domingo, 23 de outubro de 2022

"Falso Messias", de Raymundo Netto para O POVO

 


Há mais de 2 mil anos, uma sentença impactaria definitivamente no destino da humanidade. Ali, encontrávamos dois prisioneiros: Jesus de Nazaré e Barrabás.

Existia uma tradição, pelo menos é o que diz o Novo Testamento – e apenas lá –, de se libertar um detento durante a Páscoa judaica. Barrabás era bastante conhecido pelo povo judeu, e estava preso e condenado à morte por ter participado de um movimento rebelde que culminou na morte, talvez, de um ou mais soldados romanos.

O governador romano Pôncio Pilatos, ao que tudo indica, entre os dois, tencionava libertar o preso Jesus, pois não via motivos justos para a sua condenação, contudo, os eloquentes sacerdotes – que já o haviam espancado durante extenso interrogatório – se manifestaram a favor do outro, o Barrabás, convencendo a multidão, o “povo de Deus”, que optasse por ele, e mais: que assassinasse Jesus!

Influenciada pelos seus sacerdotes, a multidão, por aclamação, concedeu a liberdade a Barrabás e exigiu a morte do segundo. Pilatos, surpreso e receoso de uma revolta ali, lavou as mãos e o libertou, prendendo Jesus novamente, torturando-o, e, por fim, o crucificando, como assim os sacerdotes e o povo – de forma alguma comovidos com aquela tragédia e tomados por ódio e indignação – desejou.

Essa história nos é repetida, por diversos meios, desde o berço. Nos apresentam um Jesus lourinho, de olhos azulíssimos – um europeu em pleno Oriente Médio –, uma imagem construída para o símbolo do amor. Da mesma forma, outra imagem, na cruz, a coroa de espinhos encerrada em sua cabeça ensanguentada, o olhar piedoso voltado para cima, “Eles não sabem o que fazem”, ou incompreensivo: “Pai, por que me abandonaste?”

Eu, sinceramente, não tenho dúvidas de que, fosse hoje, a depender de muitos de seus milhares de seguidores, a história se repetiria, talvez em vez da cruz, executado a tiros e, sendo ele pobre, provavelmente negro, mais um caso sem solução, entre tantos.

É desolador assistir a hipocrisia em massa de um povo que se diz “do bem”, de Deus, a se vangloriar de sua família, de sua tradição e costumes, quando na realidade estimulam os preconceitos, os individualismos, o desprezo e a indiferença pelos direitos humanos e pelos diferentes (negros, índios, LGBTQIA+, religiosos de outras crenças e culturas, portadores de necessidades especiais, vulneráveis de forma geral), que exploram trabalhadores e pobres, imersos na ambição e ganância, propagando uma cultura do ódio e da mentira – aliás, não tem noção nem discernimento de reconhecer uma mentira ou delírio, o que justifica tantos e tantos crimes e genocídios historicamente efetivados em nome da fé e desse Deus.

Hoje, por exemplo, nos é possível entender como o Nazismo de Hitler, que resultou na morte de mais de cinco milhões de judeus, se propagou pela Alemanha com apoio de seu povo “adorador” de Deus e da Pátria. Parece-me que suas orações não são poderosas o suficiente para iluminar as suas mentes, libertá-los dos grilhões da ignorância, como alucinados, repetindo ritos vazios e maculando o nome do amor, restrito a suas naves e templos, sem capacidade de crítica e/ou reflexão, em um total analfabetismo político (e até funcional). Daí, em nome de Deus, massacram física e psicologicamente a muitos que, secretamente, odeiam em seus corações divinais, negando-lhes a chance de existência e de paz. A desatenção completa ao segundo maior mandamento (MATEUS, 22), “Ame o seu próximo como a si mesmo” – apenas ele valeria a Bíblia inteira –, é o maior fracasso de todo o Cristianismo.

Aliás, eu sempre tive uma certeza: se o Diabo de fato existir, o lugar mais estratégico para sua atuação seria dentro das igrejas. Aqueles que se assemelhariam a ele, reconheceriam a sua voz, e tomariam em vão o nome do Senhor, o seu Deus, para pregar o pior mal (aquele que se passa por bem) e ludibriar os mais ingênuos, os mais frágeis.

Fica a advertência: “[...] o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.” (ÊXODO 20). Tragicamente, assistimos a falsos messias que, por meio de falsos profetas, insuflam falsos cristãos, promotores das piores iniquidades.

Assim, verdadeiros cristãos, se atentem às ações e aos seus frutos – conforme os valores de Cristo – e não apenas às palavras superficiais ditas por línguas perversas de serpentes.





