segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

"Fortalezantiga: resumo adaptado", de Raymundo Netto para O POVO

 


Para Narcélio Limaverde

Era uma segunda-feira, dia de almas e de sapateiro. Sentava num dos bancos da praça do Ferreira, o que fica em frente ao cine São Luiz, e, lançando pipocas aos pombos, nem acreditava: o governo estadual comprara da família de Luiz Severiano Ribeiro o prédio do cinema, atualmente o mais antigo inda em pé na cidade e, sem dúvida, um dos mais bonitos do país. Até trasanteontem, ameaçavam vesti-lo de manto neopentecostal ou de plantar na sua boca de cena a tribuna da comédia dos edis, dois pecados mortais.

Hoje, finalmente, a esperança tocava os carrilhões deste coração malamado. Foi quando vi surgir ali, dobrando a frustrada rua do Ouvidor cabeça-chata, um garoto, o Narcelinho da avenida do Imperador. Estranho: vinha de bermuda e chinelinha, mas vestia um paletó de alpaca. Debaixo do braço esquerdo trazia um volume do Tesouros da Juventude, um Almanaque Bristol e um exemplar da raríssima Scena muda, revista de cinema. Na mão direita, um radinho de pilha enamorava o ouvido. Olhou para as janelas do sobrado do Majestic – como se estranhasse os cúmplices lençóis alarmando amores clandestinos – e sentou-se ao meu lado, num formal boa-tarde, se pondo a admirar com certo elã, à João Ramos, seu reloginho Polono, de corda, que, segundo ele, “tinha até ponteiro dos segundos”. Não queria crer, e assim mesmo perguntei: “Narcelinho, não me diga que você veio para assistir a algum filme neste cinema?” Não deu outra. Era sim! Não tinha pressa, esperaria abrir a bilheteria: “Havia alugado até o paletó no Cabana, não havia? Ademais, não sou nem a Fátima Miris para ficar de troca-troca de roupas.” Disse também que vinha da aula de datilografia do seu Quincas, que era parede e meia com sua casa, e não tinha mesmo o que fazer. Sua irmã, a Reine, havia lhe pedido para acompanhá-la até o Patronato Nossa Senhora Auxiliadora, pois como não tardava o dezembro, haviam começado os ensaios e preparativos para o famoso pastoril das irmãs Breves, e ela interpretava um dos papéis. “Na saída, ainda cheguei a tirar onda com o jumentinho do seu Antônio verdureiro, responsável por levar no lombo o sagrado bonequinho Jesus.” E cadê os seus amigos? Não tem amigos? “Eu? Tenho ibope, sou muito popular. Aliás, tenho tantos amigos que nem conheço todos! E, afora o cinema, eu gosto mesmo é do rádio... Eu amo o rádio!” Quando perguntei que programas costumava ouvir, respondeu-me: “‘Coisas que o tempo levou’, ‘Bazar de música’ e a ‘Hora da Saudade’, todos da perrenove (PRE-9).” Mas quem é que apresenta esses programas? “O speaker? É o papai! Para ele, o rádio nem é mais trabalho, mas um vício!”

Tinha que ir-me. Não sabia o que fazer com Narcelinho, afinal, o menino teria que esperar muito até que o cine São Luiz retornasse as suas atividades. Parecia não se importar. Enquanto não abrisse, ele bateria perna, encontraria outros meninos, iriam ao parque Shangai da praça José de Alencar, à Feira da Mocidade da praça do Liceu, à Festa da Imprensa no Passeio Público, passariam no La conga para alugar calções de banho e pulariam no mar de Iracema ou mesmo, na pior das hipóteses, ficariam naquela praça, acompanhando os casais morcegando nos bondes: “Raymundo, não tenho pressa para ir a canto nenhum, afinal, a gente enverga, mas não quebra! Tudo o que quis na minha vida, felizmente eu consegui. Minhas maiores paixões e amores nunca me abandonaram, assim como eu nunca os abandonei. Trabalho há anos naquilo que me dá sentido à vida, e se me perguntassem, faria tudo de novo. Só espero e torço para não ser por minha voz, no ar e ao vivo, o anúncio do fim do mundo.

