quinta-feira, 20 de junho de 2013

"O POVO: 85 anos presente no Ceará XI", crônica de Raymundo Netto (19.06)

Themístocles de Castro e Silva, Carlos D'Alge e Adísia Sá: "Debates do POVO"

A Ceará Rádio Clube, de João Dummar, na década de 1930, foi a pioneira da radiofonia cearense. É inegável o impacto que causou a sua chegada. É de imaginar que, antes do rádio, a imprensa letrada num Brasil contraditoriamente analfabeto era a fonte privilegiada de informação. O rádio democratizou o acesso a essas informações que, então, não precisavam mais ser lidas, e sim ouvidas, e melhor, de primeira mão, na hora, “fresquinhas”, ao contrário do que acontecia no meio impresso. Era crescente a influência e o alcance do rádio, fosse pelo acompanhamento de notícias e anúncios, fruição de músicas — regalos de minorias que podiam adquirir discos e vitrolas, participar de saraus em torno de pianos ou em teatros, etc. — de esquetes, novelas, programação infantil, dentre outros. A PRE-9, como era denominada, foi a terceira emissora brasileira a ter ondas curtas, um grande avanço tecnológico na época. Em seus estúdios surgiram novos artistas, músicos, locutores, comentaristas, noticiadores, enfim, era de lá que surgia e se desenvolvia o saber e o fazer do rádio no Ceará. Em 1944, porém, por motivos aqui já descritos, Dummar teve que vender a sua emissora a Assis Chateaubriand.

35 anos mais tarde, no dia 8 de junho de 1979, seria publicada no Diário Oficial da União a concessão para O POVO de instalação de uma estação de rádio em Frequência Modulada. Albaniza Sarasate e Demócrito Rocha Dummar comemoravam junto ao Grupo. Foi daí realizado um concurso para escolha do nome da emissora — Rádio Jornal das Multidões, Rádio Liberdade, Rádio Guarani... e O POVO FM, que, naturalmente, vingou.

Carmen Lúcia Dummar, ao regressar do Rio, onde concluíra curso de Comunicação na PUC, recebeu do irmão Demócrito a missão de implantar a tal rádio FM. Assim, visitou vários estados, e, na rádio Globo do Rio de Janeiro, conheceu Jaime Azulai, que se tornou autor do projeto de montagem da emissora. Em fevereiro de 1980 seria erguida a torre de rádio nos jardins do Edifício Demócrito Rocha, sede do jornal, onde também estavam sendo instalados os estúdios, e, em março, uma festa no Náutico comemoraria a novidade. Nela, a entrega do “Troféu João Dummar”, homenagem de O POVO a personalidades da radiofonia cearense, como Eduardo Campos, Paulo Cabral, João Ramos, Guilherme Neto, Rômulo Siqueira, José Pessoa de Araújo, Flávio Parente, Afrânio Peixoto, Neide Maia e Mozart Marinho. A FM do POVO 95,5 popularizou-se rapidamente. Com espaço reduzido para anúncios, era comum anunciantes na espera. No avanço das novidades, montou um estúdio especial na Volta da Jurema, “point” da cidade, ao lado do anfiteatro, onde fazia promoções, atendia o público, recebia convidados, como o latino-americano Belchior em apresentação para cerca de 4.000 pessoas. Pouco depois, em agosto de 1981, a Associação dos Diretores de Vendas do Brasil outorgou o título “Top Marketing” para a FM do POVO.

Ademais, Demócrito Dummar já anunciava nos corredores que algo maior estava para acontecer: A rádio AM do POVO. De fato, em 1982, Jaime Azulai chegou à cidade trazendo uma equipe. A ideia era montar uma emissora dinâmica, com muita prestação de serviços de utilidade pública, mas também com notícias, bom-humor, música e esporte. O público ouvinte teria que ser ouvido. Lá ele participaria: “Audiência fiel é audiência correspondida.” Foi quase um mês de treinamento, simulação “em off”, ajustes dos equipamentos de última geração e, assim, às 5 horas da manhã, de 25 de março de 1982, 60 anos depois da primeira transmissão radiofônica brasileira, entra no ar, na frequência de 1.010 quilohertz, o “bom-dia” do locutor Paulo Roberto, da rádio AM do POVO, “a companheira”: “Uma nova voz está ecoando, hoje, transmitida pelas ondas eletromagnéticas que se propagam no espaço celeste cearense.” Em breve, menos de seis meses, todos sabiam que ali estava sendo construída a “escola do rádio”, modelo a ser seguido, líder de audiência, tecnicamente equipada e com uma programação que concorria com as melhores emissoras brasileiras. Não mais tarde, os concorrentes locais passaram a copiar os formatos dos quadros e tentar contratar seus profissionais.

