quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Quando o Amor é de Graça I: As Primeiras Filhas", crônica de Raymundo Netto para O POVO


http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2011/06/29/noticiavidaeartejornal,2261237/quando-o-amor-e-de-graca-i-as-primeiras-filhas.shtml

“São duas!” Era o que saltava à garganta a um telefone público numa manhã ventosa da praça da Igreja do Carmo, em 1999. Saíra da clínica onde Ana Rachel, minha esposa, grávida, fazia exame ultrassonográfico. “São duas!”: Luana Rachel e Liana Rebeca. A Lua e a Lia de ainda hoje e sempre.

Casados há quatro anos, aguardávamos melhor momento para ter filhos — hoje, elas têm onze, e vejo, pelos critérios da época, tal momento ainda não chegou —, mas um dia, ao ser tangido pela sensação involuntária de que casamento sem filhos é dividir morada, decidi planejar a “gravidez familiar”. O estranho nisso? Não comentei tal plano com a futura gestante, certo de ela ser a maior interessada — até hoje não acredita em patavina da história que agora escrevo.

Pus-me a escolher o destino deste “seria” (como ainda não “era”, ao invés de “ser”, “seria”): nasceria em junho, canceriana — como eu —, signo artístico, emotivo, cujo astro regente é a Lua... Preferia fosse menina — há de sempre me gostava mais as mulheres — e o nome gritava: Lua Rachel. Tudo a ver! — mais tarde, pensando na possibilidade de tornar-se motivo de chacota entre coleguinhas despeitadas de classe — haveria de encontrá-las e de ser linda —, “Lua” virou “Luana”.

Para garantir o êxito do meu plano, consultei um ginecologista, tracei cálculos conceptivos, marquei a data de “lançamento”, o dia propício para o “big-bang” e, finalmente, DEUS-e o resultado. Não vinda, ineditamente, a “regra” — nunca me dei bem com regras —, Rachel procurou sua médica. Contrário ao esperado, esta afirmou que a chance de gravidez seria “de uma em mil”, desfiando, sem pena, o seu rosário semiótico de contas micropolicísticas dentre outros motivistos.

Rachel saiu dali certa da condenação, mas eu, embora não saiba baseado em quê, não. Chegou a data de recebimento do exame laboratorial e — “Para quê?” — não foi buscá-lo. Pois fui eu. Resultado positivo: “Rachel, você está grávida!”, contei-lhe ao telefone. E, assim, a expressão dessa alegria em seu rosto nunca vi, mas por motivos que só pondera o imponderável, eu não a esqueço. Ah, claro, não mais voltou àquela médica agourenta que de nunca será contemplada em loterias.

Meses após, íamos à ultrassonografia e, nesse dia, sonhei: olhava com atenção, deitadas na cama, duas meninas bem parecidas, como os são os irmãos, não como gêmeas. Incomodava, deu-me a entender, imaginá-las de parentesco tão próximo e, ao mesmo tempo, completamente estranhas... acordei!

Daí, a surpresa ao exame. O médico, olhando à tela, disse: “Uma menina... Já tem nome?” “Sim, Luana Rachel, doutor” “Rachel? Pois vamos ver agora a Rebeca...” “São duas?” Sim, eram, e eu, dado a crer em “sinais”, aceitei de pronto o batismo de São Doutor: Rebeca. Liana Rebeca. A nossa Lia.

Nasceram assim, minhas DUAS meninas, porém, em oito meses, malogrando o meu plano de canceriano, na madrugada do dia DOIS de maio de DOIS MIL, no quarto 222 da maternidade.

Onze anos depois, como quando naquele sonho, inda as estranho, principalmente no instante em que me reconheço nelas e as abraço como se fora possível tomar-me de volta uma vida inteira.


Raymundo Netto: raymundo.netto@uol.com.br



sábado, 25 de junho de 2011

"Meu Mundinho", poema de Liana Rebeca, minha filha (25.6)


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Esse é o poema de Liana Rebeca, minha filha de 11 anos (uma das duas), publicado no jornalzinho do colégio Agnus, escola em que estuda. Luana também me apresentou um poema, dia desses, mas a Liana, agora, é “autora publicada”. Aguardo o da Lua.


Sair da gaveta pode parecer é difícil, mas ainda mais difícil é retornar a ela, e, ao final, poder e não querer abri-la.


“Meu Mundinho”, título da peça, quase “Meu RayMundinho”.


