segunda-feira, 27 de abril de 2020

"Linguagem", de Raymundo Netto para O POVO (27.4)



“Mulher intelectual não pega homem!” Ouvira isso inúmeras vezes, mas naquela noite de coração desértico, quente e vazio, seria diferente.
Ao espelho, vestia, quase em lágrimas, a roupa mais fatal. O próprio corpo queria saltar do vestido, ela não se reconhecia, envergonhava-se, mas nada importava mais!
Chegou a um pub. Pouca luz, muita fumaça, ar alcoólico e frenético barulho. Por ela, se jogaria na barra de pole dance, mas dirigiu-se ao bar, pediu uma bebida, a mais forte, que guardou entre os dedos até quando chamaram ao pequeno palco o poeta, um rapaz magrinho de cabelo avermelhado. Ele pegou o microfone, olhou para o público desatento e declamou aos gritos o seu poema.
Em meio à barulheira, o tilintar de copos e as risadas expressivas, ele continuava uma falação ardente, suspirosa e inútil, enquanto ela, mesmo quando alguém já apalpava a sua bunda, fitava-o. Não se sabe se por um instinto atávico e autossabotador, certo é que sentira tanto amor ali, capaz de encher até buraco sem fundo.
Ao final, aproximou-se dele, em uma indisfarçável timidez. Imersos no alvoroço, se olharam em risinhos desnecessários, quando ela deixou escapar: “Estou sem calcinha.”
Ele riu desconcertado: “Que comentariozinho mais exótico... ”
Extasiada, respondeu: “A um cantinho mais erótico? Agora? Sim, podemos ir, sim.”
Ele insistiu ao seu ouvido: “Não, eu disse exótico!” Ela, pasma consigo mesma, engoliu de vez o trago e emendou: “Sim, eu também. Foi o que eu disse... exótico?”
Marcaram então de se encontrar no sábado próximo, quando ele a levou ao zoológico para ver o recinto dos pandas. Era alucinado por pandas. “Que fofo!”, ela pensou.
Após uma hora de jujubas, aulas de cultura chinesa, veganismo e pandas, ela encorajou-se e tascou: “Sim, mas... você não gostaria de ir agora a um motel?”
Ao convite inesperado, ele murmurou: “Eu preciso que saiba de uma coisa...” Ela adiantou-se: “Você é gay? Ai, meu Deus, esse amor por pandas...”, quando ele acudiu: “Não, não sou gay... Eu sou virgem!” Aliviada, ou quase, estranhando ainda a resistência, pensou que seria uma experiência singular. Ele insistiu: “Mas muito virgem. Virgem demais. Nunca beijei uma mulher. Apenas espelhos, dorso da mão...” Ela nem quis saber e o trouxe à boca, quando, naquele momento tão inaugural, em vez do aguardado beijo recebeu uma tremenda lambida.
Ela sentiu um nojo colossal: “Que foi isso?” Ele queria mais. Nova tentativa. A lambeu outra vez, desta vez o rosto inteiro. O poeta tinha uma língua abundante, descontrolada. Tomara gosto e não pararia mais, se ela não se lembrasse de um falso e emergente compromisso. Ele compreendeu. Segurando a baba e com os olhos brilhantes, insistia: “Quando nos veremos outra vez? Quando?”
Não sabia o motivo, se por ser de Humanas ou pelo desespero de quem se afoga, mas o recebeu em sua casa.
Desta vez, sem cafés, enxerimento na estante de livros, entre outras preliminares, foi ele que se atirou sobre ela, afoito e covardemente, num apetite absurdo, rasgando-lhe as roupas e lambendo-a inteira, dos pés à cabeça e vice-versa. E a lambeu tanto, mas tanto, por horas sem fim, que pela manhã não havia mais nenhum pedacinho desejoso dela para contar história.



quarta-feira, 22 de abril de 2020

"Para Pensar e Viver nosso Patrimônio Cultural", de Luiza Helena Amorim



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Para Pensar e Viver nosso Patrimônio Cultural

Luiza Helena Amorim
Jornalista e mestranda em História Social
(Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio e Memória - GEPPM )

