domingo, 31 de janeiro de 2010

Exposição imperdível: "Fortaleza, contando sua história"

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Resultado 2º Sorteio de Livros de Autores Cearenses

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É com bastante atraso, mas não com menos alegria (maior alegria seria premiar todo mundo que participou), o blogue AlmanaCULTURA presenteia 1(um) de seus leitores com o sorteio de 01 kit de ROMANCES: (1) Yuxin: alma, último lançamento de Ana Miranda, (2) Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, livro de estreia de Raymundo Netto (ganhador do I Edital de Incentivo às Artes da SECULT, 2004), (3) Rita no Pomar, de Rinaldo de Fernandes (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, 2009) e Exuberante Pós-Nada: itinerário ilógico da razão, de Astolfo Lima Sandy (ganhador do IV Edital de Incentivo às Artes da SECULT).

Um dos 73 seguidores e amigos do blogue também receberá O Livro das Horas da Praça do Ferreira, do fotógrafo Jarbas Oliveira e do escritor José Mapurunga, belíssima obra, projeto de Dora Freitas (Lumiar) e OMNI Editora, com apresentação da Beatriz Furtado, e patrocínio da Secretaria da Cultura de Fortaleza.

Os ganhadores, desta vez, são:

Categoria Kit de romances: Miguel Leocádio Araújo (Ceará)

Categoria Seguidor: Shirley Paradizo (São Paulo)

Gostaria de informar ao Érico Bayma, participante assíduo, que em relação à biblioteca que ele está constituindo por meio de sua ONG, embora ele não tenha sido "O" sorteado, mas eu me comprometo a arranjar alguns bons títulos para doação para seu projeto.

Quanto ao Miguel, parabéns, preciso apenas de mais um tempo para conseguir duas das quatro dedicatórias (todos os livros, conforme prometi, serão AUTOGRAFADOS PELOS AUTORES). Até o final da semana de fevereiro daremos um jeito de entregar seus livros.

Shirley, enviarei o seu Livro das Horas pelo correio, ainda esta semana. Para isso, envie para meu e-mail pessoal (raymundo.netto@uol.com.br) o seu endereço, está bem?

A todos os demais participantes, principalmente os mais insistentes, como o Antônio Filho (ganhador da primeira edição), Rô Primo, Urik Paiva, Sônia Nogueira, Fátima Souza, Carmélia Aragão, Nirton Venancio, Ana Karla Dubiela, Geórgia Cavalcante, George Costa, Poeta de Meia-Tigela, Paula Izabela, Luiza Helena Amorim, Carla Castro, Carlos Vazconcelos, Solange Benevides (ganhadora da primeira edição dos "Seguidores") e Lima, agradeço muito, muito mesmo, a amizade e parceria.

Gildemar, quanto ao seu livro para um próximo sorteio, a gente conversa logo mais.

Um grande abraço a todos.


Os "FitoManos" de Raymundo Netto em "Estamos de volta!"

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"A Maior Invenção do Mundo", crônica inédita de Raymundo Netto para LITERAPIA nº 13, da SOBRAMES


Omahr Prabahvanadaba, filósofo das bandas do oriente, passou tanto tempo de sua vida a transcender os limites da matéria, reflexo turvo que a natureza nos impõe, que certo dia, de tanto meditar, desmaterializou-se, fez-se todo pensamento sarapintado em pacotes de luz. Seus escritos, entretanto, deitados em papiros conservados pelo esquecimento em ânforas sob as estrelas — e areias — do Egito, sobreviveram ao seu desaparecimento e gritaram revelações perturbadoras aos maiores doutos da ciência.