Inevitável é não quedar-me no dilema de O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa, livro-oráculo que me tomou na adolescência (e não mais me devolveu).


Ela, toda orgulhosa:“Pai, não está bonitinha?”. Eu, a pensar no que significa um “meu mundinho tão sozinho”, mesmo “com campos floridos e parques coloridos”.


As contradições de criança, aceitas e desejáveis de crianças, que vê “o céu então todo estrelado, com a lua no alto, com o céu ensolarado”. Meio barroco. Criança pode tudo... Ah, se nós pudéssemos sempre nos rebelar contra a racionalidade das vidas vazias e tristes dos adultos, tão carentes de poesia.


E para que serve a poesia, Liana, senão para humanizar-nos, lembrar de nossos inlembrados sentimentos não-expressos da nossa vida que se escoa rápida, sempre rápida para ligeira, sem ser (suficientemente) vivida, à beira — com a licença de um Audifax — de desmorrer para sempre, embora “sempre”, assim como o “nunca” (detesto essa palavra agourenta, feito estribilho de corvo de Poe), não existe?


Ah, minha Lia, “este mundo de imaginação” é mesmo “mais bonito que uma canção”, mas é tão difícil de ser trilhado e compreendido. Tanta solidão... Será que é esse o tal “mundinho tão sozinho”?


Beijo grande de seu Papai que a admira, enquanto ama

quarta-feira, 22 de junho de 2011

"O Amigo dos Anjos", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO (22.6)

Foto: Evilázio Ferreira

"Apago o incêndio do olho

com um simples gesto da mão.

Ando com minha bengala:

a perna esquerda mecânica.

Sou o fantasma de minha rua.

O aleijado mais trágico do meu país.

Ninguém me ama

mas sou amigo do Anjo.

Não negocio a paz do morto

nem o silêncio do meio-dia.

Caminho à sombra de Deus.

O sol me ilumina.

Durmo todo o inverno, à beira dos rios.

Acordo no estio com o canto das cigarras.”

(J.A.P)



Ele, que nunca foi íntegro nem inviolável (a provar isso suas mil e duas contradições, seu corpo magro e vulnerável, que sofreu horrores até tombar triste e bestamente no asfalto ainda molhado das últimas chuvas de julho de 2008), nunca pensou em reconhecimento póstumo, dizia a qualquer um que a cota dele queria em vida.

Com sua costumeira lucidez sabia, mais que todos, que morrendo o corpo dificilmente sobreviveria por muito tempo a obra, mesmo a sua, que também sabia mais que outros de seu perene valor.

Mas desconfiava de nossa memória urgente, curta.

Dia três de julho próximo completaremos três anos sem seu corpo magro, sem seu riso simples, sincero, escandaloso e triste.

Mesmo sabendo que sua sombra incorpórea (e sem faltar um só de seus gestos físicos) continua transitando pelas ruas desertas do Benfica.

Continua todo domingo, impreterivelmente, indo à missa na igreja de São Benedito, acompanhado de seus queridos Antonin, Jamaica e Alessandra.

Ele continuará sendo o velho fantasma de preto escanchado no arame farpado dos quintais de nosso conformismo. Misteriosamente colhendo o silêncio com suas mãos invisíveis e tecendo uma mortalha com o nó dos dedos para vestir o próprio corpo magro.

Mesmo sendo ser hoje apenas um retrato destituído de cor e dependurado nas paredes da velha casinha amarela da Vila Cordeiro, o sabemos vivo, vestido e nu, louco e poeta. Acima de tudo um poeta, lúcido e louco, refletido nas mil luas, nos abismos bem fundos dos poços. Continuará como aqueles místicos intocáveis e impossíveis, que viveram sem jamais se conhecerem.

Por isso santos.

E que jamais conhecerão a morte.



* Singela homenagem aos três anos de ausência física de José Alcides Pinto, usando frases de seu poema “Eu”.

"O Poeta de Meia-Tigela", crônica de Ana Miranda para O POVO


Desde que cheguei do Ceará ouço falarem n’O Poeta de Meia-Tigela. Sempre que seu nome vem à tona, é anunciando um debate sobre a conveniência de um nome assim, as opiniões são divididas, uns a favor, uns totalmente contra, alegam todo tipo de argumento: Falta de estima por si mesmo! Inesquecível! Bem-humorado! Brincadeira com coisa séria! Séria? Poesia é brincar com palavras! Orgulho escondido! Estapafúrdio! Genial! Adorável! Patético! Exibido! Extravagante! Temerário! Quimérico! Ridículo! Sofístico! Fabuloso!

