terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"O POVO: 85 anos presente no Ceará III", crônica de Raymundo Netto para O POVO (20.2)


Clique na imagem para ampliar
Em pé, da esquerda para direita: Filgueiras Lima,  Mário de Andrade  (do Norte), 
não-identificado e Martins D'Alvarez;
Sentados, da esquerda para direita: Paulo Sarasate, Suzana de Alencar Guimarães, 
Raul Bopp (autor de Cobra Norato, em visita a Fortaleza no final da década de 1920), 
Demócrito Rocha e  Silveira Filho. (Foto: Arquivo Nirez)

O Modernismo em Demócrito Rocha

“Saudade que ainda espera,/ É lembrança./
Saudade só é saudade,/Quando não resta esperança.” (Demócrito Rocha)

Já vimos que o jovem Demócrito Rocha saíra de seu berço natal, a pequena aldeia de Caravelas da Bahia, e dirigiu-se a Aracaju, em 1907, onde, por meio da tia, ingressaria em melhores escolas, dentre elas, o Ateneu Sergipano, onde lecionava o latinista Brício Cardoso. Por intermédio de Jackson de Figueiredo, um admirador do cearense Farias Brito, foi apresentado à Filosofia e a Literatura.[1] Também foi em Aracaju que conheceu o Esperanto, paixão a carregar pela vida inteira — integrou o Esperanto Klubo-Cearense, primeiro clube esperantista do Ceará, escrevia para o jornal Nova Mondo (1923) e, na fase final de sua vida, lia a Bíblia no idioma artificial de Zamenhof[2]. A partir dos benefícios proporcionados pela fluência da “língua universal”, tomou gosto pela Filatelia — no futuro, introduziria uma coluna sobre selos em O POVO —, e comunicava-se com diversos países, atualizando-se dos fatos antes de muitos de seu tempo.

Já casado, suas filhas estudavam no Colégio da Imaculada Conceição, onde, por um período, foram alunas de Rachel de Queiroz, paciente do dr. Demócrito, o dentista, além de amiga e companheira de movimento literário e futura — eterna — colaboradora do seu jornal. Aconselhado por Lourenço Filho, na época redimensionando o ensino público estadual, colocou-as na Escola Normal, a contragosto da esposa, Creusa.

Em casa, gostava de ouvir música brasileira e clássica, por meio de seu gramofone, lia de tudo, não descuidando de tomar as tarefas das filhas Albanisa e Lúcia. Ao contrário do jornalista rigoroso e combativo, em casa e com os amigos, Demócrito era brincalhão, alegre e irreverente[3]. Num baile de carnaval do Clube Diários, por exemplo, não tendo uma fantasia, enrolou-se numa bandeira nacional e foi à folia. Em sua casa, nunca almoçava sozinho. Ao chegar mais tarde, convidava até os vizinhos para o acompanharem. Da mesma forma, era frequente proseador nos quiosques, restaurantes, bancos de praça e cafés da cidade (dentre eles o Java, onde se conjeturou a criação da Padaria Espiritual, e os do Passeio Público).

Em 1924, na sua revista Ceará Ilustrado, criou o concurso de eleição do “Príncipe dos Poetas Cearenses”, cujo eleito foi o Padre Antônio Tomás. Em 1963, 22 anos após a morte do padre, e 20 da de Demócrito, nova eleição realizada, a vitória foi de Cruz Filho. Em 1974, Jáder de Carvalho, e, com o falecimento deste, em 1985, foi eleito o atual príncipe, o pacatubano Artur Eduardo Benevides.

Em 1928, Demócrito lançou O POVO! Afirmou Rachel de Queiroz, mais tarde: “Acho que nunca, em Fortaleza, um jornal novo tivera êxito assim fulminante. E O POVO era Demócrito, Demócrito que o fazia todo, com a ajuda entusiástica e solitária de Paulo Sarasate.[4]”. De fato, O POVO, ao contrário dos dias atuais, surgia em meio a diversos jornais concorrentes, mas rapidamente firmou-se, sendo hoje, dentre eles, o único existente. A sua sede situava-se num sobradinho na praça dos Leões, o de número 158. A tiragem, a 200 réis o exemplar, rapidamente se esgotava. O motivo, todos sabiam, a coluna de Demócrito, “Nota”, continuação do sucesso de sua também “Nota do Dia”, que escrevia anteriormente em O Ceará, jornal de Ibiapina. Mais tarde, assinando como “Barão de Almofala”, pseudônimo usado na época de O Ceará, abriu a coluna de Grafologia de O POVO, que fez grande sucesso entre leitores.