A equipe radiojornalística era inédita. Abastecia a rádio, ainda nas primeiras horas do dia, de notícias colhidas nas ruas — por meio de uma unidade móvel —, mas também por meio de agências nacionais e internacionais. Muitos dos grandes jornalistas e comunicadores que atuam hoje no Ceará passaram por essa redação.

As vinhetas eram assinadas por Dominguinhos, Lulu Santos e Lincoln Olivetti.

O público também reconhecia o diferencial da rádio e passou a frequentar os estúdios, coisa impensável naqueles tempos. Nos portões de O POVO, filas de ouvintes e fãs querendo ver de perto e conseguir autógrafos dos locutores e/ou artistas que vinham aos programas.

O nosso radialista-mor Narcélio Limaverde chegou a comentar, conforme afirma Nonato Albuquerque, “(a AM do POVO) deixou abismada a concorrência”. E não é para menos, pois antes dela, herança da ditadura, as rádios abriram mão da missão de informar, deixando a sua grade quase que completamente tomada por programação musical. Nonato continua: “(...) o vitrolão dominava e comunicadores eram obrigados só a dizer a hora e a identificação da emissora”.

Merece destaque o programa “Debates do POVO”, que surgiu inicialmente como quadro de encerramento de um programa da manhã. O “Debates...”, entretanto, tinha potencial e ganhou seu próprio espaço. Por ele passaram diversas pessoas, dentre as quais Carlos D’Alge, Themístocles de Castro e Silva e, mais tarde, Adísia Sá — que também foi diretora e a primeira ouvidora da rádio. O sucesso foi grande, audiência garantida e estendida para o programa que o seguia: a “Patrulha Policial”.

Aliás, fato curioso apontado por José Raymundo Costa: em 8 de novembro de 1984, cinegrafistas da BBC de Londres, realizando um documentário no Brasil, gravaram em seus estúdios o programa “Debates do POVO”.

Em 17 de fevereiro de 1984, com sucesso também na radiodifusão, Demócrito Dummar foi eleito e tomou posse da presidência da Associação Cearense de Rádio e Televisão (ACERT).

A AM do POVO, em maio de 1986, passou a transmitir em som estéreo, de alta definição, sendo a primeira do Norte e Nordeste do Brasil nesta categoria.

Com 31 anos de existência, a AM do POVO foi no Ceará, além da grande escola do rádio, a mensageira das grandes repercussões na cobertura da queda do avião da VASP em Pacatuba, do movimento “Diretas Já!”, da rebelião do presídio — que teve como refém D. Aloísio de Lorscheider —, da doença do Papa João Paulo II, da morte de Ayrton Senna, dentre outras. Fátima Abreu, atual diretora e criadora da programação da querida FM Assembleia, cita um momento de prestação de serviço quando lá trabalhava: durante a cheia de 1990, a rádio habilmente solicitou o auxílio do Sindicato dos Taxistas no mapeamento de ruas trafegáveis e de pontos comprometidos da cidade, conferindo enorme audiência e solicitações de ouvintes.

Em junho de 1986, Carmen Lúcia passou a residir no Rio de Janeiro — retornou mais tarde e montou a excelente FM Tempo 103,9.

Em 2013, o Grupo de Comunicação O POVO dá continuidade ao sonho de João Dummar, aposta no rádio, o “queridinho” dos veículos de comunicação. Melhor, o aprimora, conquistando novas parcerias e novos espaços de qualidade, hoje, apresentados por meio da Rádio Globo/O POVO AM 1.010, O POVO/CBN 95,5 FM (a única da categoria “All News” no Ceará) e da Calypso FM 106,7, emissoras que pulsam na frequência de O POVO.