Se me perguntam, digo: Gosto.

Acabei conhecendo o poeta no quintal de Pedro Salgueiro, num de seus animados almoços familiares, com direito ao capote que sua mãe, do Pedro, prepara com aquela arte de antigamente. O Poeta de Meia-Tigela chegou com sua bonita mulher. Ele parece mesmo um poeta, também dos velhos tempos, é jovem, muito magro, pálido, de cabelos compridos, ar de filósofo. Tem uma suavidade e delicadeza que cativam. Um ar desamparado que desperta ternura. Fala pouco e baixinho. Tudo natural.

Mas não se enganem com sua aparência e nome, ele é forte, e sua poesia mostra o quanto. Recebi seu livro, Concerto, N° 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema. Na capa, o estudo para “O violinista azul” de Chagall, em que o violinista azul é branco, de camisa verde e toca um violino amarelo. Mas azuis são algumas escamas de suas pernas-sereia, azuis a ave, o telhado, a névoa da bicicleta, o anjo, a sombra da paisagem. Assim como o poeta. Pelas páginas do livro ocorrem diversos desenhos feitos pelo autor, muito bem estruturados em poucos traços, kafkianos. Um deles, no ex-líbris do vate, é ele mesmo: a partir do número 1, um homem recurvado pelo peso da quantidade daquilo que é inteiro e completo. Uma figura pensativa, atenta ao dentro e ao fora, com um desconfiado pé-atrás. “Mas tudo volta ao Um, pois / O Tempo me corrobora”. Tantas as interpretações... tanta loucura do pensamento humano... tudo cabendo dentro de uma palavra que ele criou: Amor, te.


“Deixai para trás os parvos.

Os qu’inda têm ilusão.

De viverem hors-caixão.

De acumularem centavos.

Amor o que tenho a dar-vos.

Pegai do punhal à mão.

E avivai nossa União."


Amar-vos, que é? (M) atar-vos.” Como ele é mesmo filósofo, até dá aulas de filosofia na universidade, os elementos de sua poesia se misturam – algo de cordel, algo de Ceará, algo de sertão, algo de coronel, algo de fome, rato, rabeca, arauto – a toda a corja da mitologia clássica e a nativa. Também suas lembranças, “confesso que não vivi”; suas referências literárias, Dostoiévski, Lúcio Cardoso, Gregório de Matos, Alcides Pinto...; suas inquietações, dúvidas, seu modo de ser, “o sórumbático” ao mesmo tempo só e sorumbático e rumba e ático (da Grécia Central), numa desconstrução e reconstrução de palavras que ele tanto aprecia. Organiza tudo num quarteto, construindo uma estrutura à la Joyce, cada parte significando um elemento e função psíquica, trabalhando nas unidades e totalidades do mundo: terra/pensamento, fogo/sensação, ar/sentimento e água/intuição. Parece complicado, mas não é.

Os poemas são de uma riqueza infinita, enigmas para ocupar os professores por séculos, como dizia Joyce de seu Ulisses. E bons de leitura, inteligentes, desafiantes. “O Cristo nasceu / Pobre de mavé / Nascesse agorinha / Viria com fé?”; ou “M, o monstrengo que sou”, “As palavras gentis / Grunhidas, assopradas / São ciladas, ardis, / Pragas edulcoradas”... “Meu corpo, marionete / De engonços e de esgares./ A mente, o Gabinete / do Doutor Caligari” ; ou “ingeri Morgana / como fosse cana. // caí melancólico / num torpor alcólico (sic). // morri dormente / algum tempo: ausente. // depós que acordei / vomitei, sarei. // agora me ocorre / tomar outro porre”. E o eleito pela orelha e pelo marcador de página: “Sim, penso, existo. / Mas o que sou? / Sou o que hesito / Em ser? Ou... Ou / Sou só o que / Sei ser-me sem / Erro, sem se? / Sou o que pen- / So? Mas que pensa / O quem o qual / Sou? É? Hem? Sa- / Berá? Que tal? / Existo, sim. / Que sim sou? Ex- / Isto? Que mim / Sou? Sou? Talvez”. E, afinal, o último poema do livro: “O menino morto”: “já nasci assim. / não morri. Nãosim.”