Num desses famosos manuscritos, descortina a origem da Terra e da Humanidade. Nele, consta que a grande invenção sobrenatural do mundo caberia a um deus, uma entidade de uma engenhosidade e poderes fabulosos e incognoscíveis que, diante do nada absoluto e enfadante, riscou um palito de fósforo — incrivelmente anterior ao produzido, apenas em 1827, por Johnny Walker (não confundir com o Striding Man) — e pôs-se a criar este mundo. Digo “este”, pois acredita o Mestre Omahr que os demais orbes são apenas esboços malfadados da inexperiência do onipotente que, adiante, criou os elementais do fogo, da água e do ar, e deles advieram as bactérias, unidades sincréticas entre o vegetal e animal que, desprovidas de ego-vacuidades, fixaram-se nas dunas e no lodo e com seu enxerimento atávico logo os transformaram em simples cidades, colônias e florestas de samambaias carboníferas.

Até então, por não querer testemunha nem aplauso, a divindade não criara vida animal. Antes a música, que nada mais é do que matemática cantada. Construída a fantasia do idílio, empunhou terra vermelha e, certo de que dela poderia extrair uma obra de arte ou um penico, optou em moldar o ser humano.

Assim, tomando-se no espelho, o fez. Este ser era, pois, homem-mulher, como ele e os querubins. Logo, lançou vigorosamente a sua criação ao mar, partindo-a em duas metades e completando-as, como cream crackers, em água e sal, yin e yang, dia e noite, quente e frio, positivo e negativo: Adão e Loã.

Loã, mais bela e muito virgem, não aceitou a preferência dos paparicos de deus ao privilegiado e empossado capataz do novo mundo, o jovem Adão, muito bobo, sempre brincando de bilas e correndo atrás de ovelhinhas. Passou a desafiar o pai que, em sua infinita impaciência, condenou-a a pratear o céu entre os mundos em forma de lua, onde até hoje repousa a feiticeira branca, ainda cheia de fases provocativas.

Trocando uma ideia com deus, Adão que preferia a má companhia à solidão, e cansado de masturbar-se em noites de luar, negociou uma de suas costelas — sabia-as muitas e antevia possibilidades... — em troca de uma diva. Soubesse Anatomia, ofereceria o apêndice, cujo único objetivo é dar dinheiro aos cirurgiões.

Deus ex machina, penalizado com a criança, criou a moça Eva, menos bela, magra e falsa como a origem e mais submissa. O supremo, entretanto, condiciona: “Não poderão, de forma alguma, comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal!” Ora, todo bom pai sabe que a proibição só seduz... E assim, o casal viveria num paraíso, não fosse a presença da serpente que, ninguém sabe como, convenceu a curiosa mulher a comer tal fruto do pecado: a manga! Como Eva convenceu Adão a também chupar essa manga, aí já é fácil deduzir...

E deus não perdoou — e quem inventou o perdão, então? — e os expulsou dos seus jardins castigando a mulher com dores no parto e ao homem com o relógio de ponto. E como deus não dá asas à cobra, ao contrário, arrancou-lhe as patas, condenando-a a rastejar-se e a ser odiada pelas mulheres (assim como as lagartas e baratas) até as últimas gerações.

Adão e Eva, sem ocupação e com secular libido, amavam-se debalde (mas ele não tinham sido expulsos do paraíso?), e daí vieram os filhos: Caim e Abel. Os coitados, como numa lagoa azul, não souberam educar seus filhos, não havia escola nem a SuperNanny, e a ira entre eles cresceu a ponto de um irmão matar o outro. O assassino — não havia delegacia nem noticiários populares — foi banido de casa, castigado por deus a carregar chifres — que as más línguas diziam ser herança do pai — mas logo encontrou um lugar melhor (havia outro?) onde ninguém o conhecia, vivendo biblicamente feliz para sempre.

Adão viveu apenas 900 anos. Deveria ter algum viagra natural, pois continuou a gerar filhos que transavam uns com os outros, na mais pura e incestuosa matemática celestial.

