A crônica que publiquei há quinze dias, neste jornal, foi tema de conversa em certo ambiente da boemia cearense. Certamente o assunto não teria vindo à baila se eu não estivesse presente, pois dissertar sobre sapatos não parece ser coisa comum ao repertório masculino. Entretanto, como eu tinha feito uma aparição surpresa no tal barzinho, os amigos fizeram essa homenagem, de comentar a crônica e até desenvolvê-la.
“É possível identificar a personalidade de alguém pelo calçado”: era o que me dizia um colega, na hora em que todos atingiam a terceira etapa etílica e se tornavam súbitos sábios. “Sapatilhas românticas não costumam ser usadas por mulheres de estilo vampiresco” – revelou outro – “Essas jamais abandonam o salto-agulha, arma de mil utilidades, que usam, por exemplo, para palitar os dentes no escuro de um toillete, ou para semelhante uso por baixo das longas unhas esmaltadas. Ocasionalmente, os saltos podem transformar-se em punhais, principalmente dentro de uma alcova em que reine o ciúme. Então, dificilmente alguém desconfia do rastro de gotículas... Talvez apenas um velho sapateiro suspire, acostumado a encontrar nas virolas um vestígio de sangue.”
“Mas sandálias havaianas costumam passear por todos os pés em veraneio, sem discriminação”, disse eu. “Porém” – interrompeu um amigo – “apenas os dotados de um perfil malandro ou, para sermos mais sutis, um jeito relaxado, gostam de usá-las todos os dias, a qualquer hora. Nada contra tais usuários! Ao contrário, estes são os da minha simpatia” – continuou ele – “pois demonstram o amor à liberdade e ao conforto.”
“Tênis também passam sensação equivalente” – interferiu alguém. A resposta: “Depende. Conforme o modelo ou o estilo, podem ter a suavidade de um chinelo ou pesar como cimento sobre esquis...” Naquela altura, aproveitei para comentar que sapatos de escritório me parecem sempre antipáticos, com suas pontas agudas, um jeito de jacaré. Ficam ali, em cores neutras e sóbrias, incapazes de tamborilar distraídos: é que, por dentro, trazem dedos tensos, esmagados entre a palmilha e o cadarço.
Ninguém escutou aquelas considerações finais. Estavam todos em novo assunto, que (admiti) era mais apropriado ao ambiente. Eu tivera cinco minutos de prestígio, lançando o mote de um debate; agora, era a vez dos velhos e queridos temas: literatura, fofoca, piadas.
Só por curiosidade, lancei um olhar para debaixo das mesinhas de plástico. Ali, por entre garrafas vazias, unidas no feitio de buquês de vidro, estavam os pés de todos: pares em diversas posições e tamanhos – mas unânimes, àquela hora, em se despir dos calçados que traziam. Inclusive eu tinha me libertado das sandálias e pisava com displicência sobre elas.
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