Jogos, brincadeiras, nomes, com a amplidão da cultura contemporânea que nos arrasa; o anjo torto, o serafim sorumbático assim me dedicou o livro: “À Querida Ana Miranda /Carinhosamente oferto.../... Este Honrado Desconcerto/ De Poesia Nefanda...” Rimar Miranda com nefanda, sinceramente: só Augusto dos Anjos.



ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.

"Pelas Paredes", crônica de Tércia Montenegro para O POVO (22.6)


As paredes de minha casa não são apenas sustentáculos do teto ou fronteiras métricas para cada aposento. Elas inauguram espaços para a existência de livros e quadros. Sim, pois não há convívio mais harmonioso do que entre tais objetos. Sinto-me realmente feliz dentro de um ambiente que alterne bibliotecas com pinturas. Nas prateleiras ou nos pregos, as obras descansam verticais, à espera de contemplação. São novas janelas, abertas para diversas e artísticas paisagens.

Desde que me lembro, sou uma apaixonada pelo olhar – sobre palavras ou imagens, igualmente. Assim, comecei a comprar livros e também réplicas de quadros. Na minha ânsia de adolescente, eu não tinha grande critério, coisa que se consegue aos poucos. Mas recordo muito bem a primeira tela autêntica que comprei, e já de um ótimo artista. Na época, Fernando França era meu colega no mestrado em Letras, e dele adquiri um quadro azul, da sua série dos gatos.

A experiência de ter um original foi viciante. Não me tornei colecionadora nem especialista, mas ao menos comecei a observar com atenção a qualidade das imagens. Passei a visitar museus e galerias, em busca de arrebatamentos. Aprendi os muitos modos de olhar uma pintura ou fotografia, descobrindo detalhes e nuances a cada captura de vista. E também, claro, ganhei outras peças para minha casa, de vários materiais e formatos. Hoje vivo rodeada por vários quadros, desenhos e esculturas do Glauco Sobreira. Tenho duas telas do Weaver Lima e, na cozinha, três pratos pintados pela Mariza Brito. Na geladeira, ímãs reproduzem obras da Frida Kahlo ou azulejos lusitanos: servem para pregar avisos, mas ao mesmo tempo seguram cartões-postais, desenhos e charges que recorto, a depender da circunstância.

No quarto de hóspedes pendurei um tapete vermelho que meu pai trouxe da Índia. A atmosfera ficou perfeita, junto com as almofadas, a estante de livros e o toca-discos com alguns LPs. Pelas paredes, estão ainda exemplos de artesanato anônimo, a preencher prateleiras e nichos secretos. É o caso do ex-voto, uma cabeça que comprei no mercado, por ser parecidíssima com a fisionomia de Drummond. Ela fez um belo par com uma peça africana encontrada na feira das nações. E no meu escritório – agora no chão –, coloquei uma réplica da roda de bicicleta, ready-made do Duchamp.

Finalmente, nas minhas paredes exponho também as fotos que realizo, num painel disposto para esta finalidade, na sala. São as únicas imagens rotativas de toda a casa: ponho-as à vista para estudar, por temporada, as características de seus êxitos ou fracassos. Como sua autora, tenho permissão e rigor para substituí-las e até descartá-las. A obra dos outros artistas, ao contrário, eu sempre recebo como definitiva – e sagrada.

Tércia Montenegro

(fotógrafa, escritora e professora da UFC)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

"Quantas de Nós", bate-papo com as Autoras na UECE (22.6)

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Exposição "MAUC 50 anos" (22.6)

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Lançamento "Parabélum" no Armazém da Cultura (21.6)


Parabélum

(Armazém da Cultura)

de Gilmar de Carvalho


Data: 21 de junho de 2011 (terça-feira)

Horário: a partir das 19h30min

Local: Espaço Multicultural do Armazém da Cultura (Rua Jorge da Rocha, 154, Aldeota — telefone: (85) 3224.9780)


* Na ocasião, Saulo Lemos, autor de Expectativas heróicas: mito, história e leitura de Parabélum, de Gilmar de Carvalho, ganhador do Prêmio Braga Montenegro de ENSAIO, da SECULT, autografará o seu livro.