O deus, desiludido com a má criação, mas sem dar o braço a torcer — à nossa imagem e semelhança, deveria tê-lo —, agitando as pontas de seu lenço, lançou suspiros ao infinito e clamou: “Que calor! Que desenfreado calor!” E, para encerrar o invento, criou o escritor para que registrasse tudo, sabido que seus seguidores seriam todos pescadores e pastores analfabetos. Nascia a Crônica e o Machado! Mas, ah, que pena, os inventores da imprensa foram os ateus chineses...

Raymundo Netto, autor de O Conto no Passado: cadeiras na calçada e dos infanto-juvenis A Bola da Vez e A Casa de Todos e de Ninguém (ambos pela Edições Demócrito Rocha). É coeditor do CAOS Portátil: um almanaque de contos e da Para Mamíferos e, desde 2007, é cronista convidado do caderno Vida & Arte do jornal O POVO.

"Antes que a Chuva Chegue", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO (29.01)


I - Caça ao turista.

Férias, sol, suor e cerveja: alegria na cidade!
Está aberta a nova temporada de caça ao turista.
O taxista engrena três meninas novas no pedaço, combinam porcentagens, discutem locais... o porteiro do hotel da Beira-Mar, do motel da Parangaba e do quitinete no Centro concordam com os índices. Os pais das meninas também.
Os restaurantes confeccionam novos cardápios, sempre com alguns números a mais.
Os meninos doiradinhos de sol descem o morro, canelas secas e ligeiras atrás do “gringo velho”, que desapareceu no Novo México e, dizem, reapareceu em Iracema.
Os sujeitos das vans caçam vítimas, “atenção!, senhor, três praias por 80 réis.”Bugues assassinos esperam novas vítimas, enquanto isso cavalos, burros e jumentos cagam na onda branquinha.
O paredão de som ameaça com o mais novo sucesso da Axé Music e do Forró Eletrônico.
Três novos garçons foram contratados na barraca, os olhos vermelhos miram câmaras e celulares.
No velho teatro, pseudo-humoristas desenferrujam velhas piadas, bufônicas, histriônicas e carregadas de preconceitos. Sacaneiam o carequinha, o gordito, o branquelo...
Arrancam o riso a fórceps. Fecham o velho turismo nosso dos “três pés”: Praia, Prostituição Infantil e Piada de Mau Gosto.
“Está aberta, senhores, a nova temporada de caça aos turistas. Mas, por favor, não os assustem para que voltem! Vivos!”

II - Para-didáticos

Depois da famigerada corrida às compras de Natal e Ano Novo, os esfomeados comerciantes já afiam novamente suas garras por trás dos mil livros escolares...
Além, os primos pobres ensaiam sadismos entre as árvores da Praça dos Leões:
— Olha aqui, freguês!, me mostra sua lista! Aqui a gramática novinha, já com o novo acordo ortográfico... Não tá riscada!... Custa 80 paus na livraria.
O “freguês” se esquiva do vendedor, do trombadinha e vai atrás do Papai Noel, que cortou a barba e é especialista em para-didáticos...
Quando se sente segura telefona para o marido, “que é melhor comprar no colégio dividido em seis vezes”... Não chegam a um acordo e ela sai apressada, arrastando o menino e três sacolas cheias na direção do Passeio Público.

III - Pré-carnavais

Ano bom que se preze só se inicia depois do carnaval, o meu apenas após a Semana Santa. E olhem lá!!!
E uma das desculpas preferidas do cearense é a de que “o carnaval não, mas o pré-carnaval aqui é ótimo”. Lenda urbana, igual ao “Perna Cabeluda” (que é de Recife), “a Loira do Banheiro” e a recente “Railux Preta”. (Aliás, somos pródigos em lendas urbanas, as mais variadas e nocivas possíveis: a de que o turismo beneficia a todos, a de que temos por aqui futebol, a de que a cidade é bela... e outras mil mais.)
Pois bem, se o carnaval em três dias (?) já incomoda meio mundo, imaginem os diversos pré-carnavais em cada canto desta nossa desvalida loirinha desvirginada pelo sol. Do Periquito da Madame ao Vai dar o Carlito, da Cachorra Magra ao Rosca de Chifre do Zé Walter, do Num Ispaia senão Ienche, do Luxo da Aldeia ao finado Quem é de Bem fica. E tomem marchinhas mal tocadas pelos ouvidos afora, e tomem fedor de mijo pelas calçadas semana adentro, e tomem cerveja quente pelo fígado alheio, e tomem “saidinhas” de bloco pelas ruas adjacentes... E tomem, nós, insossos fortalezenses, barulhos sem fins pelo mês de janeiro em diante... E tomem, todos nós, no...