Para saber mais: “AM do POVO: trajetória de uma rádio pioneira – 1982-2012”, da jornalista Adísia Sá, pelas Edições Demócrito Rocha.

sábado, 15 de junho de 2013

"No Escuro", conto de Vera Lúcia Morais (15.6)


No escuro, de olhos fechados e o sono não chega. Há quanto tempo estou assim, imóvel, tentando não pensar em nada... Duas horas? Nem sei... Súbito, ouço a porta de meu quarto se abrir e os passos de uma criancinha correndo para a minha cama. Joga-se e se encosta toda em mim, aconchegando-se. Apesar do susto, continuo imóvel. Lembro-me imediatamente de minha filha: era assim que ela fazia todas as noites. Mal ouso respirar. Logo a criança se afasta para a beira da cama e lá permanece. A porta se abre pela segunda vez e reconheço os passos de meu marido em direção ao banheiro. Minutos depois sai sem nada falar. Penso: voltou para a cadeira do papai onde gosta de dormir diante da televisão ligada, lá na sala. Não parece ter notado nada fora dos eixos. Acho que finalmente cochilei, mas logo abri os olhos. Ainda estava escuro, começando a clarear. Ninguém no quarto, somente eu e uma tremenda sensação de vazio. Senti um mal-estar de mundos sombrios, nas caladas da noite. Fui ao quarto de minha filha que estava pacificamente dormindo. Sentei na beirada da cama e ela, pressentindo minha presença, com a voz arrastada, perguntou: — Que foi, mãe? Eu respondi: Nada, você está bem? Acho que tive um pesadelo esquisito... Voltei à cena inusitada: sensações muito nítidas impregnadas em mim, como se conseguisse visualizar a cena, mesmo de olhos fechados. No dia seguinte, ainda abalada pela imersão dessa realidade absurda no meu real, comentei o fato com minha empregada. — Foi alma pedindo reza, dona Vera. A senhora rezou? Não, não rezei. Mas as imagens fantásticas e aquele susto estranho, irrompendo inesperado, me perseguem até hoje. Em que esferas do inconsciente levitei?

quarta-feira, 5 de junho de 2013

"O POVO: 85 anos presente no Ceará X", de Raymundo Netto (5.6)


“O povo é que diz: jornal é O POVO”
(slogan adotado a partir de janeiro de 1976)

