sábado, 27 de junho de 2015

"Olha pro Céu, e pra Mim, Meu Amor!", crônica de Raymundo Netto para O POVO

Banda The Clevers, numa festa de São João na TV (divulgação)

Anavã! Chegamos a junho, mês em que aconteci neste mundo, no meio do caminho, feito Pedro, ligeiro e cianótico, fugido de Natal, dependurado no bico de cegonha trapalhã e berrando: “Eu quero nascer é no Ceará!” Por isso, de não conhecer na Terra nada que me papoque mais as lembranças do que festas juninas, balõezinhos chineses, barraquinhas de palha de coqueiro, o cravo tinindo na castanha do pé-de-moleque ou a voz ecoada do Gonzagão em pagode russo na boate Cossacou: “Foi numa noite/igual a esta/que tu me deste o teu coração./ O céu estava/todinho em festa/ pois era noite de São João.”
Hoje, a cultura invasiva da sociedade do espetáculo sapucaicou as nossas festas, que deperecem ao afetado glamour e ao som de axé ou forró de plástico, que nem de longe imita o que nos fere a saudade.
Por outro lado, dia desses, ao me encostar em mesinha de plástico, numa praça em areias na rua do Sabão, onde se dava uma quermesse de igreja, olhava para o cimo céu estrelado de bandeirinhas coloridas de papel, e recordava a animação dos bairros de uma Fortaleza interior, quando os jovens se aproveitavam das festividades para escolher como par de quadrilha aquele ou aquela a quem o peito devotava gemidos de paixão, mas era desencorajado de se achegar. Nos dias de ensaio e de preparação, porém, estariam juntos, mesmo que disfarçando o ribombar da emoção e o desafino típico de primeiro amor, mas de nunca sentir tanta alegria, cortando papel de seda de cor, colando com grude de panela bandeirinhas no barbante de corda, pedindo pelamordedeus que a mamãe não esquecesse de emendar aqueles retalhos na calça e na camisa ou mesmo de costurar o vestido florido de chita.
Afinal, o dia da festa, foguetório no ar: a rua de pedras toscas tomada de barraquinhas de jogos e tabuleiros de paçocas, baião de dois, espetinhos, vatapá, bolos, refrescos e aluá. A fogueira de lenha estalando calores nos olhos curiosos da meninada e os quadrilheiros chegavam: as “damas” com vestidos de babados e tranças caídas em fita nos ombros, e os “cavalheiros”, sob chapéus de palha, ao pescoço lenço de cor, em camisa e calças rotas, bainhas tortas e alpercatas de couro. Encontravam-se os pares a ensaiar um passo diferente de “motocicleta”, “cavalo” ou “aleijado”. A moça, mais ousada, pintava a lápis o bigode, a costeleta, o cavanhaque no par desajeitado. Ele, a pretexto de lhe tocar o rosto, ali pintava uns três ou quatro pontos negros, deitando o olhar já cativo àquele sorriso que lhe parecia feito de luar.

Vinha lá o pai Francisco tocando o seu violão bi-rim-rim-bão-bão e o seu delegado. Após o casório, a quadrilha começava com anavãs, anarriês, balanceio, serrote, túnel, parafuso e passeio: “Lá vem a chuva!” “Olha a cobra!” As senhoras alimentavam de gás os candeeiros, enquanto o sanfoneiro, no resfolego do seu fole de oito baixos, convidava para o rapapé no salão, que ameaçava ir até amanhecer e a palha voar. Enquanto o cavalheiro, com o coração molinho, molinho, despontava um inocente “Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo...”, sendo acolhido por um beijo de assalto “tão bonito e tão sincero feito festa de S. João”.

terça-feira, 23 de junho de 2015

"Crônicas Absurdas de Segunda", por Carlos Carvalho


Geórgia Cavalcante, Raymundo Netto e Carlos Carvalho
(Clique na imagem para ampliar!)