Pedro Salgueiro escreveu O Peso do Morto, O Espantalho, Brincar com Armas, Dos Valores do Inimigo e Inimigos, todos de contos; além de Fortaleza Voadora, de crônicas.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Só os Egoístas Serão Felizes! (O Marquicismo na República dos Borós)

"Os Retirantes" de Cândido Portinari


Só os Egoístas Serão Felizes (O Marquicismo na República do Boró)
“Quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro!”, sou prova, até então, viva, disto. Trabalho o tempo inteiro: em casa sou o último a dormir e o primeiro a acordar. Até quando na praia, pés na brancareia, a mente ansiosa em produzir... Dias e dias, incluídos finais de semana e feriados, contadas quatro horas de sono e a volta à rotina quase desperta do ofício! Tantas promessas que nem sei como ainda tenho amigos...

Também não sei como alguém consegue viver (não digo sobreviver) cumprindo oito horas de “batente”... Depois do “ponto”, o descuido com a vida é fatal. Família, amigos e prazer? Esqueça! Solidão... Será que viver assim vale a pena?...

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Domingo passado, um casal bateu palmas em meu portão. Após dispensáveis apresentações o homem perguntou, “na lata”, se eu era feliz. Disse-lhe: Acho que não! (mas o que é que ele tinha a ver com isso?) Sorriu satisfeito, feliz com a minha "infelicidade" — comportamento muito comum entre bípedes como nós — ou porque era essa a sua deixa para apontar-me um folhetinho de regras básicas para alcançar a apregoada felicidade. Ao final, disse-me, puxando para si a mulher — gorda, feia, suada e com dentes amarelos — que eles, sim, eram felizes.

— Ah, é? Que bom... — normalmente, esse papo entreportão findaria com um de nada “obrigado” e eu voltaria mais que depressa ao computador para quebracabecear a crônica que comecei acima, mas, inesperadamente, surpreendendo até a mim, pus fim: — ... e vocês não têm vergonha disso, não?

Por mudos instantes, ficaram perplexos. De sorridentes, suas feições passaram a medonhas: cerraram os dentes, saltaram os olhos, torceram a boca, largaram-se as mãos, derrubaram os sagrados papeletes na calçada.

— Digo isso — continuei — porque não acredito que alguém consiga ser feliz num mundo onde haja tanta injustiça, maldade e sofrimento. Vocês não assistem a noticiários, não?
— Só passa coisa ruim. Prefiro as palavras de Deus... — afirmou, orgulhoso.
— Pois é. Tem muita coisa ruim mesmo... e a gente precisa saber! Saber, por exemplo, que tem tanta gente... nossos irmãos... sem ter um lugar digno para morar, mesmo quando na cidade encontramos, por todos os lados, imóveis abandonados, vazios e inúteis, bons terrenos cheios de mato e lixo. Saber também que a maior parte deles pertence a poucos, ou aos mesmos, donos. Você não acha que sendo a cidade um bem natural de todos, ela deveria ser melhor distribuída? Não acha que deveria haver uma lei que estipulasse um teto máximo de acúmulo de “riqueza” para evitar a concentração de renda tão desigual e absurda como nós temos por aqui?
Você acredita que nos dias de hoje, numa cidade como essa, no tempo em que alguns bairros esbanjam luzes de Natal, noutros não se têm água encanada, esgoto ou iluminação elétrica nas ruas, e que nesses locais nem a polícia tem coragem de entrar?