I Ceará em Quadrinhos (25.10, Auditório Central Unifor)

No dia 25 de outubro, terça-feira, das 13 às 20h30, no auditório da Biblioteca Central da Unifor, acontecerá o I Ceará em Quadrinhos, uma ação do Centro de Ciências Jurídicas da Unifor, em parceria com o grupo de pesquisa “Justiça em Quadrinhos” e a Gibiteca Municipal de Fortaleza.

O objetivo do evento é “apresentar os principais intelectuais, quadrinistas, roteiristas e professores que elaboram, pesquisam e desenvolvem metodologias de aprendizagens sobre a nona arte.”

A programação (a seguir), que é totalmente gratuita, traz palestras com profissionais que trabalham com o tema no estado.

A Fundação Demócrito Rocha estará presente na participação do seu gerente editorial e de projetos, Raymundo Netto, e também pela apresentação de encerramento do documentário A História das HQs no Ceará (FDR, 2017), cuja coordenação, roteiro e pesquisa também é dele.

O primeiro tema do encontro, trata da lei que define os quadrinhos cearenses, ou seja, a lei que cria o Dia Estadual dos Quadrinhos no Ceará, 28 de setembro, escolhida em homenagem ao cartunista e quadrinista cearense Luiz Sá, proposta esta defendida pelo deputado estadual Renato Roseno.

PROGRAMAÇÃO

·        13h: Abertura - Daniel Camurça e Max Krichanã | Palestra “A Lei que define os Quadrinhos cearenses” | Palestrante: Eduardo Pereira (Diretor da Gibiteca Municipal de Fortaleza)

·        14h: Palestra “Importância dos Quadrinhos para o Ceará” | Palestrante: Raymundo Netto (Fundação Demócrito Rocha)

·        15h: Palestra “A Oficina de Quadrinhos da Universidade Federal do Ceará (UFC)” | Palestrante Ricardo Jorge (Jornalismo UFC)

·        16h: Palestra “Narrativas da Padaria Espiritual” | Palestrante: Charles Ribeiro (Literatura UFC)

·        17h: Palestra “História em Quadrinhos vão à Universidade” | Palestrante: Daniel Camurça Correia (Direito Unifor)

·        18h: Palestra “Quadrinhos: da Persona à Personagem” | Palestrante: Blenda Furtado - Estúdio Daniel Brandão

·        19h: Audiovisual - A história das HQs no Ceará (documentário da FDR) | Encerramento 

SERVIÇO

I Ceará em Quadrinhos
Data: 25 de outubro de 2022
Horário: das 13h às 20h30
Local: Auditório da Biblioteca Central







 

sábado, 22 de outubro de 2022

"Fogoió", de Pedro Salgueiro para O POVO


Talvez o único país seguro, mesmo com seus percalços e incertezas, suas areias movediças e logros, seja o país da infância; lá estão os pilares expostos com suas fissuras e ferrugens, também as represas longamente solidificadas por mil camadas de areias e fungos: um dia dali sairá, não tenho dúvidas, a última resistência... E, quando os abismos forem aos poucos se abrindo à volta, é de lá que tentaremos retirar a pouca (ou muita, sabe-se lá) proteção que nos amortecerá dos medos.

Quando menino havia um amiguinho oculto, não desses imaginados por crianças solitárias (digo logo para que não acreditem em metáforas), que nos seguia bobo e solitário por todos os lugares: não ia pra escola, talvez para sua família não fosse urgente obrigá-lo, também não seguia pro roçado ajudar nas tarefas que sobravam pros miúdos; apenas sabíamos que não aceitava de ninguém ordens nem obrigações, só fazia o que lhe desse na cabeça.

Simplesmente sumia por aí, embora soubéssemos que ele estivesse sempre por perto, de espreita, muito mais próximos de nós do que imaginávamos: na hora do recreio se esforçava para pegar as bolas que escapavam por cima do muro, logo jogando de volta; quando dávamos fé lá estava sua cabeça alourada (dizíamos “fogoió” na época) num canto do muro, como quisesse participar de nossas brincadeiras, mas não tivesse coragem.

Aos sábados todas as famílias da vizinhança iam para a missa e feira na cidade, e como morávamos na roça arrumávamos quaisquer meios que nos pudessem levar, uns iam de animais, que eram amarrados num enorme benjamim ao lado da praça da igreja, raros de bicicletas, um carro de linha com carroceria e escadinha carregava principalmente os de idade avançada; já a leva de meninos do vilarejo corria estradas, descobrindo toda sorte de novidade e brincadeiras que nos entretecem da poeira e pedras da estrada.