As segundas-feiras costumam ser dias horríveis para muitas pessoas. Principalmente para aquelas que adorariam que os domingos fossem mais longos e que o fim da noite jamais chegasse. Entre essas pessoas talvez esteja a figura do cronista de jornal, aquele que deve estar com seu texto prontinho para que, já no café da manhã da segunda-feira, o leitor possa se deleitar com as notícias trazidas pelo jornal. É claro que me refiro aqui, especificamente, àqueles leitores que ainda não abandonaram de todo sua relação com o folhetim impresso, não desconsiderando que o mesmo ocorre com o leitor que lê o jornal em outro tipo de suporte. Esse, assim como eu, provavelmente lê o que lhe interessa já na noite anterior.
O leitor, certamente, não sabe das peripécias e malabarismos que o cronista às vezes precisa fazer para entregar seu texto, mesmo em tempos de Internet. E, convenhamos, o leitor não dá a mínima pra isso. O cronista que se vire, pois para o leitor, é o resultado final que realmente interessa. Mas o jornal. Ah! O jornal! Houve um tempo em que o jornal que trazia a crônica de hoje, estaria embrulhando peixe amanhã. Os tempos mudaram e, hoje, poucas são as pessoas que comeriam peixe embrulhado em jornal. Mas para onde vai o jornal que carrega aquela crônica que levou um bom tempo para ser escrita? Vai para os confins da rede e, provavelmente, para as nuvens. E, como se diz no interior, a nuvem é bem aí!
Como nem todo mundo acessa a web e nem sabe o que é essa tal de nuvem, é sempre bom registrar o que se escreve naquele negócio chamado livro. E é exatamente isso que fez o escritor Raymundo Netto ao publicar uma seleção das crônicas que, entre os anos de 2007 e 2010, escreveu para o jornal O POVO. Conforme o próprio autor: “A maior parte dessas crônicas se desenvolvem a partir de “encontros” com escritores e personalidades cearenses vivos ou mortos – em literatura isso não faz muita diferença –, em um exercício intertextual, contextualizados com acontecimentos na cidade de Fortaleza, palco que serve de frigideira para a maioria dessa omelete”.
A ideia de Raymundo Netto em escrever suas crônicas a partir de “encontros” com escritores e personalidades vivos ou mortos da cena fortalezense, faz com que o leitor, juntamente com o narrador, revisite a Fortaleza, essa cidade que tanto assombra quanto seduz. Essa mesma cidade quase engolida pelos milhares de buracos que invadem suas ruas, devido a incompetência de seus gestores e pelo seu povo entregue à própria sorte. A cidade vista pelos olhos (verdes?) de Raymundo Netto é a “prima pobre” da Paris vista pelos olhos miúdos de Woody Allen, em seu filme Meia-noite em Paris (2011). E aqui tomo a liberdade de apontar uma aproximação da obra de Netto com a de Allen, no que concerne a uma observável exaltação do passado em relação ao presente. Sobre a comédia romântica de Allen, observemos uma das sinopses disponibilizadas na Internet:
Gil (Owen Wilson) é um escritor e roteirista americano que vai com a noiva Inez e a família dela à Paris, cidade que idolatra. Ele realiza vários passeios noturnos e sozinho, quando descobre que, surpreendentemente, ao badalar da meia-noite, é transportado para a Paris de 1920, época e lugar que considera os melhores de todos. Nessas "viagens", Gil vai a várias festas onde conhece inúmeros intelectuais e artistas que admira e que frequentavam a cidade-luz naquela época. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Salvador Dali dentre outros. Até que tenta acabar o seu romance com Inez, pois se apaixonou por Adriana (Marion Cotillard), uma bela moça do passado, e é forçado a confrontar a ilusão de que uma vida diferente (a "época de ouro" francesa) é melhor do que a atualidade.
O narrador de Raymundo Netto seria o nosso Gil, um flâneur a caminhar com atenção pelos mais inusitados espaços da cidade. Nas caminhadas, o narrador encontra e conversa com Rachel de Queiroz, Francisco Carvalho (Que poeta maravilhoso!), Ana Miranda e Mário Gomes; entre inúmeros outros. O resultado dessas conversas e andanças é o livro Crônicas absurdas de segunda (2015), uma vez que o referido cronista escrevia para o jornal exatamente às segundas. Trata-se de uma belíssima edição, publicada pelas Edições Demócrito Rocha, composta de trinta e nove crônicas, sendo três inéditas. Há três textos introdutórios, sendo “Crônicas absurdas”, de Ana Miranda, “Crônicas”, de Sânzio de Azevedo e “Duas palavras”, do próprio Raymundo Netto explicando a origem, a construção e os resultados do projeto que acabou por gerar a obra em questão. O livro traz ainda um “posfácio” escrito por Pedro salgueiro, denominado de “Um dândi pós-moderno”, além da biografia do autor, bem como as referências bibliográficas.
A lexia “absurda”, no título da obra de Raymundo Netto, acaba por nos remeter ao Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo (1941), de Albert Camus (1913-1960); bem como ao teatro do absurdo, de Samuel Beckett (1906-1989); especificamente sua peça Esperando Godot, de 1952. Embora sejam “absurdos” diferentes, as crônicas de Raymundo Netto acabam por dialogar entre si e com o outro, quando, de uma forma ou outra, discorrem sobre a própria condição humana, tal qual ocorre em Camus e Beckett. A série de crônicas que Netto aqui apresenta, afirma Ana Miranda, tem uma linha mestra, ou seja, é uma agenda de encontros com fantasmas. De repente o cronista se depara com algum autor de livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus fantasmas literários tomam corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam, surpreendem e nos fazem rir, mas às vezes de olhos marejados. Há algo mais humano, pergunto, e ao mesmo tempo mais absurdo?
Sobre o narrador de Crônicas absurdas de segunda (2015), Ana Miranda diz:
O narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma afetividade à flor da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente, aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos. É quase o mesmo narrador do primeiro livro de Netto, Um conto do passado: cadeiras na calçada, romance preciso e admirável, com jeito de crônica, no qual, enquanto se passa uma história de amor, a cidade vai se mostrando e se transformando.

