segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Nerds" (na íntegra), de Raymundo Netto para O POVO


Stanley era um daqueles garotos que vulgar e pejorativamente eram carimbados de “nerd” na escola. Com isso, sempre fora excluído das rodas mais populares, visto com a mesma estranheza que aparentemente exalava. Silencioso, tímido, embora pouco discreto – usava sempre camisas pretas com estampas coloridas, bottons e pins em todo canto –, ainda conseguia reunir outros ao seu redor quando, na hora do recreio, aparecia com gibis de super-heróis, distopias ficcionais, aventuras espaciais e interplanetárias repletas de androides que, com o tempo evoluiriam para publicações undergrounds, sci-fi, cavaleiros steampunks, mangás, figurinhas e jogos de RPG.

Na sua casa, sem irmãos e saindo da adolescência, trancando a porta do quarto, era irreconhecível: vivia na sua mente fervilhante de imaginação as mais eletrizantes aventuras de seus ídolos, fosse pulando nas paredes ao som do lança-teias de boca, treinando sua espada Jedi coberto em lençol ou praticando um “gomu gomu no qualquer coisa” contra maquiavélicos travesseiros e almofadas. De resto, quando não estudava, era vidrado em TV, nas séries favoritas, numa crença de “vida longa e próspera”, cercado por quadrinhos, álbuns de figurinhas, máscaras, batarangues, modelos de naves espaciais – como a Millennium Falcon –, entre outros brinquedos, o espaço e a fronteira final...

Entretanto, os hormônios da juventude explodiam como supernovas por dentro e ele passou a sentir falta da “mocinha” naquelas brincadeiras. Onde estaria a sua Mary Jane, Tempestade, Lori Lemaris, Batgirl, a srta. Naaamiii...?

Sabia que ali estava o seu ponto fraco, a sua icônica fragilidade heroica: diante das garotas, entrava em um desconcertante e irrecuperável estado de letargia e tartamudez.

Havia uma, apenas uma garota a não lhe causar tais efeitos. Era a vizinha do oitavo andar de seu prédio. Fã de mangás e animes, vez ou outra ela o encontrava no hall do condomínio e aproveitava para consultá-lo sobre as novidades das revistarias ou trocar ideias sobre os últimos episódios daquelas séries do Miyazaki. Os olhinhos dela brilhavam por cima de seu sorriso branco e tímido, como a bandeira nipônica, encantados com o falatório colorido e tão seguro daquele rapazola.

Um dia, inesperadamente, Shizuko – era esse o seu nome – o convidou para conhecer a sua coleção de mangás em seu apartamento: “Não se preocupasse, estava sozinha!”

Stanley a acompanhou no elevador, mas, de repente, sentia gelar as suas pernas. Olhando bem – nunca reparara direito –, passou a perceber em Shizuko uma beleza singular. Esguia, muito branca, pescoço longo e cabelos cor de rosa. “Como a Jessie... Tão pokemônica!” Sim, estava quase apaixonado, uma dimensão inexplorada até então.

Todavia, imaginou: aquilo tinha tudo para dar errado. Que mulher se interessaria por um cara vestindo camiseta do Homem-Aranha, que ainda brinca com bonecos e é completamente obcecado por quadrinhos? Tirando a sua mãe, ninguém!

De fato, Shizuko apresentou-lhe a sua coleção, mas não se deteve ali. Atraída pelo súbito acanhamento e seu excesso de inocência, se jogou num épico e descompromissado beijo de dorama, conduzindo-o a um primeiro descuido de amor... ou de sexo, vá lá.

Ao final da tarde, ela, sentada na cama, abotoava a blusinha: “Você foi incrível, Stan!”

Ele, definitivamente inebriado por novas sensações, era outro, sentia-se empoderado, seguro e alucinado, como se conquistara o Everest. Não parava de falar. Não parava.

De repente, pôs a camiseta e, para surpresa dela, saltou pela janela de seu quarto. Porém, ao invés de lançar teias e se desembestar pelos arranha-céus comemorando o grande feito, estatelou-se fatalmente na quadra próxima à piscina.