Sabíamos que o “de ovelha” nos seguia por dentro dos matos, vezes o víamos feito aparição fosforescente: ele nos pregava sustos de um lado e logo nos jogava pedras do outro, parecia se divertir com seu anonimato, embora estivesse muito mais presente em nossas vidas do que imaginávamos: era um de nós, um qualquer como todos e parecia mesmo nosso irmão; só que um irmão de todos do vilarejo, porque bisbilhotava a todos com igual intensidade: se demorasse a aparecer era motivo logo, entre nós, de queixas.

Apenas os adultos o tinham como atrasado da cabeça, para a meninada era apenas um de nós, invisível, mas muito presente: corríamos com ele, nós pelas veredas e caminhos e ele por dentro dos matos, ria de nós e nós dele: trocávamos pedradas e carinhos e quantas vezes não me ajudou em tarefas pesadas, em meu desespero saia pra chorar um pouco atrás de casa, quando voltava estava tudo bem feito e eu fingia não ver suas pegadas que sumiam na beira do mato.

A maioria de nós veio estudar na cidade grande para nunca mais voltar pro sítio, nas poucas vezes que retornei já preferia os namoros, as festas, o futebol com os adultos: soube apenas que ele nunca deixou de ser criança, que mesmo já barbado e grandalhão continuou suas inocentes traquinagens – afirmam que recusou bebidas, cigarros e correu com medo de uma menina que lhe demonstrou simpatia.

Eu mesmo continuei a vê-lo em muitas páginas de Zé Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, mesmo nuns livros estrangeiros: eram ele puro, “imperialzinho” como se dizia na roça: até que ultimamente tenho notado em mim, já velho e alquebrado, muitos traços do fogoió: sua estranha mania de andar nas sombras, sempre anônimo, de percorrer caminhos que margeiam as vias principais – os quartos sempre escuros, as ruas sombrias têm me atraído, e até já atiro pedras nos contentes que seguem aos risos esquecidos de mim.




 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

"Consuelo", de Raymundo Netto para O POVO


Deoclécio se casara com Consuelo inda muito jovem. Tinham filhos e contavam mais de 45 anos em comum, o que sempre parecia impressioná-lo: “Quem diria...”

Na cozinha, por horas, detinha a atenção naquela mulher a varrer, passar o pano, catar feijão e cortar cebolas. Ansiava pela hora em que reencontraria nela a mocinha de olhar brilhante que vira pela primeira vez na pracinha a semear gargalhada inconfundível, a propor ingênuo futuro de amores e a beijá-lo demorosamente como se o mundo fosse acabar ali, naquele instante. Ao contrário, então, ela sorria quase nunca, pouco se expressava, chegava ao ponto de parecer não ter nenhum querer ou esperança na vida. Se o ouvia? Não sabia. O rosto, geralmente sisudo, era sulcado de rugas. O corpo, frio e flácido. Olhava para ela e via a sua mãe. Pensava: “Como tocar em minha mãe?”

Consuelo, também com o tempo, recusava apetites. Quando de muita insistência, se dava a qualquer coisa, muito pouca e tímida, quase ausente, numa friúra de má atuação. O desejo trocado por frustração e impotência. Uma desgraça seguida de boa noite.

A fome e a longa jornada de rejeição abriu portas para um inesperado caso. Deoclécio sabia: “A amante não era metade da Consuelo de sua lembrança, mas o fazia homem de novo, achamado em paixão e ardor.”

Naturalmente, os arranjos se avolumaram e foi difícil manter a discrição: a filha o encontrara ao telefone público diante do bar. A outra, no carro parado em quarteirão escuro. O filho ouviu da vizinha que “parecia” ter visto seu pai com outro alguém num calçadão de praia. As filhas nunca, mas o filho o abordou. Ambos envergonhados, sem jeito, se encaravam: “Você é muito novo para entender.” “Eu não quero entender nada. E a minha mãe, como fica?” Olhavam para Consuelo sentada na sala e alheia a tudo. Apenas duas coisas lhe pareciam fazer algum sentido: a missa e a novela.

Deoclécio continuou vendo a amante, entretanto, o conflito o corroía. Não permitia que ela falasse de Consuelo, uma santa! Nem de longe criticar aqueles filhos. Ela silenciava, mas se impacientava diante daquela imprevista insegurança.

Um dia, a notícia: Consuelo morreu! “Foi o câncer”. Em meio ao sofrimento e à culpa, ainda ouviu da caçula: “Pai, você conseguiu. Agora está livre para sem-vergonhice!” Os outros filhos silenciaram. Nada mais importava agora.

Deoclécio quedou-se em cacos. Chorava a soluçar, feito menino. Esforçava-se, mas não conseguia se lembrar da última vez que conversaram nem sobre o quê. Morria com Consuelo a sua melhor porção.

Deitaram os anos. O homem envelhecera tudo o que podia na vida. A amante desaparecera há tempo. Porém, um dia, no bar, a encontrou agarrada a outro, chamando pelo mesmo apelido de cama que outrora lhe pertencera. Fitava-a e pensava como pôde: “Tão sem graça aquela...”