Contato com o Autor: gildecar@uol.com.br


Sobre a Obra: Parabélum é um clássico. Ainda não no sentido borgiano, do livro que foi escolhido e lido por geração após geração, pois não se passaram tantas, desde a sua escrita e vinda à luz. Mas clássico nato, no sentido de seu espírito, composto de elementos universais que perpassam mitos coletivos de uma região-aldeia a resumir o mundo. O herói, a honra, a possessão, as heranças, o apocalipse... Também pela grandeza dos significados aqui existentes, nascidos de uma vivência cultural arraigada, autêntica e profunda. O narrador de Gilmar de Carvalho tem os pés enterrados, as mãos se afundam no barro, o rosto é mascarado de lama e essa terra é a alma. Sua voz vem de subterrâneos e soa desesperada. É quase um grito, longamente abafado, agora se derramando em delirantes fábulas de paixão e violência, entoadas como antífonas. Delírio que não está apenas na trama, racional e naturalmente erguida, mas também na linguagem em que tudo se narra. Sentimos a segurança de um criador em intimidade com sua criatura.

Impressiona a dicção do livro. O relato, de uma tensa e sensível virilidade, sai num jorro de pensamentos. São atos de fé, poemas bíblicos, estórias da tradição popular sempre sublinhadas pelo amor telúrico que se expressa em comentários, na própria fabulação e no verbo. A palavra aqui é o arcabouço de significados que quase ela não comporta, abrindo trilhas infinitas história humana adentro.

Para o leitor exigente e cultivado, a experiência da leitura de Parabélum é maravilhosa. Livro transformador e inesquecível, com toda a sua liberdade estrutural, trabalha uma reformação do gênero romance, o qual transcende. Romance da formação de um povo. De um homem que partiu “sem rumo e sem retorno” numa “odisseia de noites incontáveis”, e acaba encontrando a si mesmo.


Ana Miranda


Sobre o Autor: Gilmar de Carvalho nasceu em Sobral, Ceará, em 1949. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará e em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, onde lecionou. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). Autor de Publicidade em Cordel (1994), Madeira Matriz (1999), Patativa do Assaré (2000), Patativa Poeta Pássaro do Assaré (2002) e Desenho Gráfico Popular (2000), dentre outros trabalhos acadêmicos. Tem artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior. Como ficcionista, publicou Pluralia Tantum (1973), Resto de Munição (1982) e Pequenas Histórias de Crueldade (1987), de contos; Parabélum (1977) e Buick Frenesi (1985), romances; Queima de Arquivo (1983), de crônicas; além dos textos para o teatro: Orixás do Ceará (1974), O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira (1983), Vice & Versa (1984) e Leste Oeste Side Story (1986).


armazemdacultura@armazemcultura.com.br

www.armazemcultura.com.br


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quarta-feira, 15 de junho de 2011

"Coisas Engraçadas de Não se Rir XI: Mas nem Assim?", crônica de Raymundo Netto para O POVO (15.6)

Foto: Raymundo Netto


Seguramente a insegurança tomou-nos de assalto em tema banal. Vivemos num Rio de Janeiro, entretanto, nosso Cristo Redentor não traz mais uma cruz, esta foi depredada, restando em seu lugar um “T”, provavelmente, de “Também eu fui roubado!”.

O povo pede polícia, mais polícia, mas polícia não resolve o problema — às vezes, até o cria —, nem construir prisões para custear a vida ociosa que proporcionamos aos bandidos, antes vítimas e depois vitimadores. O que precisamos é de professores, mais professores, mais qualificações e melhores salários, além de investimentos certeiros e acertados em Educação, e não estou me referindo a atropelamentos, lançamento de balas de borracha ou spray de pimenta — que nos olhos dos outros é refresco! Esse investimento, sim, é criminoso.

O Governo, por meio de grande campanha, conseguiu levar as crianças de volta à escola, parabéns, mas não garante que elas conseguirão ser alfabetizadas mesmo quando concluem o Ensino Fundamental. Isso assegura que os alunos das escolas particulares, “estudantes profissionais”, continuem, aparentemente de forma democrática — como fosse possível supor como democracia um regime de injustiças sociais tão nocivo e irresponsável —, tomando as vagas dos melhores cursos das universidades públicas, enquanto que o sofrido estudante das escolas, também públicas, mesmo os mais empenhados, passem pelo dissabor de colecionar o fracasso pré-determinado de uma vida escolar e voltar às filas desesperançadas de crescentes senzalas sociais distribuídas a olhos fechados pelo egoísmo de uma cultura de “farinha pouca, meu pirão primeiro”, sabido que tal farinha, guardada a sete vezes sete chaves, é tomada e desperdiçada da forma mais vergonhosa, muitas vezes pelo próprio estudante privilegiado em noites em que sai para beber todas, estourar carros, roubar (por diversão), bater em prostitutas ou queimar os mendigos de rua.