Afinal, nós sabemos: em quadrinhos, nem sempre os heróis têm finais felizes...






 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

"Saudades, Infinitas Saudades!", de Pedro Salgueiro para O POVO


Desligado que sou, ando frequentemente no mundo da lua (mesmo debaixo deste calor causticante da nossa loirinha desmazelada pelo sol) quando tomo conhecimento de fatos e pessoas que faz tempo são muito conhecidos dos outros, e tomo da surpresa um susto, lendo a página na internet do mestre Ronaldo Salgado, descubro que existe um Dia da Saudade, paro o dedo nervoso de passeador de internet e quedo pasmo a ler a pequena pérola:

“AH, SAUDADE! QUE MODOS DE EXISTIR?

Tenho alguns amigos que costumam me cutucar com vara curta como se eu fosse onça pintada. Falam em alto e bom tom: "Cara, tu sempre quer um motivo pra beber!" Essa não é uma verdade nem absoluta nem relativa. É simplesmente uma verdade, entre tantas espalhadas por aí. Mas hoje, quando se comemora o Dia da Saudade, alguém aí tem o destempero de me criticar porque vou brindar a saudade? Du-vi-d-o-dó! Saudade é copo cheio de memória. E com memória não se brinca! Tenho até desconfiança de que uma e outra são retroalimentadoras entre si. Ora, a gente sente saudade do que viveu... Isso não é esteio de memória? E a gente guarda na mente e no peito esquerdo lembranças, reminiscências e recordações do que vivemos... Isso não é leitmotiv de saudade? Embaralha as expressões verbais para ver o que acontece! Saudade de pessoas, de datas e épocas importantes, de beijos e abraços fervorosos debaixo de sol quente ou de chuva indômita. Saudade de canções cantadas ou não em serenatas ao luar. Saudade de livros, filmes, discursos, gols, gestos, atitudes, carícias e carinhos, segredos e aventuras... Ora, pois tá! Até de bancos de praça onde se trocou o primeiro e interminável beijo sente-se saudade – pergunte a Ronnie Von, que cantou aquela música que nunca me sai da memória. Vixe, olha a memória aí de novo, juntinha com a saudade. É, gente, saudade é de vida e de morte. País, mães, avôs, avós, irmãos, irmãs, filhos e filhas, netos e netas, amigos, amigas, heróis de carne e osso e representacionais, ídolos... Eu tenho saudade até do Zé Pilintra, que eu não conheci, mas não sai do meu 1/4 de Bar – Terraço Poeta Sales! Pois taí um brinde à Saudade!”

Pronto, passei o dia inteiro a cometer saudades, não uma só, que sou repleto delas, vivo em faltas de dinheiros, vontades, coragens, mas empanturrado de recordações e saudades – o pensamento voou ao passado (tem razão o bardo da comunidade das Quadras da Aldeota: passado e saudade andam de mãos dadas sempre).

Lembrei-me devagarinho a infância, corri para os campinhos de futebol improvisados no meu Alto das Pedrinhas, lá pelo Tamboril de antigamente, mas não só os três ou quatro recantos que marcávamos entre grotas e areias e pedras, mas os dos bairros vizinhos dos Pereiros e Praça 11, onde disputávamos nossas primeiras pelejas mais organizadas; de lá a memória (e a saudade!) vagaram pelo campinho triangular da Rua de Baixo (que por ser caminho do cemitério, certa vez paramos o joguinho para que desfilasse rua abaixo um enterro: porém antes que o cortejo triste dobrasse à esquerda na Ponte da Mijada já recomeçamos a partida no mesmo local e lance onde havia parado), dali para o estranho campo do Morro do Tetéu, e recordei que lá de uma trave não se avistava a outra, seguia a lembrança para o Campo do Juremal, quando me dei conta já umas lágrimas me embaciavam os olhos.

Então lembrei que não deveríamos ter apenas um dia da saudade, mas um ano talvez, um mês, quiçá uma semana... Talvez bastasse alguns minutos por dia! E já que as saudades são infinitas, deduzo que – na verdade – jamais poderíamos delimitar um tempo para sentir saudades.