Voltou para casa escura e vazia. Com a ponta dos dedos acompanhava o desfile de porta-retratos a relembrá-lo da irreparabilidade de uma vida, o desencontro, o desamor, a insuportável saudade daquilo que foram e tiveram.

Daí, um fulminante silêncio tomou conta de seu peito, ao ouvir uma alegre gargalhada lhe chegar daquela cozinha:

“Consuelo? É você, meu amor?”

 

Publicado originalmente em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019). Se tiver interesse em adquirir, pode fazê-lo pelo WhatsApp (85) 99183.8515




 

domingo, 2 de outubro de 2022

"Laika: caroço de Sputnik", de Raymundo Netto para O POVO


Há mais de 60 anos, na onda de Guerra Fria, o satélite soviético Sputnik I marcaria o início da corrida espacial, deixando a potência estadunidense impotente diante da incalculada e atroz humilhação. Não bastasse, um mês depois, novamente a U.R.S.S. promoveria o cazaque lançamento ao espaço de um novo satélite, o Sputnik II. A novidade maior seria que a bordo deste estaria acomodado o primeiro ser vivo a orbitar a Terra. Para o orgulho feminino, e por um restritivo detalhe anatômico, o ser não seria “ele”, mas “ela”, a cadela Laika, de apenas 3 anos. Ou seja, ela não falava, porém, já latia.

Na época, dada como morta em circunstâncias que iriam além das divisas atmosféricas e, portanto, da jurisprudência mundial, o destino da heroína e mártir socialista se tornou motivo de diversas conjecturas e teorias. Eu, no entanto, não acredito em nenhuma delas e explico o porquê.

Há alguns anos, fotografando as ruínas ferruginosas do mercado da carne da Aerolândia – hoje completamente restaurado –, assisti a uma cena insólita: parecia um cão descendo de paraquedas. Seria possível? Seguindo meu instinto de jornalista diplomado em Ministério, corri até a base aérea para saber o que era aquilo.

No descampado, a vi sobre as patas, mangas arregaçadas, a recolher as longas linhas de náilon e o velame. Apresentou-se: era ela mesma, a Laika, em pessoa... ou melhor, em cachorro. Incrível. E todos pensando que ela, há tempos, teria virado “hot dog”!

Latindo fluentemente em português, não demorou a demonstrar a garganta seca e a perguntar, numa sinceridade quase gentílica, “onde poderia encontrar vodka”. Ofereci-me a levá-la ao Benfica. Não bebo. Então, quando me pedem por álcool, ou levo para a farmácia ou ao Benfica.

No caminho, por meio de fórmulas complicadas, que fingi entender para não parecer mais burro, a pequena vira-lata – insistia na tese de que pertencia a uma linhagem pouco convencional de husky siberiano, mas... – me explicava: devido ao tempo relativo, ela, que, teoricamente, deveria ter mais de 60 anos, gozava de uma jovialidade impressionante. Falou também existir uma Sociedade Sideral Protetora de Animais e que foram alguns de seus integrantes que a mantiveram viva quando a equipe russa a largou de mão... Ouvindo tudo aquilo, eu que desconfiava, agora tinha a absoluta certeza: “as vodcas do Benfica não prestam!”

Contou-me mais. Com tempo de sobra, além de encher o bucho com gelatina russa, leu de trás para frente obras de  Фёдор Миха́йлович Достое́вский e de Анто́н Па́влович Че́хов, “gênios”, sendo agora também uma contista: “Aliás, a nossa literatura é a melhor do mundo”. Pior é que é: Gogol, Tólstoi, Pushkin, Maiakoviski...       

Assim, escreveu também diversos livros. Alguns teriam feito bruto sucesso em Fobos, uma das luas de Marte, que, historicamente, vivia em conflito com o planeta vermelho.

Nostálgica, a cãosmonauta falava de seu exílio, da saudade das noites de lua em Moscou, da boêmia em São Petersburgo, até chegar às alucinações da experiência da proximidade com a morte e do seu encontro com Deus, num arrependimento legítimo de um Raskólnikov: Estive, praticamente, nos braços Dele, mais do que qualquer outro ser... mais até do que o Papa!”

Diante de outras divagações e da tediosa mansidão canina, que percebia ir mais longe do que se foi, arrisquei a obviedade: “Desculpe-me, Kaka, mas a pergunta é inevitável: a Terra é mesmo azul?”

Sorrindo com graça e humildade, lambeu o dorso de minha mão e perguntou: “Ora, Raymundo, você esquece que os cães enxergam em preto e branco?”

 

Publicado em Quando o Amor é de Graça! (EDD, 2019)