O “se mostrar” e o “se transformar” da cidade, observados pela autora de Semíramis (2014), no romance de Raymundo Netto, também é facilmente identificável na sua crônica. Essa transformação que se dá com a cidade, também se dá com seus habitantes-personagens em uma espécie de simbiose. E assim também o é na relação da personagem de Owen Wilson com a Paris dos anos 20, no Meia-noite em Paris.
Revisitar Fortaleza é sempre um convite irrecusável. Mais uma vez, e com bastante esmero, o escritor Raymundo Netto nos lança o convite a partir das suas Crônicas absurdas de segunda (a nosso ver, crônicas de primeira), tomando ruas, abrindo portas e apresentando gente.
Que a cidade nos seja tão leve quanto uma crônica 'absurda', de Raymundo Netto!


(*) Carlos Carvalho é professor de Literatura e de Língua Inglesa na Uece/Feclesc, autor do livro de crônicas Memória de Peixe, ganhador do Prêmio de Literatura da Unifor (2009), e mantenedor do excelente blog que leva o seu nome.

(*) Crônicas Absurdas de Segunda, de Raymundo Netto, pode ser adquirido na livraria do Espaço O POVO de Cultura & Arte, mas também por meio da Livraria Virtual da FDR: livraria.fdr.com.br

"Uma leitura e um encontro absurdo", de Vasco Arruda, para o "Sincronicidade" de O POVO