Juro que eu não entendo por que enquanto muitos têm que espremer o orçamento familiar, viver de empréstimos, sofrer humilhações e privações para garantir o carioquinha diário, rapazes “abençoados” gastem o equivalente a seus salários numa noite de restaurante se amostrando àquela moçoila deslumbrada que ele também quer comer... E por que, Deus seu, enquanto alguns, ainda não contentes, têm dinheiro suficiente para sustentar inclusive as futuras gerações, outros trabalham a vida inteira em condições vexatórias, até mesmo após a aposentadoria, fazendo bicos dias e noites, serviços grosseiros, mesmo doentes e sem plano de saúde, pegando conduções lotadas de madrugada ou em trânsitos caóticos para garantir a sobrevivência dos netinhos, pois a renda da família inteira junta não dá para levar? É justo que as crianças dessas famílias — que já nascem com a restrita concessão de existir e sem o tributo advocatício — sujeitem-se às escolas de ensino precário, nas quais além de conviver em meio a atrocidades, como drogas e prostituição, ainda lhes sejam negadas o futuro ingresso à universidade pública, esta garantida com promessas de comemorações para os filhos dos privilegiados que têm dinheiro para pagar as particulares, hoje, maquinais fábricas de vestibulandos?

Ah, pobres pais, trabalhadores, que chegam a dormir nas calçadas das escolas para garantir a matrícula do filho, crente que assim ele poderá ter um destino diferente dos seus...
Conhece algum professor de escola pública, amigo? Eu, sim. São mal remunerados, não reconhecidos e, muitos, mesmo assim, tiram do seu para conseguirem ministrar as suas aulas, sabia? Na nossa cidade, alguns ainda têm que ser escoltados pela viatura policial para garantir a sua segurança, temerosos da ira de alunos marginais.

Então, me diga, como ser feliz sabendo que, neste momento, alguém pode invadir casas honestas, estuprar menininhas, espancar velhinhos e não sofrer a devida (impossível) punição? Ou sabendo que pessoas dormem à rua, usam drogas e vendem seu sexo para comprar pirulitos, ao mesmo tempo em que a indústria da corrupção prospera à cara limpa no país, fruto da justiça cega e paraplégica e das costas largas de gente “dita” bem-sucedida, admirada pelo sucesso à custa da compra de colunistas sociais e do sacrifício da dignidade de vida de um povo? Tudo em nome das drogas do poder e do dinheiro. Dinheiro, droga de dinheiro. Droga, vicia mesmo!
Muito pior é estar convencido de que as pessoas julgam que tudo isso nada tem a ver com elas, que nós só temos o que merecemos, que quem nada tem é porque não estudou, é vagabundo, cachaceiro ou coisa e tal. É tão mais fácil fechar os olhos — e o coração — e fingir não saber que a nossa vaziúda sociedade é um jogo de cartas marcadas onde muitos, a maioria, já nasceram condenados a viver sem amor, família, teto, escola, princípios e futuro. Mas os destinos se encontram...

O dinheiro e o poder, verdadeiros deuses da nossa fiel e desumana humanidade, justificam tudo. O sistema diz, a todo instante: Não reaja! Não importa, não reaja! Como não? Até quando não iremos reagir? Até nos tomarem tudo? Até conseguirem nos convencer a vender a alma em troca de um par de tênis ou de uma porcaria de celular? Aí pode?
Como ser indiferente a isso tudo e dizer simplesmente que é feliz, cara? Tem que ser muito egoísta para ser feliz assim, não acha?

— A verdadeira justiça será concedida de graça a todos os que têm fome e sede de fazer o que é correto. A ceia de Jesus é farta... — arrematou com olhos de vidro, em tom de decoreba profética. Foi quando, fitando-os, percebi-os bem demais para compreender qualquer coisa. Foram-se, abanando a cabeça — a mulher a consolar o marido que lamentava, certamente, a ignorância deste ente condenado à treva — mas felizes!