 

*resumo adaptado do texto original publicado em Crônicas Absurdas de Segunda (2015), uma homenagem ao querido amigo e radialista Narcélio Limaverde, falecido em 26.01.2022.




sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

"O Bom Cabrito", de Pedro Salgueiro para O POVO


Quando escuto uma gasta frase martelada pelo nosso antiquíssimo senso comum me lembro de meu velho pai, que sempre se socorria com as escadas dessas divinas soluções fáceis e – mesmo nas dificuldades – tinha uma pérola tal: “Atrás do pobre, anda um bicho!”.

Ainda ontem me lembrei dessas frases feitas – boas muletas do bom senso –, quando um jovem poeta, prestes a publicar seu primeiro livro, teve a infeliz ideia de me pedir conselhos de como se tornar um escritor de sucesso (acho que estou naquela idade em que os outros imaginam que criamos juízo, quando nossos ralos cabelos brancos são confundidos com sabedoria... Então tive o impulso de ser honesto e lhe dizer que não sabia, até porque se soubesse teria antes usado em proveito próprio, não é mesmo?) – primeiro me assustei com a pergunta, olhei de lado pra fugir da mirada de espera e esperança estampada naquele rosto juvenil (há como gosto das expressões batidas!) e tentei raciocinar, procurando lá no fundo do baú da memória alguma sentença edificante, usada por algum intelectual pedante, desses que rimam em prosa e falam “a minha obra”... Mas sabemos que nessas horas a memória, diferente dos adjetivos, raramente nos socorre.

Lembrei, então, o final da década de 1980, quando – ainda bem jovem e querendo também descobrir a “fórmula” de como escrever com sucesso – andava à procura de ajuda de escrevinhadores mais velhos... Mas claro que, por timidez, não ousava me aproximar de nenhum dos medalhões que tinham livros publicados e pertenciam a academias, faculdades e/ou grupos literários, no máximo inquiria algum companheiro um pouco mais velho, que também estavam naquela fase de angústias e incertezas sobre a descoberta do ofício.

Aproximei-me da turma que insistia em participar dos raros concursos literários que vez por outra surgiam; alguns já tinham vencido vários prêmios e exibiam uma áurea de grandes gurus, falavam com orgulho dos feitos, porém não me davam “confiança”, como se dissessem: “Se vira, amador!”... Outros, mais humildes, trocavam informações e dicas, eram os que ficavam nas últimas colocações dos certames (desde essa época intuí que os fracassados somos os mais solidários, acrescentando outro senso comum à minha vasta, e inútil, coleção).

Como o passar do tempo (claro, e ele haveria de não passar?) e alguns resultados favoráveis fui adentrando (arre!) aquela casta dos lacônicos iniciados, já detentor de alguns conhecimentos e segredos... Fiz inscrição numa das primeiras oficinas de criação literária que aconteceram por aqui, ministrada pelo poeta Diogo Fontenelle e pela contista Isa Magalhães, onde conheci outros escritores iniciantes e fizemos exaustivos e variados exercícios de escrita, mas principalmente aprendemos a trabalhar em conjunto, trocamos textos e experiências de leitura, com amizade e respeito e em pé de igualdade nos nossos titubeios... Restando, até hoje, essa amizade que persiste entre os hoje já velhos escritores iniciantes.

Depois desses milésimos de segundos em que a pergunta do garoto permaneceu sem resposta, decidi falar qualquer coisa que soasse como resposta honesta... Então respirei fundo, fiz pose de intelectual, molhei a garganta e, atrapalhado, tasquei:

“Leia os Russos e tenha sorte!”

Mas como não me soou convincente nem compreensível – o que notei pela expressão de espanto do jovem escritor – resolvi completar com uma das velhas e gasta frase de meu pai:

“E não esqueça: O bom cabrito não berra!”






 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

"Ode ao Amor e à Morte", de Raymundo Netto para O POVO


No tempo da era num pedaço esquecido do agreste...

As folhas descansavam adormecidas onde uma mulher, em águas rasas da lagoa, deliciava-se. Molhava os cabelos lisos, negros e curtos e, com as mãos bramosas, esfregava o pescoço.

Um observador, descalço, caminhava sobre as gretas secas do chão e, cortejando-a – ela a dançar ao redor de uma bacia de barro –, arriscava palavras absurdas num instante de amor.

Em meio a tudo, via-se, sob o luar frio, os pequenos seios alvos e azuis e os mamilos orlados em rosas. Sua pele era úmida e branca de leite, beijocada de inquietudes e sossego:  “Quanta vida contida naquele berço de pecadilhos viciosos!”