E mais: Demócrito, conhecedor de todos os escritores cearenses da época, tentou uni-los como pôde, democraticamente, tanto os “modernistas e passadistas”, mesmo os que residiam fora do estado, como Edigar de Alencar, fazendo de sua folha não apenas o espaço da notícia, da denúncia, mas da beleza, da vida e arte. Ele, inclusive, poeta e admirado por tantos, escrevia, mas sob o pseudônimo de “Antônio Garrido”. E esse Demócrito criava enquetes com entrevistas de escritores, abria colunas literárias, relacionava-se com o modernismo de São Paulo e Rio de Janeiro — “para nós, então, as duas metades inacessíveis do Paraíso”, conforme Rachel de Queiroz — e promovia a literatura do Ceará. Manifestava: “O modernismo que eu entendo é esse que nós fazemos: modernismo nacional, saturado de tudo quanto é nosso, original, sugestivo, impressionante... Querem saber? Se eu continuasse a dizer o que penso do modernismo não acabaria mais”. Tudo isso fez com que Filgueiras Lima decretasse: “Demócrito tornou-se, em pouco, a coluna mestra do modernismo no Ceará”. E é verdade.

Não bastasse a inquietação que trazia em seu jornal, Demócrito criou o Maracajá, “suplemento literário de O POVO” que, embora tenha saído apenas em dois números, teve “[...] atuação decisiva e, porventura, espetaculosa, sensacional...”, como lembra Filgueiras. Tão atuante era a presença cearense nos primeiros anos do modernismo, que alguns dos textos publicados em Maracajá foram reproduzidos na famosa Revista de Antropofagia, dentre os quais “A Matança dos Inocentes”, de Demócrito Rocha. Importante destacar que os editores paulistas suprimiram o final de seu texto em que criticava o modernismo de “lá”: “Eles metem excessiva erudição no que fazem. E bancam sisudez. Nós [escritores de ‘cá’] somos alegres por índole. Em São Paulo, os rapazes para fazer a sua antropofagia precisam dar o laço à gravata.” Assim, além de outros, o Diário da Tarde, de Curitiba, em 2 de julho de 1929, dizia que Antônio Garrido [Demócrito], Paulo Sarasate e Mário de Andrade [do Norte] “são os construtores libérrimos do Ceará intelectual de hoje”.

O reconhecimento ao jornalista e poeta Demócrito Rocha, além de ao seu jornal, vinha de todos os lados. Henriqueta Galeno, filha do poeta Juvenal, a primeira e maior feminista cearense [uma das primeiras defensoras do divórcio no Brasil], criadora da Casa de Juvenal Galeno — durante décadas a Casa foi o maior e mais legítimo centro cultural cearense, hoje ainda resistindo em beleza e em ideal, mas desconhecida e/ou negligenciada por parte da ignorância cultural dos filhos da terra ou pela soberba da erudição palaciana —, em sua viagem ao Rio de Janeiro, em 1931, apresentava, em diversas conferências, O POVO, “um dos mais valiosos jornais da minha terra” [que contribuía para o ideal feminista já naqueles tempos[5]], e, dentre outros intelectuais, “Demócrito Rocha, legítima e brilhante expressão jornalística, orador vibrante e fecundo”.

E foi ali, na Casa de Juvenal Galeno, em 5 de setembro de 1930, que Demócrito deixou no álbum de visitas de Henriqueta manuscrito inédito do poema “Rio Mar”, assinando, como de costume, “Antônio Garrido”:

Veio das catadupas* do dilúvio universal
Veio dos planetas que se fundiram
ao calor das forjas de todos os Sóis...
Veio do orvalho caído de todas as folhas
nas grandiosas matas sul-americanas...

Foi a cordilheira dos Andes que se desmanchou
em água e entrou desvairada pelo Oceano...

Rio! — umbigo do mar que nasce
do ventre fecundo da Terra Brasileira,
bebendo-lhe o sangue virgem
na formidável placenta da Amazônia...**

(*) imensas quedas dágua
(**) Atualizamos a ortografia.