Sempre me foi complicado encarar a morte. Refiro-me à morte total, plena. A morte fisiológica não é um problema, mas a morte essencial, essa é cruel e insuportável. Talvez por isso essa mania de criar, de produzir e publicar na esperança de superar a morte visceral, transpor a barreira da existência finita e, de alguma forma, superar o esquecimento, como se diz na máxima: as palavras voam, mas não as escritas!
Raymundo Netto
[Raymundo Netto. Crônicas absurdas de segunda. Ilustrações Valber Benevides. – Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2015; “Até um dia” a Eduardo campos, p. 57].
Sábado passado, por volta das três horas da tarde, vinha caminhando absorto pela rua Castro Alves quando, de repente, já quase na esquina com a Monsenhor Bruno, sinto uma brisa fria soprar de leve, seguida de um toque suave no meu ombro esquerdo. Antes que me recompusesse do susto pude ouvir a sibilante frase:
- Meu indigitado amigo, há quanto tempo!
Por mais surpreendente que fosse a cena, aquela expressão não poderia ser pronunciada por nenhuma outra criatura neste mundo de meu Deus. Não deu tempo nem de me recompor do susto para vislumbrar ali, ao meu lado, em carne e osso, o cronista Airton Monte.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele emendou:
- Vieste aqui matar a saudade dos velhos tempos das tardes de domingo em que nos encontrávamos no Bom, não foi? Ah, meu amigo, como sinto saudades daquelas tardes de muita conversa, cerveja e boa música. Tens visto o poeta?
Eu estava atônito, sem saber o que falar. Queria dizer algo, mas a voz não saía. Para completar a surpresa, vi que o cronista trazia em uma das mãos um livro em cuja capa pude ler o título, impresso em letras góticas: Confederação dos mandacarus.
Neste momento, chegamos na esquina da Monsenhor Bruno. Airton tirou a mão do meu ombro e falou:
- Meu indigitado amigo, tenho que ir. O Audifax me espera no Beco do Segundo para uma reunião da Academia do Beco. Dia destes aparece por lá, combinado?
Antes que eu desse um suspiro a aparição se desfez. Digo aparição porque aquilo só podia ser coisa de outro mundo. Aliás, tem sido assim desde que comecei a ler um tal Crônicas absurdas de segunda. Foi só começar a leitura desse livro para que coisas esquisitas, digamos, absurdas, começassem a me ocorrer, não sendo a mais absurda delas o inusitado encontro de sábado.
Conforme se pode ler na contracapa, “Crônicas absurdas de segunda é, em sua maioria, uma seleção de textos publicados, entre 2007 e 2010, no caderno ´Vida & Arte` do jornal O POVO. Neles, o autor visita e apresenta a cidade, a reconhece e a provoca por meio da fala (e dos sentimentos) de seus escritores, principalmente os cronistas, contemporâneos ou não, que encontra em bancos de praça, nos ônibus, em parques, nas casas mutiladas, cemitérios ou em meio a desastres e hecatombes de proporções aparentemente absurdas”.
O autor, Raymundo Netto, é uma figura já bem conhecida no meio cultural fortalezense, cidade que o viu nascer no dia 29 de junho de 1967. Estreou na literatura em 2005 com o romance Um conto no passado: cadeiras na calçada, ganhador do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult). Desde 2007 publica crônicas no caderno Vida & Arte do jornal O POVO. Em 2007, a coletânea de contos Os acangapebas foi contemplada pelo II Edital de Incentivo à Cultura da Funcet (Atual Secretaria de Cultura de Fortaleza). Mais tarde, em 2011, a obra receberia o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura da Academia Cearense de Letras, sendo lançado em 30 de maio de 2012, em solenidade na Câmara Municipal de Fortaleza, quando o autor recebeu a Medalha Boticário Ferreira em reconhecimento pelos serviços prestados à cultura na cidade de Fortaleza.  É também autor dos infantojuvenis: A bola da vez (2008), A casa de todos e de ninguém (2009), Os tributos e a cidade (2011), A galera se liga em cidadania! (2014) e Boto cinza cor de chuva (2014), todos pelas Edições Demócrito Rocha (EDR).
A leitura de Crônicas absurdas de segunda me fez experimentar momentos de puro deleite, em que pude, ciceroneado pelo Raymundo Netto, desfrutar da companhia e, em certas ocasiões, da intimidade de diversos escritores cearenses, vivos ou já falecidos. O livro oferece uma oportunidade, que eu diria rara, de contato com fatos e aspectos pitorescos da cidade de Fortaleza, além de trazer a lume muitos autores esquecidos ou, em alguns casos, pouco conhecidos ou até desconhecidos. Só por isso, já valeria o tempo despendido na leitura.  Entretanto, além do aspecto informativo da obra, o leitor terá em mãos pouco mais de duzentas páginas de puro prazer, proporcionado pela beleza e leveza das crônicas, sempre temperadas por maravilhosos toques de humor, característicos do autor.
(*) Vasco Arruda é psicólogo e ex-professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