Pergunto-me por que as universidades públicas não obrigam seus médicos, dentistas e advogados, assim como os demais profissionais formados em seus bancos com o dinheiro do povo — inclusive pela maioria que não os tem acesso —, a pagarem, obrigatoriamente e com justiça, após festejada e cara formatura, o investimento do Estado com o suor de seus serviços em equipamentos públicos.

Enquanto isso, os trabalhadores, oriundos das escolas desprivilegiadas, paradoxalmente, são obrigados — têm a esperança de melhoras de vida —, a fazer cursos noturnos em universidades particulares se endividando para pagá-las, porque, infelizmente, ainda têm que comer.

Certo mesmo é que as leis continuam sendo elaboradas e servindo apenas para o controle do pobre, em nome de uma igualdade desigual e de uma capa hipócrita e fantasiosa de respeito ao direito alheio que apenas ele, ou melhor, nós, devemos lembrar que existe.

Também os nossos representantes dos não-poderes, dentre eles juízes, vereadores, prefeitos, governadores, deputados, antes de ingressarem em suas funções públicas deveriam fazer um estágio probatório de um mês circulando em ônibus nessa cidade. Basta um mês. Ou eles desistiriam, ou humanizar-se-iam. O ônibus é a grande tribuna do cidadão. Vê-se e ouve-se de um tudo. Veja que é preciso ser um forte para encarar todos os dias tal monstrengo.

Meses-há, aconteceu algo inusitado na cidade. Havia um velório num bairro de periferia (hoje, em Fortaleza, tirante o shopping Iguatemi, o resto é periferia), quando dois homens invadiram a sala e foram logo tomando carteiras, celulares, terços (deviam ser católicos) dos velantes e, pasmem: os sapatos do morto! Ora, vejam que nem morrendo o coitado escapou da rotina do assalto. Mas, por outro lado, no resta o consolo: não mataram o defunto, pois que ele já se encontrava mortinho da silva e, por isso mesmo, como bem recomenda a preventiva inteligência policial, não reagiu! Cabe-nos saber, agora que o infeliz já tem cadastro no Céu, a quem compete o caso: à providência policial ou à Divina...


Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br


segunda-feira, 13 de junho de 2011

"Prosa de ficção: algumas noções", Nilto Maciel para a Literatura sem Fronteiras


Tenho encontrado leitores que me fazem perguntas embaraçosas como esta: “O que devo fazer para aprender a escrever conto, novela, romance?” No mais das vezes, digo-lhes: “Comece lendo os clássicos.” Alguns me responderam: “Mas eu já li quase todos e, mesmo assim, ainda não sei como escrever um conto.” Ora, há dicionários, manuais, tratados que dão noções sobre espaço, ação, incidente, drama, conflito, unidade dramática, história, célula dramática, lugar, tempo, passado anterior ao episódio, tom, personagens, tipos, caricaturas, linguagem, concisão, concentração de efeitos, diálogo, diálogo interior, monólogo interior, discurso direto, narração, descrição, ponto de vista, foco narrativo, primeira pessoa, narrador onisciente, começo, fim.


Também o conhecimento de tudo isto parece não ser suficiente para dar ao aprendiz de escritor o cadinho para a realização da obra de arte. E, por falar em cadinho, captei a seguinte lição de Adolfo Casais Monteiro, em Os Pés Fincados na Terra: “A arte não é invenção pura; o artista é como que um cadinho em que se realiza a mistura dos ingredientes que são o pó da experiência.” Muitos sociólogos ditos marxistas insistem em afirmar que toda pessoa é capaz de criar qualquer obra de arte, desde que se lhe dêem condições sociais, culturais para o exercício dessa capacidade. Ora, milhares e milhares de pessoas letradas, bem vividas se dizem poetas porque sabem escrever versos. No entanto, não são poetas ou não conseguem escrever bons poemas. Os gramáticos seriam então os melhores poetas, contistas ou romancistas.