Em 7 de janeiro de 1929, escreve Demócrito: “Apareceu por aqui [na redação de O POVO], com vontade de ajudar-me, um estudante de Direito, de pouco mais de 20 anos de idade. Paulo Sarasate é o seu nome[6]. O jovem já tem experiência em revista, já andou preso, com Perboyre e Silva e Plácido Castelo. Vou dar-lhe o cargo de redator-secretário.”[7]

O POVO se fortalece. Quer saber como? Daqui a 15 dias tem mais.



[1] Jackson de Figueiredo saiu de Aracaju para estudar Direito na Bahia. Anos mais tarde, num acidente, morreria afogado.
[2] Em 11 de dezembro de 1955 foi fundado o Esperanto Klubo Demócrito Rocha, em sua homenagem.
[3] Traços de União, da (sempre) jovem Adísia Sá, explora o lado familiar de Demócrito Rocha.
[4] Muitas das informações sobre o modernismo no Ceará e a ação de Demócrito Rocha, aqui indicadas, podem ser encontradas em O Modernismo na Poesia Cearense: primeiros tempos, de Sânzio de Azevedo, pelas Edições Demócrito Rocha, 2012, que traz, anexas, as duas edições fac-similares de Maracajá.
[5] Creusa do Carmo Rocha, esposa de Demócrito, foi a primeira mulher a votar no Ceará.
[6] Paulo era filho do maestro Henrique Jorge, músico, um dos membros da Padaria Espiritual.
[7] Memória de um Jornal, de José Raymundo Costa.

"O Braga era Assim...", crônica de Vera Lúcia Albuquerque de Moraes (19.02)



"Rubem Braga", por J. Bosco
Na crônica Lucíola era assim, sentimos quão importante é a leitura do texto por prazer - esse sorriso que transborda para o interior e preenche todos os poros e recantos mais íntimos de nosso corpo e, surpresos, deparamo-nos com algo que, inconsciente e insistentemente, procurávamos como necessidade vital!
       O Rubem Braga não deixa por menos, ao iniciar sua crônica com esse irônico e delicioso parágrafo: “E de repente nos lembramos das damas antigas dos velhos romances: como guardavam coisas nos seios! Dali tiravam o punhal, a flor, o veneno, maços de cartas fatais, lenços... Ah, é talvez por isto que as mulheres de hoje perderam tanto de seu mistério! Levam apenas o revólver na bolsa, e nada mais”. E mais adiante: “E nem ao menos desmaiam mais, essas senhoras de hoje. Quando o fazem é apenas por mau estado de saúde. Antigamente, o desmaio era um gesto, uma atitude, um recurso normal de mímica; quase fazia parte da conversação. Não que fossem falsos desmaios. Não; eram sinceros e naturais. As moças aprendiam a desmaiar como a tocar piano, a bordar, a falar francês. Era uma prenda doméstica”.
       O cronista formula, com maestria, um resumo perspicaz de gestos e atitudes que caracterizavam aquela sociedade feminina do século XIX em confronto com as pálidas “senhoras de hoje”. Volta a uma época em que o discurso sofria uma série de interdições morais, éticas e religiosas e o mundo da mulher era apreendido mais nas entrelinhas: olhares sinuosos, palavras sussurradas, recados e bilhetes escondidos, enfim, uma série de estratégias desenvolvidas para que a mocinha, tão vigiada, tivesse a chance de enviar algum sinal ao seu amado. Por causa dessas vias indiretas, aconteciam os mal-entendidos e impedimentos que culminavam em constantes brigas dos casais: nesses casos, os lencinhos molhados de lágrimas constituíam recursos infalíveis para a reconciliação.
       Mas Lucíola não era uma pobre mulher frágil; ao contrário, era a mais poderosa cortesã do Império, “a sultana de ouro”, como dizia Alencar, e acrescenta Rubem Braga: “Se quiserem o nome todo direi que não sei; apenas posso informar que ela não tem telefone. Seu último endereço era em Santa Teresa. Notícias suas os interessados podem obter lendo o romance de José de Alencar”.
       Deparamo-nos com uma mulher-mito de sensualidade e de luxúria, na Corte fluminense: “...havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas que tremiam...”, “...arqueava, enfunando a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso...”, “...as tranças luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros...”, “...uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés...”
       Mas na concepção moral do romancista Alencar, essa condição atual de cortesã era terrível consequência de uma situação infeliz na infância da protagonista: a mulher, vítimizada pelo destino, traz ainda, em sua alma, “uma dignidade meiga e nobre” – presságio de que recobrará, no final do romance, a pureza de alma, apenas velada pelas circunstâncias existenciais.
       Nada se compara à sedução dessa personagem – eco de outras famosas personagens da literatura francesa  no imaginário masculino traduzido por Rubem Braga. Mas o que impressiona verdadeiramente o cronista é a personalidade camaleônica de Lucíola, uma vez que se metamorfoseia, sem cessar, segundo humores e ocasiões, demonstrando inesgotável versatilidade: “o leitor também a verá lívida, ou a gargalhar, ou caída em profunda distração, ou titilante de heroína e sarcasmo, ou ébria de champanha e coroada de verbenas...”
       Captar a beleza desse romântico livro com tamanha percepção estética, permeada de boa dose de leveza e bom-humor, nos deixa com saudade de uma época não vivida, plena de possibilidades, encantamentos, mistérios e seduções.
       Não, não se fazem mais cronistas como antigamente...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