*****

Volto agora à crônica, desgostoso com a conversa chata e a lembrança da cara lavada de um punhado de bem intencionados adormecidos que proclamam a justiça exclusiva pós- morte. Pois eu cá falo da vida, essa efêmera, passageira, mas primeira certeza, até que a segunda, a morte, nos separe. E para aqueles que perdem seu tempo, que fecham os olhos e ouvidos e se consolam com esta resignação besta e cômoda, digo: Vão, vão assistir a novelinha das oito, os tediosos programas de domingão, vão encher a cara nas micaretas envolvidos em pré-panos de chão caríssimos, curtam a vida, explodam seus cartões de crédito, comprem, gastem com tudo que não precisam e engordem a porca paralítica dos capitalistas. Desperdicem bastante, joguem fora o futuro e o mundo de seus filhos, percam a ternura e sejam felizes, porque eu, simplesmente, não tenho coragem. Ouça-os: Não reajam! Não reajam! E, se puderem, tenham um Feliz Ano Novo, pois bem-aventurados os que não sentem, pois deles é o reino (falido) da Terra!

Raymundo Netto que entra ano, sai ano e não vê nada de novo na República do Boró. Contato (talvez seja melhor não...) raymundo.netto@uol.com.br blogue:http://raymundo-netto.blogspot.com



sábado, 2 de janeiro de 2010

"ADEUS", crônica inevitável para uma insustentável relação


1º de janeiro de 2010. Esta será, certamente, a última vez em que me sentarei aqui, exatamente aqui, para escrever alguma coisa e enviar a vocês. O primeiro dia do ano, dizem, pede mudanças. Estou em mudança, saindo de uma vez da casa 59, a amarela da Vila Doutor Alencar, casa esta em que habito há já sete anos.


Retornei ao Monte Castelo de minha vida, bairro de meus pais, no qual vivi mais de vinte primeiros anos e onde deixei enterrados meus principais alicerces, lembranças, saudades e esperanças. Principalmente as esperanças, dois coelhos brancos e a gata Marie.


Aluguei a casa geminada (tinha uns sessenta anos), sem garagem, varanda à beira da calçada, à portas fechadas. Era triste, cor cinza. Em cada cômodo um lustre em estilo diferente. Todos feios, cheirando a tristeza e a esquecimento. Interruptores de madeira corriam em fios na parede irregular de tijolos brancos. O telhado enegrecido coberto de entulhos. Os pisos de mosaicos encardidos ou de tacos atacados por cupins. No quintal, a antiga fossa aberta. A casa contornada por combogós. “Deve ser tão quente...”, pensei.


Aluguei-a de uma senhora de 82 anos, hoje falecida, que me convidou gentilmente para conhecer também a sua bicentenária casa num largo terreno do Camará: “Sabia, seu Netto, que ainda guardo o meu pagãozinho?”


Pois bem, reformei a casa. Pintei-a de amarelo. Nas janelas de vidros coloridos, cortinas de pano. Transformamos a fossa — aterrada de entulho do telhado e por tais lustres — num jardim que minhas gêmeas, à época com dois anos, chamavam de “mais feliz”, tendo o cuidado de preparar um canteirinho para cebolinhas. Plantamos uma árvore que trouxe nos ombros e hoje é um grande benjamim que chora suas folhas pelas areias do quintal com um som gostoso de chuva. Plantamos também lacres coloridos e uma espirradeira, local preferido pelos bem-te-vis para montar seus ninhos. Mandei fazer um banco de alvenaria (em forma de “u”) coberto de xadrez vermelho (à noitinha silenciosa esfria tanto...), contornando a área de serviço, e pus, no meio, uma mesa larga formicada e branca para receber os amigos para o café e festejados festivais de sushi com moedas japonesas espalhando a boa sorte na mesa das visitas. Ao final da tarde, ou à noite, colocava as cadeiras na calçada, costume diário ainda na Vila. O vento encanado com cheiro de mar corria frouxo e fresco. Leituras despreocupadas fazia ali, a balançar em minha cadeira de palhinha e molas, quando sabia: “Os melhores lugares da casa são a calçada e o quintal...” E eram. Passavam o rapaz da chegadinha, o algodão doce, o verdureiro, o sapateiro, o picolé, o peixeiro, o homem da “fezinha”... Ficávamos muitas e muitas vezes na calçada até as primeiras horas da manhã. Às vezes, ao lado, uma vizinha executava ao piano a Lua Branca da Chiquinha ou a Bachianas nº 5 de Villa-Lobos. Olhava eu para o céu tão constelado e azul a admirar a dança dolente da copa da árvore em frente à janela da rua.