(*) Crônicas Absurdas de Segunda, de Raymundo Netto, pode ser adquirido na livraria do Espaço O POVO de Cultura & Arte, mas também por meio da Livraria Virtual  da FDR (livraria.fdr.com.br)


sábado, 20 de junho de 2015

"Tempo Perdido", crônica de Ana Miranda para O POVO


Quero escrever a minha crônica, mas antes preciso emitir uma nota fiscal. Mas, não posso me esquecer de cancelar o agendamento na Polícia Federal! Há dias que estou tentando renovar o meu passaporte. Tenho o passaporte válido, vai vencer daqui a seis meses. Seria o caso de uma simples revalidação. Mas tenho de levar todos os documentos, como se fosse tirar o passaporte pela primeira vez. Juntei os documentos, preenchi o formulário, paguei, agendei e fui. Perdi aí uns dois dias. Não aceitaram a certidão tirada pela internet. Preciso ir ao Rio de Janeiro para tirar outra? E se o cartório não existir mais? Tive uma noite de insônia, temendo não conseguir renovar o passaporte e nunca mais visitar os netos... Será que compro as passagens? Ou não compro? Enquanto resolvo o problema, preciso cancelar o agendamento, o policial me disse que tenho de cancelar, ou marcar nova data, mas quando terei o novo documento? Ufa, preciso escrever a crônica!
Lembrei! Preciso verificar se cancelaram o meu telefone fixo, na primeira tentativa pedi o cancelamento depois de gastar horas de tentativas até que finalmente consegui, mas um mês depois chegou a conta e depois de horas de tentativas descobri que não tinha sido cancelado apesar do meu pedido e mesmo tendo o protocolo do pedido tenho de solicitar a gravação do pedido para tentar o reembolso da conta indevida. A mocinha me fez perder uns bons minutos repetindo e tentando fazer com que entendesse a palavra Aquiraz. Aquiraz! A-qui-raz! Com zê. A! Qui! Zê, minha filha!
Também não posso esquecer de pagar o GPS da empregada doméstica, a mensalidade do MEI, preciso imprimir, assinar, reconhecer firma e enviar pelo Sedex um contrato com uma editora para a publicação de um microconto de três linhas, gasto mais tempo com as medidas do que com o conto, e tenho de ir ao banco porque não consigo pagar nada pela internet, o banco vai estar como sempre lotado, e se eu pegar novamente uma virose, quantos dias vou ficar de cama, sem trabalhar? O tempo corre. Preciso escrever a crônica!
Mas preciso renovar a carteira de motorista, vou ter de refazer todos os procedimentos, novos exames, tudo de novo – a minha nora, que mora em outro país, pede a renovação pela internet e recebe pelo correio uma nova carteira, já que ela não tem multas. Mas graças a Deus já consegui me livrar do processo de aposentadoria, graças a uma alma boa de um funcionário do INSS que ficou com pena de mim. Preciso anotar na carteira de trabalho da doméstica as férias, preciso averiguar se é preciso pagar INSS sobre o adicional de férias, e preciso procurar saber sobre relógio de ponto, ou folha de ponto, e...
A crônica! Ah, agora preciso esperar que o meu computador faça as atualizações, e preciso atualizar o meu cadastro no banco, e preciso conseguir falar com o meu suporte para eliminar o malware, as propagandas não me deixam em paz na internet... o celular está tocando, meu coração acelera, pode ser um presidiário, ou um lobista tentando me empurrar um novo cartão ou um novo plano de telefonia... Minha senhora eu já disse centenas de vezes que este telefone não é de nenhuma Mariana! E preciso renovar o meu cadastro na TAM para usar as milhagens mas a TAM não aceita minhas mensagens, preciso descobrir meu código de acesso ao Simples, preciso verificar o alvará na prefeitura, preciso verificar se já registraram o meu pagamento de IPTU porque, senão, a nota fiscal não é emitida, preciso pagar o IPVA e meu coração se aperta, será que caí na malha fina?
Já sabemos quantos meses trabalhamos para sustentar os governos e pagar os custos sociais, que somos um dos países mais caros do mundo em termos de impostos. Agora sabemos que entre os países que mais cobram impostos somos o pior em retorno de benefícios à sociedade. Já está calculado o percentual de nossos impostos que é perdido, o pior do mundo.