Não havia vento, não havia frio, mas calor também não havia. O verde era xique-xique, mandacaru, agávea... “O meu boi morreu. O que será de mim? Manda buscar outro, menina, lá no Piauí.”

Pausa! – noite gelada – Num inesperado sonho, à cabeça da mulher, luminou-se a ideia de casar. A noite findava, clareava-se a manhã ardente! Sol a pino, caçada a tejos! Então, sem muito pensar, pensou: “Quem seria o seu par? Quem haveria de sê-lo, naquele lugar tão ermo e esquecido?” Uma jiboia solitária arrastava um linguajar sem venenos: “Um rei? Por que não? Teria um mundo de riquezas e serviçais. Desejos um a um satisfeitos. Quem sabe não se arrastaria nas asas da luxúria?” Mas teria tudo, mesmo? Um jovem vaqueiro não poderia dar-lhe mais? Talvez apenas um pouco de amor... “Amor? Ôxe, por que não? O amor ela não teria mesmo em troca de seu maior tesouro!” Convenceu-se, inebriada no licor do mel da jandaíra.

Um cão-cão solitário de arregalados olhos amarelos anunciaria o iminente perigo; as folhas cairiam; a mata esbranqueceria; os espinhos se retesariam e apontariam para o céu desestrelado!

O rei, num arremedo de si mesmo, ficaria furioso. Ameaçaria e travaria embates, numa peleja sem fim contra o pobre aventureiro, e ele certamente não seria páreo aos golpes do malvado. “Naquele reino, já se sabia: quanto mais se tinha, menos se contentava em ver a felicidade por tão pouco...”, pensava o observador apaixonado de cócoras na lagoa.

Assim, o aventureiro, passados nele os maneadores, assistiria indefeso ao amputar de seu orgulho. Nada mais restaria a ele, a não ser a fuga logrativa da morte: suicidar-se-ia!

Os estilhaços de seu amor se esparramariam, cobertos em lama, no fundo de um caçuá de cipós. O juazeiro, única testemunha da iniquidade, triste se desgalharia.

Mas ninguém pode, simplesmente, destruir o que um coração constrói! A moça branca de seridó não descansará enquanto não descobrir um meio, qualquer um, de separar a vida da morte e, então, poder ser feliz com o homem que ela ama.

“Meu senhor dono da casa, faz favor de me escutar. Eu pergunto pro senhor se tem Reis para nos dar...”





 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

"O Beco do Pilão", de Pedro Salgueiro para O POVO

 

Sempre me atraíram as ruas sem saída, como se fossem nada mais que uma negação delas mesmas: afinal para que serve uma via senão para comunicar-se com outras, levar enxurradas de ventos e gentes de um lado pra outros? Tão perigosas suas entranhas que geralmente nos mostram como aviso: Cuidado – Rua Sem Saída!

Quem, que não vá visitar alguém que more em tal sítio ou oferecer algum produto aos seus moradores, irá arriscar pegadas em seu trajeto.

Confesso: já me fiz de desentendido, fingi baixar a cabeça e segui adiante rumo ao fundo de muitas ruas sem passagens... Coisa de louco? Talvez, mas quem sabe “sabedoria” de sujeito curioso de conhecer o que há por trás das coisas, mesmos as tão obscuras ou óbvias.

Apenas chegava ao final e dava meia volta, antes olhava de soslaio para ver se tinha plateia... Caso sim, balançava a cabeça como se fosse mais um distraído que não mirou para frente e voltava fingindo vergonha pelo patético descuido; caso não houvesse bisbilhoteiros, voltava observando tudo, o “jacaré” de flandres enferrujado numa fachada, o desolado telhadinho em “mão francesa” pendente sobre uma porta, aqueles ângulos todos tão particulares e presenciados por bem poucos.

Que estranho, pensava, chegar ao fundo de uma reles rua sem saída: sentia-me ao mesmo tempo bobo e esperto, idiota e sábio... Afinal pouquíssimos provariam essa deliciosa experiência de entrar e sair impunimente de uma rua sem passagem.