"O POVO: 85 anos presente no Ceará II", crônica de Raymundo Netto para O POVO

"Demócrito Rocha", acervo de Lúcia Dummar.


Eis que surge: Demócrito Rocha!

“O jornal é como o vinho: quanto mais velho, melhor e mais generoso.
O POVO não pode ocultar o prazer de seus redatores, neste dia de seu primeiro aniversário.
Quando ele tiver uma centena de anos... Está bem.
Mas isto fica para os nossos netos, para os tempos ditosos, quando
houver crescido a árvore que nós plantamos...”

 (Demócrito Rocha, em 7 de janeiro de 1929, no editorial que celebrava o primeiro ano de O POVO)

Demócrito Rocha nasceu baiano de Caravelas, aos 14 de abril de 1888. Perdeu os pais, João e Maria da Glória — o pai, aos dois; a mãe, aos cinco anos —, sendo ele e o único irmão, Heráclito, criados pela avó Ana numa família de poucos recursos. Menino, aos 12 anos, trabalhava de torneiro na oficina da estrada de ferro, 9 horas por dia, folga nos domingos. Aos 19 anos, moraria em Aracaju, onde uma tia lhe oferecia melhores condições — estudou no Ateneu Sergipano e no Colégio Americano. Três anos mais tarde, ingressaria na Escola de Odontologia. Devido à condição financeira, e passando em concurso público para telegrafista, largou a Faculdade e transferiu-se para Fortaleza, em 1º de fevereiro de 1912 (1), indo morar numa pensão. No Passeio Público viu, pela primeira vez, Creusa do Carmo (9 anos mais jovem) e, seis meses depois, em 9 de fevereiro de 1915, casaram-se. Em agosto, em plena famigerada seca, o casal se dirigiu ao Iguatu, retornando a Fortaleza durante gravidez de Creusa. Maria Albanisa, a primeira filha — futura Sra. Paulo Sarasate —, nasceu em 1916, e, em 1917, de sete meses, Maria Lúcia, a caçula — que após a morte do pai casaria com João Dummar, o pioneiro do rádio no Ceará. Em 1921, após longo hiato, concluiu Odontologia, na 2ª turma do Ceará, assumindo, já no ano seguinte, disciplina na Faculdade de Farmácia e Odontologia. Em 1922 sofreria sua primeira grande perseguição política, sendo acudido pelo Arcebispo D. Manoel e Antônio Sales.

Mesmo atuando como dentista em seu consultório, professor na Faculdade e telegrafista para os Correios e Telégrafos, Demócrito era irrequieto, e em 1924, após ouvir Otacílio de Azevedo e Orlando Luna Freire, iniciou a publicação da revista Ceará Ilustrado. Segundo Otacílio (2), “Demócrito sacrificava parte da verba auferida com o seu trabalho no consultório e aplicava-o, com a maior boa vontade, na revista. Era de vê-lo, então, feliz, [ele próprio] fazendo a distribuição da revista nos quiosques da praça do Ferreira”. Foi na Ceará... que ele criou o concurso de escolha do “Príncipe dos Poetas Cearenses”, no qual foi eleito o Padre Antônio Tomaz.