Mas ainda falta calcular o tempo que o cidadão gasta para se manter em dia com a burocracia, e não apenas a dos governos, mas a do sistema. Deve ser a mesma medida do imposto perdido, a do tempo perdido, que decerto custa uma verdadeira fortuna em perda de produção, mesmo sem levar em conta a angústia, o aborrecimento, a depressão que nos acomete a cada impasse burocrático. A minha impressão é que eu gasto não só cinco meses trabalhando para pagar os impostos, mas também cinco meses em desgastes burocráticos. Meu tempo se esvai em tarefas... Como dizia o John Updike, “eu amo o meu governo na medida em que ele me deixa em paz”.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

CONVOCAÇÃO GERAL: Vamos socorrer a Lua Nova que nasce pras bandas do Benfica!


Meus amigos, há 15 a livraria Lua Nova atua no Benfica, em um charmoso prédio em frente à entrada do Shopping Benfica, na avenida 13 de Maio.
Diante do surgimento das megalivrarias, do desaquecimento do mercado do livro e da ausência de políticas públicas de apoio ao mercado editorial e livreiro no Ceará, além de outros motivos, podendo escolher qualquer um nesse país de pernas bambas, memória curta, analfabética e dinheiro fraco, a Lua Nova está ameaçada de fechar, assim como a famosa Da Vinci (desde 1952), do Rio de Janeiro, que pediu ajuda a seus clientes fiéis e está vai não vai...
Essa convocação é geral, ampla e irrestrita, ou seja, pede:
(1) Que os leitores, consumidores de livros, principalmente aqueles do entorno, da UFC, do IFCE, entre outros, se puderem, e sempre que possível, privilegiem uma visita à livraria Lua Nova antes de outras quando quiserem buscar por novos títulos, principalmente os acadêmicos;
(2) Que aqueles que desejarem abrir um café, procurem conhecer as condições da Lua Nova, da área em seus altos (que já abrigou diversos cafés), quem sabe não serão parceiros de atividades culturais e gastronômicas que tragam benefícios a ambos e à cidade?
(3) Que os artistas, poetas, músicos, contadores de histórias, conversem com a Elisa e se apropriem do espaço para realizar ações culturais, apresentar seus trabalhos, lançar livros, fazer saraus, convidar pessoas, entre outros;
(4) Por ora, aqueles que tiverem disponibilidade de qualquer coisa, ou mais coisa, que auxiliem em zerar as contas de últimos aluguéis, temporariamente, contribuindo com depósito (qualquer valor faz a diferença) na conta a seguir:
·                    Caixa Econômica Federal
·                    Ag. 1922
·                    Conta Corrente: 625-4
·                    Operação 003
·                    Livraria Marques Mariano LTDA
(5) Ao final, que acolham essa campanha iniciada hoje, dia 15 de junho, que curtam e compartilhem, mas que, SE NÃO HOUVER DOAÇÃO, SÓ COM CURTIÇÃO, NÃO FUNCIONARÁ!
Colaborem e vamos ver no que dá.

domingo, 14 de junho de 2015

Lançamento "De Um Tudo" Especial: Audifax Rios, dia 18 de junho, a partir das 20h


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Lançamento Edição Especial de Saudade de
AUDIFAX RIOS
Almanaque DE Um Tudo

Data e Horário: 18 de junho de 2015, quinta-feira, a partir das 20h
Local: Flórida Bar
(Rua D. Joaquim, 68, Praia de Iracema, Fortaleza – CE)
Informações: 3219.2905 | 99611.1966

Essa é uma chamada geral e indispensável para todos os

amigos e admiradores de Audifax.