De início não as procurava intencionalmente, apenas aproveitava a coincidência de encontrá-las por aí ao léu, esquecidas em sua estranheza única: então passei a caçá-las, de início sem pressa e, que vergonha!, com o andar dos anos com avidez dos que buscam grandes tesouros... Cheguei mesmo a alugar um casebre em determinada vila sem saída na Rua Bárbara de Alencar quase esquina com Idelfonso Albano: confesso que me afeiçoei tanto à vilinha que descobri com moradores mais velhos que um dia ela tivera a charmosa alcunha de Vila Amora, então encomendei placa imitando a das ruas importantes e num sábado bem cedo pregamos – com ajuda de dois adolescentes que adoravam jogar bola usando como trave exatamente a parede dos fundos quase colada à minha porta – a placa azul com letras brancas que ainda hoje se encontra por lá.

Com os anos me aquietei de buscar essas excrescências urbanas, conformei-me com as chatas ruas normais, nas quais se transita sem motivos que não sejam os triviais: deslocar-se de um canto a outros, cortar distâncias em menos tempo, pois rumando célere em direção à morte não me apetecia mais perder tempo com inutilidades.

Até o dia que me deparei com o delicioso livro de Naguib Mahfuz, O Beco do Pilão, que ambienta toda sua narrativa num velho beco sem saída do Cairo, onde vidas humanas (mas não só) chafurdam: “Muitos testemunhos afirmam que o Beco do Pilão era uma das pérolas de seu tempo e que brilhou como uma estrela resplandecente na história do Cairo. (...) Apesar de estar quase totalmente isolado do curso do mundo, pulsa nesse beco uma vida própria que guarda as raízes da vida como um todo e preserva, por isso mesmo, uma infinidade de segredos do mundo exterior”.

Desde então (já que as pernas não me ajudam mais a procurá-las) busco nos livros, fotografias em jornais e revistas, mas principalmente na memória as muitas ruas sem saída que percorri pela vida inteira: E creio que o farei até o final dos meus dias, quando – mais uma vez curioso e bobo – entrarei na mais bela e trágica das ruas sem saída: então não mais terei coragem de me fazer de desentendido, fingindo descuido, e voltar meneando a cabeça!



"Hoje eu Conheci a Poesia", de Raymundo Netto para Thiago de Mello (2006)


Hoje eu conheci a poesia!

Sim, minha amiga, ela vinha caminhando lenta, pequena, cabelos encanecidos, lábios grossos e um olhar embaciado.

Ela, completamente branca como a nuvem que se banha no sol, gesticulava grave ao ar em dedos finos, nodosos, seguros.

Falava num cantar ritmado sobre a beleza da vida, do amor e de amar.

Falava de gente: a matéria-prima do pecado e a fronteira rente da salvação!

A poesia gotejava, vagarosa, de uma folha verde de grossas nervuras num dia de chuva;

Fixava curiosa com olhos amendoados a descoberta de um ciclope;

Borbulhava tensa no confrontamento que singra nas vaidades de rios;

Desencrespava os negros cabelos e se mostrava firme na face grácil de mulheres em vestes molhadas, esculpidas na doçura da incerteza e na certeza da dúvida.

Gargalhava na sabedoria daqueles que ignoram;

Perseverava, cria e lutava com a delicadeza da simplicidade infrequente dos grandes cavaleiros. Grandes? Existe isso?

Sim, minha cara, hoje eu conhecia a poesia.

Com todo o respeito postava-se em pé, suas palavras ecoavam na flanância forjada na trilha perdida dos anos.

Cada golpe no peito tangia os espíritos belicosos, desabrochava versos no coração.

Visionária, a poesia descortinava o poeta, além de tudo, o legente.

É, querida amiga, hoje eu finalmente descobri, após anos de abstinência, que poesia rima com utopia!

 

Texto de Raymundo Netto para Ana Miranda, após conhecer pessoalmente o poeta Thiago de Mello, apresentado por ela, em 8 de junho de 2006. Mais tarde, como curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará, convidaria Thiago de Mello, juntamente com Carlos Heitor Cony para compartilharem uma mesa poética.




 


sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

7 de janeiro de 2022: 94 anos do jornal O POVO

 

“(...) É no jornal que o povo encontra o seu pão espiritual de cada dia. O jornal descortina-lhe o mundo, vencendo distâncias. [...] Quando o povo geme escravo, entorpecido pelas algemas do cativeiro, indiferente à violência paralisante do grilhão, o jornal é o sangue novo, forte e generoso a nutrir-lhe as células dormentes, a despertar-lhe os neurônios amortecidos, a ondear-lhe, nas veias, a torrente vigorosa e enérgica da revolta. O povo precisa de mais gritos que o estimulem, de mais vozes que lhe falem ao sentimento. Eis porque surgimos...”

