Vez ou outra, me deparo com um relato antigo sobre nossos índios cearenses. Dia destes encontrei um capítulo em Yves d’Évreux sobre os tremembés, em 1613. Diz que eram velozes na corrida, e tão fortes que podiam derrubar um inimigo atirando-o ao chão como se fosse um animalzinho. De estatura meã, vagamundos, não faziam casas, moravam debaixo de abrigos ligeiros ou dormiam nas areias, preferindo sempre as planícies, para acompanhar tudo ao redor. Caçavam quando sentiam vontade, comiam mesmo era peixe, que flechavam na água. Levavam pouca bagagem, seus arcos e flechas, machados, cuias, cabaças, panelas de barro para cozinhar carne. Diz Évreux que os tremembés tinham o costume de todas as luas ficarem acordados uma noite fabricando machados, enquanto as mulheres dançavam, e as moças e os meninos à frente das aiupaues, seus abrigos leves, ao luar do crescente; os homens trabalhavam até ficarem perfeitos os machados, acreditando que com essas armas elaboradas eles nunca seriam vencidos. E outras curiosidades além...
Padre Vieira, em seus escritos instrumentais de 1655, nos fala dos tabajaras que viviam ali na Ibiapaba, “feras que se criavam e escondiam naquelas serras” de noites frias, águas excelentes. Chefiados por Taguaibunuçu, que significa diabo grande, viviam de mandioca, milho, alguns legumes, mas passavam muita fome; e sentiam “admiração e aplauso nas coisas novas”; assim como dá notícia de outros povos indígenas, os tocarijus, ganacés, juguaruanas, curutis, teremembés e “mais tapuios de guerra”... No livro do viajante inglês Henry Koster as mais belas páginas são as que ele dedica aos nossos índios. Essas leituras são viagens ao passado, uma convivência imaginária. Elementos fascinantes, muito interiores em nós.
Nossa alma é indígena, dá para ver por todo lado, a partir do cenário idílico das praias cheias de coqueiros, dos tufos espinhosos nas caatingas, dos casebres cobertos de palha, tudo lembra o índio ou o caboclo: o deleite em dormir na rede, a tapioca de manhãzinha, bem gostosa, a mais acolhedora hospitalidade, o costume de mangar dos outros, o gosto pela festa, os homens conversando de um lado, as mulheres do outro... Uma prazerosa indolência, o levar a vida como ela vai ditando, o nomadismo, deixar para trás as casas cheias de almas... Isso sem falar nos cabelos mais negros do que a asa da graúna, nos olhos puxados, e tantos traços de tantas diferentes tribos. A nossa grande figura mítica é Iracema, que foi brilhantemente configurada por Alencar, representando a mater de nosso país independente e, afinal, o nosso rosto brasileiro e cearense.
Mas conhecemos tão pouco nossos índios... Dizia Soares Moreno que eram 22 tribos no Ceará. Onde estão os icós? Onde os inhamuns? Onde os quixarás, jucás, areriús, caratiús, os quixelôs? Em 1863 a Assembleia Provincial declarou extinto o índio no Ceará, depois de muitas guerras, massacres, expulsões, escravização, humilhação. Hoje, dizem que restaram 12 tribos; a lista vai assim, de cabeça: os tremembés, os tabajaras, os anacés, os potiguaras, os calabaças, os cariris, pitaguaris, canindés, tapebas, os jenipapos-canindés aqui de Aquiraz... mesmo eu, tão interessada, não lembro todas. Vi umas subdivisões com nomes sugestivos. Os tabajaras podem ser tabajaras-da-maratoã, da-serra-das-melancias, de-ipueiras, de-poranga, do-olho-d’água-dos-canutos, da-grota-verde... e os tremembés, de-almofala, de-são-josé-e-buriti, do-córrego-joão-pereira, de-queimadas... O que eles perderam nestes séculos estão tentando relembrar, recriar; revivem danças antigas, músicas, rituais, como o torém, costumes, arte plumária, cestaria, cerâmica, algo de suas línguas mortas, e o fazem com a ajuda de indianistas, num movimento mundial de cuidados para com as etnias delicadas.
Sei que os índios são essenciais para nós, brasileiros, e ainda mais, para os cearenses e indo daqui para cima, rumo norte, cada vez mais importantes. É difícil entender em poucas palavras por que os índios, e todas as culturas específicas, são tão fundamentais, além de serem grande riqueza cultural e histórica num mundo que se iguala a cada dia e tudo o que é diferente adquire mais valor para nossa identidade. É algo assim como encontrarmos uma avó esquecida, e lhe fazermos perguntas, e a conhecermos melhor, tratarmos bem dela, aprendermos suas receitas, seus pontos de bordado, suas rendas, ouvirmos suas memórias, lendas, ela ter nossa atenção, casa, e uma vida digna; isso faz de nós pessoas melhores.
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