"Autores em Contexto" do Sesc, com Poeta de Meia Tigela, Dércio Braúna e Samarone Lima (17 de junho)


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Lançamento Coletivo, bate-papo e poesia

Miravilha: liriai o campo dos olhos, do Poeta de Meia Tigela
Aridez Lavrada pela Carne Disto, de Dércio Braúna
O Aquário Desenterrado, de Samarone Lima
Mediação: Carlos Vazconcelos

Data e Horário: 17 de junho de 2015, quarta-feira,  às 19h
Local: Sala de Vídeo do Sesc Centro (rua 24 de Maio, 692, Centro – quase ao lado do Iphan, praça José de Alencar)
Informações: 3455.2118 | 3452.9066

Sobre os Autores:
ALVES DE AQUINO, o Poeta de Meia Tigela, nasceu em 1974, em Mucambo, Ceará. Publicou, em 2008, o Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas, antologia do Segundo Movimento do Concerto N. 1nico em Mim Maior para Palavra e Orquestra, cujo Primeiro Movimento foi publicado em 2010.
DÉRCIO BRAÚNA nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, em 1979. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Publicou os livros de poesia O pensador do jardim dos ossos, A selvagem língua do coração das coisas, Metal sem húmus, além de livros de contos e teóricos abordando as relações entre história e literatura africana.
SAMARONE LIMA é jornalista e escritor. Nasceu no Crato, Ceará, e vive no Recife desde 1987. Foi finalista do prêmio Jabuti com o livro-reportagem Viagem ao crepúsculo, em 2010, e com A praça azul & Tempo de vidro, de poesia, em 2013. Em 2014 conquistou o 1º lugar no Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2015 e o segundo lugar no 2º Prêmio Brasília de Literatura, na categoria Poesia, com o livro O aquário desenterrado, publicação da editora Confraria do Vento.

sábado, 6 de junho de 2015

"Sociedade Violentada", de Raymundo Netto, para O POVO


De nossas janelas gradeadas, todos os dias todos, a violência nos conduz à insegurança e ao medo. São muitas as desculpas e mais ainda as mentiras. O descaso, o pouco caso ou nenhum caso, a inconsciência, a inconsequência, a essência do mal-estar social. Eu mesmo perdi as contas de quantas vezes fui assaltado. Na maioria das vezes por jovens, quase adolescentes, quase crianças, mas sempre bem armados. Nos acostumamos com o tempo, mas a dor dói mais, pois a ferida que não sangra, também não sara.
Os criminosos são encorajados por um paraíso de orientações ilusórias de segurança: Não reaja, entregue suas armas, entregue tudo, não se meta com eles, finja que não os viu, que não viu nada, finja que vive e respire só se for preciso, e, de preferência, não arrisque, não viva muito, não saia de casa... apenas!
Pior também é ser assaltado diante de/ou por um juiz, cúmplice em nome de uma estranha lei que privilegia quem mente, quem tem dinheiro, quem tem poder, e ainda entender, numa arrogância pedante de escola, que está cumprindo o seu papel, quando, fosse honrado, procuraria um lugar impotente entre as pernas para enfiar seu vergonhoso cabedal de reprimendas e códigos caducos de tempos.
Violada nos é a democracia, achincalhada nos gabinetes, nas câmaras e assembleias por bate-bocas teatrais, pela imposição do voto obrigatório, por caras eleições de indecorosas alianças, pelo sistema único de licitações fraudulentas, pela carnavalização dos interesses mesquinhos em troca de pão, pela esbórnia partidária de "destros" e "sinistros" cujo gozo se dá à custa da carne cheia de erupções cutâneas de nossas crianças, pelo Estado capitalista que vende tudo e se vende, e que um dia há de explodir, antes mesmo de assumir-se podre, gordo, a boca escancarada e cheia de dentes cariados de seu deboche e competência em não promover a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a não erradicação da pobreza e da marginalização, a não redução das desigualdades sociais e das discriminações de qualquer tipo e a não promoção do bem-estar geral. A demorragia é o que impera no país.
Daí, as praças tomadas à espera da sopa e do aguardente, os valores esquecidos, os parques e rios sendo devastados, o rolezinho da cultura do concreto e a majestade do lixo, todo ele, a humanidade inteira de resíduos. Uma Fortaleza chinfrim, descoberta, feia e enlameada, de braços abertos e a bunda arrebitada nas coxias, pedindo esmolas padrão FIFA – assim como a corrupção –, enquanto em seus terminais o estranhamento e o medo vêm acompanhados de impossibilidades e da correria histérica em seus túneis e corredores: usuários apavorados, nem eles sabem do quê, tentam preservar o único bem que lhe resta: a vida! Sete assaltos por dia nos ônibus da cidade, sem contar os assédios, o trânsito difícil, os perigos de se andar nas ruas. À noite, por conta de incêndios, podem não voltar para casa. Passageiros, homens, mulheres e crianças, chegam aos terminais, mas não vai ter ônibus hoje. E quem quer saber? Cansados, catam o fundo dos bolsos. Às vezes, nem pra água dá. Deitam num banco, colocam a bolsa embaixo da cabeça e, porque não conseguem mais chorar, culpam-se por sonhar em como seria bom não ter que acordar para o novo dia.