Esse é um fragmento do primeiro editorial d’ O POVO, o jornal mais antigo e o único diário em exercício e impresso no Ceará, publicado em 7 de janeiro de 1928, ou seja, há 94 anos. Foi escrito pelo seu fundador, o jornalista, telegrafista, odontólogo, político e poeta baiano Demócrito Rocha (1888-1943).

Quem conhece um pouco da história do Ceará sabe que é impossível se passar pelas décadas de 10 a 40 do século XX sem tocar em seu nome. Na década de 20, em especial, por meio de suas “Notas”, a princípio no periódico O Ceará e depois em O POVO, era, em um tempo sem rádio, TV ou internet, a legítima voz do povo que acolhera em seu coração, razão pela qual teria sido, na época, covardemente surrado e humilhado em emboscada em praça pública por 12 policiais armados a mando do governador.

Então, decidiria: fundaria o seu próprio periódico na marra, por atrevimento, com pouquíssimos recursos e quase nenhuma condição, movido pelo sonho de edificar o jornal que ele queria, mais justo, livre e independente, inovando o fazer da imprensa desde então.

Com início num sobradinho da praça dos Leões, um gregário Demócrito criava campanhas, concursos, promoções, poemas, lia caligrafias, atraía intelectuais e escritores, idealizava projetos musicais na recente rádio PRE-9, elaborava estratégias comerciais, participava de reuniões artísticas, políticas e sociais de toda natureza. Durante algum tempo, exerceu concomitantemente as carreiras de dentista e de professor da Faculdade de Odontologia – do qual também foi defensor – para ajudar a pagar a folha e manter a sua família: a esposa Creuza e as filhas Albanisa e Lúcia.

Assim, com muita resiliência – e forte dose de teimosia e idealismo – conseguiu sobreviver à quebra da bolsa de Nova York, logo no ano seguinte, além de duas grandes guerras mundiais, às censuras e golpes de estado e a todas as crises nacionais e internacionais que elevavam os preços dos insumos e equipamentos, entre os quais, o imprescindível papel.

O POVO, ele sabia, seria amado e odiado, aclamado e perseguido, de modo que habilmente pressentia quando reagir e/ou quando recuar, tudo ao seu tempo, e nada mais natural para uma folha que trazia entre seus princípios a democracia, princípio esse que Demócrito levou às tribunas quando deputado federal, até ser deposto durante a ditadura Vargas. Idealista, Demócrito não visava ao poder, morrendo sem nunca ter tido uma casa própria ou publicado um único livro seu, ao tempo que publicava e promovia os de outros talentos locais.

Entendo que o jornal O POVO, aos 94 anos, não é a sua diretoria, assim como também não é apenas o seu corpo funcional, menos ainda o edifício que o acolhe. Escorre por ele o sangue Demócrito Rocha – talvez o mesmo citado em seu famoso poema “O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta” – e de todos os seus sucessores: Creuza do Carmo Rocha, Paulo Sarasate, Albanisa Sarasate, Demócrito Rocha Dummar e, hoje, Luciana Dummar.

Esse acervo de histórias é um patrimônio legitimamente cearense e que vai mais além, trazendo nessa “artéria aberta” o espírito de todos aqueles que por essa escola passaram um dia. De personalidades reconhecidas a pessoas comuns que encontramos nas ruas, nos bares, nas igrejas, nas praças e que, ao saberem que fazemos parte do O POVO, nos relatam histórias suas ou de parentes e amigos que ali escreveram ou trabalharam, ou mesmo as de assinantes históricos e de matérias que os impactaram. Já conheci jornalistas, editores, gráficos e até ex-gazeteiros que se recordam do som das pesadas máquinas ou das campainhas que indicavam a hora de distribuir o vespertino.

O jornal de Demócrito, aniversariante do dia, acessível em grande audiência pelos impressos, celulares, tablets, computadores, rádio e TV, é presente em 94 anos de história de todos os dias e em todos os segmentos, fazendo as contas para além do calendário, significando e revelando muito mais do que podemos ver, ler, ouvir ou tocar. E tudo isso a partir do sonho de um homem.