No ano seguinte, Matos Ibiapina fundou o jornal O Ceará, opositor do governo, e convidou Demócrito como Diretor Literário, sendo frequente colaborador com a coluna “Nota do Dia”, na qual assinava “DR”. Neste ano, torna-se um dos fundadores da Associação Cearense de Imprensa, a ACI. Na época, mantinha seu gabinete dentário, mas montou outro, próximo à igreja do Patrocínio, exclusivamente para atender aos mais pobres.

Em março de 1927 fundou o Partido da Mocidade, juntamente com Jáder de Carvalho, Plácido Castelo, Alfeu Aboim, dentre outros, onde combatia ao latifúndio e exigia a fiscalização das eleições, a moralização do voto e a arregimentação dos operários em forte núcleo eleitoral, dentre outros princípios. Em junho do mesmo ano, após ameaças constantes e perseguições denunciadas em O Ceará, é espancado barbaramente por doze policiais em praça pública, promovendo uma onda de protestos por toda cidade, recebendo apoio da imprensa brasileira.

Em 7 de janeiro de 1928 fundaria O POVO, “o jornal das multidões”. Em agosto, Demócrito, que era simpatizante de Prestes, manifestou-se abertamente, no Theatro José de Alencar, contra o presidente Moreirinha, comparando-o a um mucuim (um inseto cuja picada causa dor e coceiras), durante a visita da Caravana Democrática de Assis Brasil (3).

Em 1929, O POVO lançou a revista Maracajá, veículo de elevada importância na inauguração e promoção do Modernismo do Ceará. Também em ‘29, um grande risco para economia mundial e, por consequência, para a empresa O POVO: o “crack” da Bolsa de Valores de Nova York. Mas, ao contrário do que muitos esperavam (outros, incomodados, torciam), o jornal cresceu ainda mais, adquirindo moderno equipamento da Alemanha e mudando-se, no ano seguinte, para novo prédio, na Major Facundo.
Em 1930, ano em que, considerado “subversivo”, se refugiou em esconderijo onde se comunicava com o resto do país por meio de código Morse, ingressou na Academia Cearense de Letras. Após a vitória do movimento de 30, foi convidado para assumir cargo no governo, o que recusou. Quatro anos mais tarde, elegeu-se deputado federal. Transferiu-se para a capital brasileira, o Rio de Janeiro, de onde enviava manuscrita a coluna “Ceará... de Longe”, na qual defendia a modernização do estado e a fiscalização do uso dos recursos públicos. Em 1937, veio de férias ao Ceará. Está enfermo e descobre a causa: tuberculose. Mesmo assim, retorna ao Rio. Porém, Getúlio Vargas fechou o Congresso, o que o fez voltar, definitivamente, ao Ceará, quando passou a criticar a Ditadura Vargas — O POVO teve suas matérias censuradas inúmeras vezes, em parte ou na íntegra — e a combater o avanço dos ideais integralistas. Mudou-se de casa mais uma vez, a última, e passou a residir na “casa do cajueiro torto”, na Gentilândia.
Em 1943, no mesmo ano em que tomou posse no Instituto do Ceará; em que comemorava o progresso e crescimento de O POVO — em seus 15 anos — e a leitura de algumas de suas crônicas sobre a Segunda Grande Guerra pela BBC de Londres, foi em 29 de novembro, às 18h, que a doença lhe tomou o ar para sempre.

Demócrito tinha alma de poeta de “chamejante pena”(4), tão liberto e desprendido, que, mesmo com todas as funções que atendeu em vida, com todo prestígio que dela gozou, nunca preocupou-se em ter uma casa própria ou sequer publicar único livro. Sabia reconhecer a inteligência e o talento, promovia-os, criava, exalava ideias, homem de multidões, fiel aos amigos, democrático — a ponto de saudar o surgimento de jornais concorrentes —, quem sabe um dos pioneiros do marketing cearense, maior promotor da interação leitor-jornal.

Um dia, em 1934, Assis Chateubriand propôs negócio: compraria O POVO. Demócrito respondeu com a pergunta: “Venderia um filho?” Diante da negativa de Chatô, sorriu e disse: “Eu também não. O POVO é meu filho!” (5) Atitude poética pura. E é desse Demócrito Rocha, o poeta, o boêmio, o construtor de sonhos que falaremos mais daqui a 15 dias.