Muitos desses escritores principiantes estudaram gramática, leram os principais livros – da Antiguidade aos dias de hoje –, se debruçaram sobre manuais, tratados, dicionários de literatura, e, crentes de já saberem tudo e estarem prontos para a criação literária, tentaram escrever contos, novelas, romances. O resultado, porém, tem sido desastroso. Faltou-lhes o quê? Persistência? Nem sempre. Humildade? Talvez. Imaginação? Quem sabe? Talento? Não sei.


Há quem pense ser mais fácil escrever contos ou poemas curtos que romances. Como se tudo fosse questão de tamanho. Ora, contistas são contistas, poetas são poetas, romancistas são romancistas. Alguns escritores conseguem ser bons como poeta, contista e romancista. Muito contista sonha com um grande romance e freqüentemente o ensaia nos contos mais longos. Já o narrador mais afeito à arte de narrar nunca confunde alhos com bugalhos. Confunde-se também conto com crônica, o que é menos grave. Pior é chamar de conto simples anedota, piada, notícia, comentário, etc. No livro A Nova Literatura: O Conto, Assis Brasil faz didática distinção entre conto, crônica, prosa poemática e poema em prosa. Crônica é um relato, bastante pessoal, onde o autor nomeia e descreve acontecimentos, criando enredos num tempo histórico passado. O poema em prosa e a prosa poemática são formas confessionais, ausentes de fabulação.


À medida que o homem avança no tempo em sentido contrário à caverna (ou todo movimento é um retorno?) mais se torna difícil expressar-se por conceitos. Assim, a oralidade primitiva se confunde cada vez mais com a escrita dos novos tempos. Isto não quer dizer que o caso, o conto oral tenda a desaparecer. Ora, como não encontrar semelhanças entre o conto rural, que se confunde com a lenda, e o conto urbano de feições realistas? Difícil também delimitar os campos do imaginário e do real.


A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões entre narradores e teóricos em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações sofridas pelo gênero. Muitos estudiosos elaboraram vastas enunciações do conto. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada conceituação e a cada transformação seria preciso um novo batismo.


Os manuais, os tratados, os dicionários não tratam de questões menores ou de noções rudimentares da arte de escrever literatura. Pois eu quero aqui dedicar algumas palavras a essas “outras noções” de como escrever “corretamente” prosa de ficção. Ou como não escrever “incorretamente” prosa de ficção.


Comecemos pelo emprego exagerado de lugares-comuns e gírias. Os livros estão cheios de “nariz aquilino”, “lágrimas de crocodilo” e outros chavões. Se não é possível a metáfora, que se descreva o nariz do personagem com criatividade. Vejamos a gíria na frase: “O gatinho andava ao meu redor.” Ora, daqui a alguns anos quem poderá imaginar que o narrador se referia a um rapazinho e não a um felino? O escritor poderá passar como genial: o “gatinho” seria uma metáfora.


Há escritores que abusam da grafia distorcida de vocábulos, na certeza de estarem sendo fiéis à língua do povo, realistas, e de estarem preservando o idioma português. Ora, por que escrever “home” em vez de “homem”, “bêbo” em vez de “bêbado”, “eu tô com fome”? Neste caso, para ser fiel ao propósito de escrever como fala o zé-povinho, melhor seria: “eu tô cum fomi”. Guimarães Rosa fez malabarismos para não cair nessa esparrela. Escreveu sempre a fala do povo do sertão mineiro, porém com invejável inventividade, sabedoria, consciente do significado de cada sílaba, de cada vocábulo, de casa frase.


O mau uso dos diálogos tem sido outro pecado de muitos escritores. É o caso de personagens do tipo Zé-prequeté falando como literatos, isto é, o oposto do uso excessivo de gíria ou transcrição da fala do joão-ninguém. José de Alencar é criticado por ter posto nos lábios de seus índios o modo de falar dos portugueses. Porém o romantismo tinha lá suas leis, como a de que os diálogos nunca reproduzissem a fala dos “sem fala”. O sertanejo que falasse como o doutor da cidade, com acatamento e respeito às normas gramaticais.


Há também o vício da repetição exagerada de vocábulos, na mesma frase, no mesmo parágrafo, no mesmo capítulo, no mesmo conto. Os mais comuns são: “que”, “mas”, “estava”, “era”. Vejamos este caso: “João dos Bois ia levantar mais tarde. Antes de levantar...” Contemos os “que” neste trecho: “Mieko achava que devia voltar à lavoura novamente e conversa com o Noriel e pedir que ele não contasse a ninguém o que tinha acontecido.” Do mesmo livro é a frase: “Foi só depois que o Roberto tinha levado a Arume que a Mieko achou que podia escrever.”