Há um dia de cinco anos, movido por uma dor que me tirava juízo, decidi dar continuidade a um projeto idealizado há tempos e, então, escrevi meu primeiro livro Um Conto no Passado: cadeiras na calçada. Minha vida mudou. Conheci não a maior parte, mas todos vocês que agora me lêem e que me honram em ter-me como amigo.


Enquanto as meninas cresciam, convidaram-me para escrever no jornal. Ganhei outro prêmio e muitos, muitos livros (não li nem metade). Ia a lançamentos, quase todos, tardava a chegar e, em lua alta e acompanhado por latidos e apitos distantes, descia o caminho de paralelepípedos que consegui colocar ali, após resistir à tentativas de outros moradores de capeá-lo com o negro asfalto. Herança que deixo, agora, mesmo que incompreendido por alguns...


Fecho agora todas as portas para a Vila Doutor Alencar. Fecho-as para sempre. "Sempre é tarde, nunca é tarde"... Digo que não me importo, finjo não me custar nada, mas uma lança de tristeza insiste em me fazer lembrar. Olho para os lados e vejo nascer aqui Américo Lopes, um cearense como eu, sentado em frades de pedra a assistir o espetáculo solar de arraias coloridas. O vejo crescer, apaixonar-se, cometer seus erros e contar histórias que eu já conhecia todas. Por fim, vejo-o morrer para dar-me vida. Ainda aqui, recordo-me d’A Moça do Zepelim Prateado, minha primeira crônica para as segundas d’O POVO, e depois dela todas as outras, em quase três anos (completa em abril), e meu encontro com tantos personagens queridos (entre vivos e mortos) de nossa literatura: Quintino, Moreira, Manelito Eduardo, Zé de Alencar, Clóvis, etc. Fecho as portas também para Pantico, o garoto d’A Bola da Vez, doido para inaugurar sua bola de futebol, e para a Itapuca Villa que, depois do Cadeiras..., consegui salvar em A Casa de Todos e de Ninguém. Fecho as portas para Os Acangapebas, gerado ainda nesta cadeira, lido, relido, mas que não nascerá em tempo de conhecer a nossa casa, assim como os Cadeiras na calçada 2 e 3 e mais dois infantis.


Fecho as portas para o passado, para minha história, e não deixa de incomodar-me o pensamento que outros (estranhos) passarão por esta casa, tomar-lhe-ão conta, e, mesmo sem o saber, se apossarão um pouco de mim.


Acho que não acontecerá, mas se um dia eu passar por aqui e cruzar esta rua estreita (pela outra calçada), penso que a casa estará diferente, talvez mais feliz, melhor utilizada e mais bonita. Quem sabe não nos reconheçamos, eu dê meia-volta em passos ligeiros, descubra que a tal lança se quebrou e que o melhor é esquecer, pois não há menor chance para nós. Nunca houve!


“Suave a luz da lua desperta agora
A cruel saudade que ri e chora!
Tarde uma nuvem rósea lenta e transparente
Sobre o espaço, sonhadora e bela!”

PS: durante alguns dias estarei incomunicável, mas logo, logo darei notícias e enviarei meu novo telefone residencial. Grande abraço.