terça-feira, 2 de junho de 2015

"O Cronista", de Pedro Salgueiro para O POVO


O cronista é aquele gato vagamundo que perambula pelos quintais (reais ou imaginários), afastando telhas, dando susto em lagartixas; tudo pelo simples prazer de vagar por aí sem pai nem mãe; um bichano daqueles bem reles, que sequer tem dono; come quando lhe sobram algumas migalhas – e até quando faz amor incomoda. Raramente tem prestígio, vez e voz (claro, há os felídeos de apartamento, de pelo lustroso, porém não resistem ao simples contato com a terra suja dos monturos).  
É lido junto com pão de todos os dias, rapidinho antes que o café esfrie na xícara; tem quase obrigação de não assustar o recém-acordado, mas nem sempre consegue: conheço senhora que se engasgou ao ler certos despautérios de colega mal educado; ouvi falar de cismado patrão que demitiu mais de um funcionário depois de conferir uma crônica sem pé nem cabeça de um camarada sem sensibilidade – dessas croniquinhas que querem somente chocar o quase ainda dormindo madrugador.
Há os que aprendem a pôr a farinha na forma com maestria, lépidos, rápidos e fagueiros, escrevem suas crônicas até caminhando, comendo, dormindo... São de palavras fáceis, corretas, escorreitas, leves e livres; nem carecem alegar nada para agradar o incauto leitor; são quase máquinas, legítimos mágicos, se acham máximos. Existem, ainda bem, os pesquisadores natos, que engrossavam braços no manejo de dicionários e enciclopédias; hoje usufruem da leveza rápida do Google pai. Pululam por aí os inveterados umbiguistas, que fazem de suas nem sempre exóticas entranhas o farto prato de todas as mesas; conquistam amigos do peito, igualmente desafetos aos borbotões. Encontra-se também os que entortam bigornas na procura do tema certeiro, e batem que batem martelos que nem ferreiro à beira do fole na busca do estilo correto; verdade que acertam aqui e acolá uma foice que preste, um machado de mestre; mas na maioria das vezes apenas estragam ferro... esquentam a braguilha, tostam o bigode e as sobrancelhas. 
Mas o cronista maior é mesmo aquele falsamente displicente, estudadamente arrogante, despudoradamente cínico; mas que não seja nem mesmo alegre, de modo algum triste, muito menos poeta. Diz tudo o que o fiel leitor (esse canalha exigente) quer ouvir e nunca teve lá muito tempo, tudo o que o ledor sempre quis dizer e jamais criou coragem de pronunciar; tudo o que ele (esse, convenhamos, famigerado leitor) sequer imaginou. 
O cronista bom mesmo é aquele que nem mesmo possui o nome de cronista impresso na cabeceira da página, que é apenas mero colaborador, colunista, convidado, sujeitado... Um quase escritor fantasma! Que escreve pelo simples prazer (e vaidade, não é mesmo?) de ver seu nome estampado, que não ganha nadicas de nada e ainda compra o jornal!