1. Afirmação do próprio Demócrito, publicada por Paulo Sarasate. Edmar Morel (10.9.12) e Padre Misael Gomes (01.09.12) conflitam sobre a verdadeira data.
2. Otacílio de Azevedo em Fortaleza Descalça, 3ª ed. Fortaleza, SECULT, 2011.
3. Daniel Carneiro Job em Praça do Ferreira, 2ª ed, 1992.
4. Raimundo Girão em Fortaleza e a Crônica Histórica, Ed. UFC, 2000.
5. Adísia Sá, em Traços de União, EDR, 1999.


sábado, 2 de fevereiro de 2013

"Panelinhas", de Pedro Salgueiro para O POVO (31.1)


Panela: Carlos Vazconcelos, Frederico Régis, Manuel Bulcão, Silas Falcão, Tércia Montenegro, 
Poeta de Meia-Tigela, Pedro Salgueiro e Glauco Sobreira.
Quase todos nós temos (ou tivemos), desde criança, nossas inevitáveis e fundamentais “panelinhas”.
Primeiro, pra mim, veio a “patota” da escola, seguimos juntos até a oitava série, com raras baixas, uns poucos repetiram o ano, outros mudaram de cidade. Ainda hoje quando nos vemos o coração bate mais forte, saudoso...
Depois veio a “turminha” do futebol, amigos antigos que dividiam sonhos e pelotas. Quase nunca os vejo, empurrados que foram para o “Sul” em busca da sobrevivência. Enorme também é a alegria nos raríssimos reencontros. Vez em quando sonho jogando com eles, os mesmos anseios, as mesmas emoções. Geralmente acordo triste, um vazio fundo cala no peito.
Na cidade grande as “cambadas” se sucedem com rapidez: veloz que a vida é por aqui. Fugazes se foram os amigos do Colégio São João, da Agronomia, da História e da Pedagogia. De quando em vez ainda encontro alguns até do tempo da residência estudantil Réu 125, ali da Paulino Nogueira, na testa da Praça da Gentilândia. Lá aprendi o equivalente a duas faculdades e meia, ou mais, na antiqüíssima escola da vida.
Hoje já coroa, barriguinha proeminente, cabelos poucos e grisalhos, não perdi a mania de “corriolas”, qualquer motivo é válido para reencontrar os novos e velhos amigos. Uma vez por mês algum de nós convoca o restante com um e-mail desabusado, não raro cheio de pilhérias e grosserias. São os malfadados “Poetas de Quinta”, que começaram a se reunir no Assis da Gentilândia às quintas-feiras e, devido ao barulho ensurdecedor do referido bar, hoje vivem a migrar de bodega em bodega.

Alguns levam livros para trocas, verdade que alguns tão ruins que sobram para os garçons. Fala-se um pouco mais sério no início, mas depois se caminha inevitavelmente para as amenidades.
Na turma boa não há preconceito de credo, time ou cor (muito embora sejam raríssimos os alvinegros ou fumantes). Não é fechada, muito pelo contrário, está sempre aberta a novos penetras. A variação de pensamentos e ações é notória: mas todos bebem ou dizem alguma coisa nociva. A gozação chega às raias do quase intolerável. Vez em quando os “meninos crescidos”, para não dizer “quase murchos”, perdem a compostura e saem da linha. Depois da terceira ou quarta cerveja desatam a querer discutir sobre tudo o que é inutilidade pública ou privada.
Nada sério, felizmente, mas algumas rusgas ainda resistem ao tempo e ao perdão. Nenhum dos velhotes se trata pelo nome verdadeiro: pulula uma variedade de apelidos infames, mas geralmente pertinazes com (ou “ao”) o temperamento ou o tipo físico do agraciado.
Uns morrem de raiva, até o próximo encontro quando poderão enfim se vingar.
— Tu lá entende de Maçonaria.
— Entendo, sim, muito mais que você.
— Deixa de ser ignorante!...
Alguém toma partido só pra atiçar os litigantes. Logo mudam de assunto e daqui a pouco já estão falando besteira a respeito de outro assunto.
***
Sei que vou (se não morrer antes, claro) ficar velhinho procurando amigos para encontrar e conversar besteiras, seja no alambrado do PV, no “Banco do Pau-Duro” da Praça do Ferreira, no sofá da Livraria Arte & Cultura, ou num boteco qualquer dessa imensa e sonsa loirinha desmilinguida pelo sol.

Curso a Distância "Secretaria Escolar", da Fundação Demócrito Rocha, inscrições até dia 15.02


Clique na imagem para ampliar!

http://fdr.com.br/secretariaescolar/2013/