Semelhante ao senão apontado é o uso forçado de figuras de linguagem, o emprego desnecessário dos artigos, o descuido na conjugação dos verbos, os cacófatos. Tudo isso é muito comum em narradores brasileiros do final século XX e depois. Para isto, dizia-se: “Fulano não tem estilo.”


Passemos aos personagens. Um dos erros mais comuns é o excesso de personagens em contos. A não ser que somente dois ou três deles participem diretamente da ação. A primeira causa disso será o surgimento de personagens desnecessários, sem lugar na ação, supérfluos. Depois, a confusão no enredo. O tamanho da narrativa não comporta muitos personagens. E não será a evolução do gênero que irá mudar isso.


E para que personagens sem nome? Cabível em contos com muitos personagens. Somente os principais, dois ou três, terão nomes.


Outro equívoco de alguns narradores: o aparecimento súbito de um personagem secundário, irrelevante, e o seu repentino desaparecimento. Melhor excluí-lo da história.


Vejamos a descrição dos personagens. O narrador não precisa descrever o caráter dos personagens. Se fulano é mau ou bom, não cabe ao narrador qualificá-lo e, sim, ao leitor. Suas ações e suas palavras o pintarão aos olhos do leitor. Também é ocioso descrever o aspecto físico dos personagens, especialmente em conto. No romance realista e naturalista a descrição não podia faltar. Como não se deliciar o leitor com o corcunda de Notre-Dame? Porém a descrição não se fazia gratuitamente. Sem o aleijão do personagem o romance não existiria. A descrição de defeitos ou características não faz sentido, a menos que o aspecto físico do personagem seja imprescindível à história. Se fulano é cego, manco, perneta, se assim descrevendo o personagem quis o narrador simplesmente “enfeitar” a história, homenagear alguém, seja lá o que for – a descrição então será uma excrescência.


Agora a questão do narrador. Durante muito tempo prevaleceu em prosa de ficção a onisciência do narrador, fosse personagem ou não. Porém tudo mudou a partir de James Joyce. O narrador onisciente desapareceu. Os pensamentos dos personagens não podem ser do conhecimento do narrador. “Fulano tencionava matar sicrano.” “Ele se sentiu culpado de alguma coisa.” A interferência excessiva do autor-narrador é um mal maior para a narrativa. Assim como o excesso de observações e explicações. Não deve o narrador dar informações, sobretudo se inúteis à trama. Exemplo: “Na curva do caminho surgiu um cavaleiro: era o Vadico, um velho conhecido que batia muito na mulher.” Tal informação é até sem sentido no conto, vez que Vadico nem sequer volta à cena.


Mencionar nomes de cidades, logradouros, somente se absolutamente necessário ao enredo. Dizer que fulano mora na Rua São Sebastião ou na Avenida Dom João poderá ser necessário, sim. Se não o for, para que o nome do logradouro? Nunca explicar o óbvio. Como assim: “Em Fortaleza, a bela capital do Ceará, vivia fulano.” Aliás, nunca explicar nada. “Isto aconteceu porque...” Melhor o mistério. Cada leitor fará uma dedução. Nunca opinar. “Aquela mulher era má.” Cabe ao leitor o julgamento dos personagens. O narrador não é juiz, não decreta nada. Sua função é tão-somente narrar.


Moreira Campos, um dos mestres do conto brasileiro ou um dos melhores discípulos dos grandes mestres, seguia à risca as lições de Tchecov. Em “Breves palavras”, apresentação do livro Dizem que os cães vêem coisas, escreveu: “Sou fiel, quanto à síntese, ao conceito de Tchecov: ‘Se a espingarda não vai atirar no conto, convém tirá-la da sala.’” Ainda desse mestre a advertência de que, “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira.”


Em suma: para escrever boa prosa de ficção é preciso, além de conhecer todas as técnicas de narrar e muito talento, saber lapidar, transpor, alterar, substituir, riscar, cortar, remendar, costurar palavras, frases, parágrafos inteiros. E não ter medo do cesto de lixo, de ser cruel consigo mesmo. Não ter complacência com o vício, o erro, a mediocridade. Não ter piedade nem de si mesmo nem de personagens.