5 de janeiro de 1916. Demócrito e Creusa Rocha recebiam Albaniza, a Izinha, filha primeira do casal. Demócrito, na época telegrafista, morava com a esposa na casa de Maroca, sua cunhada, e Virgílio Porto. Desde pequena, Albaniza demonstrava imensa afinidade com o pai. Envolvia-se em seu braço e ouvia, em silêncio, as longas conversas com os amigos e correligionários, assistindo aquilo que os demais leriam apenas em seus artigos publicados, mais tarde, em jornal. Assim, aprendia a “ler” as pessoas, a conhecer a sua natureza, pelo olhar, muitas vezes nem tão poético, do pai. Também de Demócrito herdou a paixão musical, acompanhando a família em audições de óperas ou de música popular, além dos serões litero-musicais da Casa de Juvenal Galeno. Por outro lado, não interessava as prendas domésticas. Nem costurar, bordar ou cozinhar. Adolescente vaidosa, gostava de vestidos e perfumes. Não fosse apegada aos estudos como a irmã Lúcia, adorava ler romances e sonhar.
Em 1929, Demócrito chegou a casa e apresentou à família seu novo secretário e redator: um jovem magro de olhos expressivos escondidos por óculos redondos. Era Paulo Sarasate, filho do maestro Henrique Jorge. Bastava isso, Creuza já lhe tinha apreço. Um lanço de destino despertava para Paulo e Albaniza, e, com pouco – e certa preferência da futura sogra – firmaram namoro adornado de paixões comuns como a política e a literatura. O pai dizia: “Casamento só depois que Izinha se formar”, o que se realizou em 1936, no dia 3 de setembro, às 15 horas, na igreja do Coração de Jesus do Rio de Janeiro, capital da República, onde Demócrito atuava na Câmara de Deputados.
Na volta ao Ceará, o esposo logo assumiria a carreira política, atuando como deputado (estadual, depois federal) e governador – nesse período, ela assumiu a direção da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Ao seu lado, era atuante, cheia de convicções, confidente, companheira de sua vida política e pública. Mas a rotina dos bastidores obscuros da política, nos quais se revela a falta de limites da vergonha e da ambição, o abalava. Momentos difíceis que culminaram em sua renúncia ao cargo.
Paulo e Albaniza não tiveram filhos. Assim, Lúcia e João Dummar “emprestaram” seus seis filhos ao casal, em especial, o primogênito Demócrito Dummar, que foi, desde jovem, numa espécie de ritual de passagem de família, preparado para assumir as rédeas de O POVO.
A união do casal durou 32 anos, encerrada após o falecimento do, então senador, Paulo Sarasate, em junho de 1968, devido a uma embolia pulmonar pós-operatória.
No entanto, Albaniza assumiria a presidência de O POVO apenas em 1974, após a morte da mãe, embora atuasse como diretora superintendente, reconhecendo e estimulando os colaboradores cuja liderança e competência lhe eram notórias. Entendia ela que as pessoas é que faziam a diferença. Não raro, em conversas com funcionários mais antigos do jornal, contam-me histórias de algumas que por ele passaram, que ingressaram em funções menores e que, aos poucos, foram conquistando posições mais elevadas e de maior responsabilidade na empresa. Leal, também ela costumava demonstrar sua gratidão fosse como fosse, muitas vezes contratando filhos, irmãos, amigos e parentes de colaboradores fiéis ao jornal. Para ela, o grande termômetro desse trabalho podia ser verificado na leitura da edição do dia de todos os dias de O POVO.
Segundo a jornalista Adísia Sá, sob sua presidência, na vanguarda da imprensa nacional e na tentativa do retorno à prática democrática, O POVO foi “um dos precursores da abertura política no país. (...) espaços de opinião foram ampliados e o jornal passou a exercitar o pluralismo como expressão do seu cotidiano”. O movimento “Diretas Já”, por exemplo, alcançou vulto no Ceará por meio de suas páginas.
Nunca se esqueceu de sua infância, das dificuldades financeiras experimentadas pelos pais, das restrições por conta do sonho paterno de construção de um grande jornal. O espírito de Demócrito saltava nela: gostava de elogiar aqueles que acertavam, mas era dura com quem errava. Repetia: “Não atacamos, combatemos; não bajulamos, enaltecemos.”
O POVO, no período de sua presidência, passou a atuar no movimento de emancipação da mulher; desde 1974, consolidou a sua sede na avenida Aguanambi; em 1975, foi o primeiro jornal do Norte-Nordeste a chegar em Brasília e comemorou o feito de ser o maior parque gráfico da imprensa cearense e um dos maiores do Nordeste; inaugurou duas emissoras de rádio – uma estação AM e outra FM; e, em janeiro de 1984, lançou o “Jornal do Leitor”.
Albaniza, em 1985, assinou o ato de criação da Fundação Demócrito Rocha e ainda lutou para conseguir a concessão de um canal de televisão, o que lhe foi prometido, mas não cumprido, na época, pelo presidente José Sarney.
Um dia, após sofrer a fratura de uma costela, descobriu um câncer. Submeteu-se à cirurgia. Fez quimioterapia. O seu corpo enfraquecia, alimentava-se por meio de sonda – só aceitava a refeição que vinha de Messejana, feita pelas mãos da irmã Lúcia –, respirava com apoio de um balãozinho de oxigênio, mas resistia, contando com a companhia constante de Lúcia Maria e da sobrinha-neta-afilhada, ainda adolescente, Luciana. Tudo menos internar-se! Não queria se afastar do seu jardim – da casa da Aldeota –, gostava de estar entre as flores, apreciar-lhes a beleza, pedir de empréstimo seus perfumes, que a aproximavam da infância feliz e de seus quintais de brinquedos, canções e histórias.

Em 25 de maio de 1985, porém, chegava inconsciente ao hospital Prontocárdio onde, às 9 horas, concluiu o seu curso de vida, deixando no ar o vapor das rosas a aquecer o leito azul das tardes vindouras em esperanças.