 

P.S.: Se você se interessou em conhecer mais sobre a vida e obra de Demócrito Rocha, assista ao vídeo de Os Cearenseshttps://www.youtube.com/watch?v=_fYlVceVoZk



segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

"Invasão" (na íntegra), de Raymundo Netto para O POVO

 


À madrugada, telejornais anunciavam a ocupação de Burak, um paisote totalmente ignorado, não fosse um tabloide sensacionalista revelar ali a existência de uma riqueza ímpar na Terra, misteriosamente intacta, tomando quase todo o seu solo.

Havia um príncipe, diziam “ditador”, que, embora desconhecido, provavelmente não respeitava os direitos civis e usava de força e tirania para dominar o seu povo. Algo assim afronta sempre os Estados Unidos, desinteressado e incondicional defensor da democracia e dos povos sofridos deste Planeta. Não faltaria muito – não tinham provas, mas convicções – para que Burak ameaçasse a vida humana com armas de destruição em massa. Assim, o presidente americano, em seu Oval Room, decidiu enviar tropas para invadi-lo. A ONU, após caríssimos meetings, não concordou, mas eles não quiseram nem saber – afinal a sede da ONU é onde mesmo? – e, sem pudor algum, noticiaram a convocação de toda a inteligência e de seu poderio bélico em uma operação cívica e patriótica – e por que não Cristã? – contra o “inferno terrorista” de Burak. Os jornais de todo o mundo se dirigiram às estreitas fronteiras tentando registrar o conflito. O embate estava lançado, o “grande furo”, o maior massacre da história transmitido via satélite.

A invasão se deu à noite. Confiante, a força militar vinha por terra, pelo céu e pelo mar. Um desfile de tanques blindados, milhares de soldados descendo em flores de paraquedas. Uns, por trás de escudos, munidos de metralhadoras, granadas e bazucas, se jogavam e arrastavam-se pelas areias e por trás de rochas negras. Outros, desciam velozes de tanques anfíbios pelo mar. Aviões reluzentes iniciaram o bombardeio aéreo. Uma produção digna de Hollywood. Os oficiais, com trajes de segurança, falavam de liberdade aos jornalistas: “Não iria custar aquela rendição. Seria uma revolução sem sangue!”

Porém, após tanto barulho, em meio à fumaça que se espalhava inofensiva, todos se perguntavam: “Cadê o Exército buraquiano?”. Os soldados, confusos e ansiosos para mandar bala, se angustiavam com o silêncio sem fim. Queriam aparecer na TV, heróis que eram... ou que afirmavam que eles seriam. Os repórteres entediavam a audiência com reclames de sabão em pó. Um suspense literalmente de matar, mas ninguém morria, ninguém aparecia, ninguém se dignava a morrer em Burak.

Ao comando, os soldados adentraram o terreno cada vez mais. Já entravam em palhoças, apontando as armas, sedentos de qualquer coisa – inclusive de pequenos saques ou abusos de mulheres, afinal, eram apenas inimigas –, mas nada encontravam. Nem soldados, nem civis. Ninguém. Nada. Já temiam e tremiam à espera do aguardado momento.

Na escuridão quente como brasa, imagine que um por um daqueles soldados começaram a tombar. Ouviu-se um primeiro grito antes do papocar insano de metralhadoras: “He is dead! Deaaad!” Ninguém via o que os acertava, de onde vinha, se vinha, eles caíam ou sumiam, restando-lhes apenas os trajes semienterrados nas areias. Com pouco, em meio ao pânico e à cegueira da noite, os soldados acertavam uns aos outros. Granadas e armas explodiam em cadeia. Em toda a parte, pessoas em chamas. O pavor só não era maior que a carnificina. Homens fortemente armados corriam no cessar fogo. As câmeras de TV, como espalha-brasas, mexiam-se em vão para todos os lados, só conseguindo registrar mesmo a retirada em fuga, o choro em calças borradas num escandaloso pânico não americano.

Nunca se soube explicar o que aconteceu. No geral, pessoas comentavam: “Como aquele povo insignificante e invisível ao mundo, pôde chutar os fundos da maior Potência Mundial, herdeira da Terra e de seus quiosques em shoppings?”

Em Burak, distante das câmeras de TV, aquele povo emergia das areias: eram crianças, apenas elas, todas cegas, pálidas, magérrimas e sorridentes, encordoadas com pedras e paus, se amostrando então em trajes novos de assassinos e com a mais rara e legítima vontade de viver.