no país. Suas roupas, falas, zines e canções explicitavam q punk e anarquismo estavam intrinsecamente ligados.

Cheguei em São Paulo em 82 com cabelo grande, barba, mochila de couro, roupa colorida, casado, comunista e assoviando Chico e Victor Jara. Voltei para Fortaleza em 84 de cabelo curto e espetado, sem barba, com roupas escuras, separado, anarquista e trazendo LPs dos Ramones e dos Ratos do Porão.

Voltei também muito desejante de criar um grupo anarquista de estudos & ação q contasse também com a participação dos punks da cidade, caso existissem. Existiam: tinham bandas, faziam zines, sofriam repressão policial e participaram de bom grado do nosso “Coletivo Anarquista de Fortaleza”. Mais: embasbacaram e sacudiram os esqueletos da multidão que compareceu às duas festas que realizamos, uma na quadra do CEU e outra no Pirata Bar (que, à época, estava revolucionando a noite da cidade). Tais festas foram notícias no O POVO e serviram para lançarmos nosso zine O Mutante Visionário e vender exemplares do Inimigo do Rei, já q havíamos nos associados ao grupo baiano que o editava.





Havia dois líderes naturais entre os punks, o Dedé Podre e a Flor Punk. Esta era vocalista, letrista e baixista da Resistência Desarmada, primeira banda de rock de Fortaleza formada só por mulheres.

Creio que aprendemos mais com os punks do q eles conosco. Eles tinham a vivência anarco-punk cotidiana e de rua q nós outros integrantes, de classe média, não tínhamos.

Solidariedade, companheirismo, debates, performances e fruições marcaram a existência do nosso Coletivo e da nossa convivência com os punks nos três anos q durou essa curta, para mim inesquecível, viagem.


 

PS: Quase 40 anos depois, os LPs dos Ramones e dos Ratos do Porão continuam convivendo numa boa com os dos Chico e do Victor Jara na minha discoteca. 

 


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

"ARTE LITERÁRIA VERSUS MERCADO EDITORIAL: DUAS FACES DA MESMA MOEDA?", com Raymundo Netto (23.10)


Clique na Imagem para Ampliar!

Palestra Virtual

ARTE LITERÁRIA VERSUS MERCADO EDITORIAL:

DUAS FACES DA MESMA MOEDA?

Data e Horário: 23 de Outubro (18 horas)

INSCRIÇÕES GRATUITAS: 

https://doity.com.br/moranafilosofiaempandemia-23deoutubro

 

APRESENTAÇÃO: Raymundo Netto (escritor, editor, produtor cultural e gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha-FDR)

 

SINOPSE: Neste encontro, discorreremos sobre o fazer literário e as regras tácitas ou não que regem o mercado editorial contemporâneo. Qual o papel do(a) escritor(a), quais as suas expectativas e anseios, por que escreve e porque escreve o que escreve, onde quer chegar, quais as suas frustrações e por que elas existem. O conflito entre criador e criatura em um convite para refletirmos juntos.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Mercado editorial. Escrita Literária. Profissão Escritor.


SOBRE O PALESTRANTE: Jornalista, escritor, editor e produtor cultural. Autor de Um Conto no Passado: cadeiras na calçadaOs Acangapebas (Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, da Academia Cearense de Letras), Crônicas Absurdas de Segunda (finalista do Prêmio Jabuti), Quando o Amor é de Graça!Cronologia Comentada de Juvenal GalenoCentro: um coração malamadoPadre Cícero: o filmeNilto Maciel: perfil biográfico; e dos infantojuvenis A Bola da VezA Casa de Todos e de NinguémOs Tributos e a CidadeBoto Cinza Cor de Chuva. Cronista convidado do Vida &Arte do jornal O POVO desde 2007. Coeditor das revistas CAOS PortátilPara Mamíferos e curador da Maracajá; Coordenador de Políticas do Livro e de Acervos da Secult-CE (2008-2011), curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará, redator do Prêmio Literário para Autor Cearense e coordenador da I Feira do Livro do Ceará em Cabo Verde. Recebeu a Medalha Boticário Ferreira em 2012. É gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

 

INSCREVA-SE NO CANAL DO MORA NA FILOSOFIA: 

youtube.com/moranafilosofiaufal

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS SOBRE O PALESTRANTE:

·         Escritor cearense Raymundo Netto é finalista do Prêmio Jabuti:

https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2016/10/escritor-cearense-raymundo-netto-e-finalista-do-premio-jabuti.html

 

·         LPA com Raymundo Netto - O QUE A LITERATURA FAZ COM VOCÊ?:

https://www.youtube.com/watch?v=RSyXFF4mg5g

 

·         CABECEIRA 2 | Raymundo Netto:

https://www.youtube.com/watch?v=KVPaqZvesDU

 

·         CABECEIRA 1 | Raymundo Netto:

https://www.youtube.com/watch?v=t0LDUvOEDKU

 

·         PROGRAMA DIÁLOGO - RAYMUNDO NETTO - Escritor e Produtor Cultural:

https://www.youtube.com/watch?v=mArD-cFC9Ko

 

·         Revsita Maracajá:

http://fdr.org.br/maracaja/

 

Mora na Filosofia (Blog): 

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ORGANIZAÇÃO:

Maxwell Morais de Lima Filho

Curso de Licenciatura em Filosofia - ICHCA/UFAL

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6620816919487159

Site do Curso: http://www.ichca.ufal.br/graduacao/filosofia/

Telefone: 82 3214-1325

Endereço: ICHCA (Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes)

UFAL – Universidade Federal de Alagoas / Campus A. C. Simões

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