Quem faz a nossa História? Uma das formas de responder essa pergunta é através da escrita acadêmica, mas muitas vezes esta linguagem não é acessível, é hermética. Porém, existem pesquisadores que percorrem um caminho paralelo. Eles produzem conteúdo com uma linguagem acessível, voltados para um público não especializado. É a chamada “Divulgação Científica”, mas que na historiografia atual pode se situar dentro do campo da História Pública. Em comum, compartilham com a preocupação sobre a circulação dos conhecimentos, mas também se aproximam de “um exercício de responsabilidade social”, nas palavras de Nisia Trindade Lima, socióloga da Fiocruz.
Em tempos de embates pelo valor da cultura e dos seus bens, questões econômicas e retração do poder público, a Fundação Demócrito Rocha teve a sensibilidade de aproximar a Academia e a comunidade, em um esforço para difundir a importância da nossa cultura e promover a cidadania oferecendo o acesso às informações, segundo consta no site da instituição, valorizando-a “como setor estratégico para o desenvolvimento socioeconômico sustentável, fortalecendo a intersetorialidade e a transversalidade”. A ação é simples e impactante: o curso online “Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio”. Vale destacar que quando se fala em Educação Patrimonial, esta deve ser feita de forma horizontal, o que significa contar com a participação da comunidade e também dos detentores das referências culturais.
Em doze fascículos, o leitor se familiariza com questões legais, conceitos históricos, reflete sobre a realidade do entorno em que vive, bem como o contexto sociocultural e ambiental; é provocado a pensar sobre a importância de “reconhecer, proteger e valorizar o patrimônio cultural do município na sua diversidade de memórias e identidades”.
O material foi produzido por especialistas, dos quais alguns, são integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Neste tempo de isolamento social, o curso é uma alternativa para repensarmos os valores da cultura brasileira e dos espaços em que vivemos (a cidade edificada, o bairro, a rua), mas também as nossas práticas culturais vivenciadas e idealizadas. Quando a pandemia passar, e voltarmos às nossas rotinas (sem esquecer a dor que a doença nos causou), que possamos estar juntos dos nossos, ver o pôr do sol, e habitar os patrimônios da nossa cidade.


segunda-feira, 13 de abril de 2020

"Quarentena", de Raymundo Netto para O POVO



Meu lado ficcionista, de leitor de clássicos, quadrinhos e muita ficção científica, não me deixa assombrar pela guerra microbiológica atual. Aliás, durante a vida inteira, essa era uma das certezas – ou pelo menos potencial possibilidade – que trazia na vida, além da outra, a morte, aquela hoje noticiada como novidade, quando a novidade mesmo é o nome do algoz, pois a morte vitima milhares de pessoas diariamente por motivos mais banais (acidentes de trânsito, ausência de socorro e atendimentos em hospitais) ou mesmo absurdos e inaceitáveis (assassinatos, guerras, violências, fome), sendo que muita gente, em condições privilegiadas e seguras, nunca deu a menor importância a isso – até agora!
Alguém, antes da decretada quarentena, me disse frio ou insensível diante do coroado monstro, mas não é nada disso. Assisto a noticiários, mais de um, todos os dias. Leio notícias em portais seguros e confiáveis pelas redes sociais – evito assistir a vídeos e mensagens sem fontes que se alastram mais do que a curva pandêmica –, mantenho o isolamento social e me previno como posso, seguindo protocolos de higiene, também preocupando-me e aconselhando cuidados a amigos e familiares que, espero, ultrapassem mais essa crise sem sequelas.
Contudo, o mais importante: tento não introjetar esse quadro em mim. Nem o vírus nem o pânico e muito menos a contagiante morbidez propalada.
Vejo diversas pessoas adoecidas pelas redes sociais, gente que não está conseguindo manter a sanidade mental, tomada pelo pavor e pela insegurança, distribuindo-os aos mais próximos. Deprimidas, esgotadas e intranquilas, não conseguem aproveitar para fazer planos, executar aqueles projetos impedidos pela rotina antiga, fazer exercícios (ou amor), jogar com familiares, ler bons livros ou assistir a filmes, pois a cabeça não consegue concentrar-se em mais nada que não seja a lista de infectados e mortos no mundo.
Eu, do meu lado, vivo o hoje, um dia por vez – hábito que trago há anos –, não exigindo muito do futuro, agradecendo por acordar e estar com aparente saúde, por ter condições tecnológicas para conseguir realizar o meu trabalho com a máxima atenção e zelo possíveis, imaginando algo que vai nascer em meio à treva quarentena, mas que em breve será luz e beleza. Tudo passa, como diz o Alencar.
Mesmo ciente do número de pessoas que não têm recursos e condições para atravessar essa chuva com a mesma tranquilidade, sei que não posso deixar-me ser tomado por essa angústia. Se eu puder ajudar, ajudo, contribuo, não me esquecendo de que me lembro dessas mesmas pessoas sempre, inclusive na hora do voto, cujo resultado faz toda a diferença em momentos como esse ou de outros que, certamente, virão.
Tenho esperança, não a largo por nada, e a minha crença na vida, não no ser humano, mas na vida, a nossa maior aliada para a construção de um novo mundo, um lugar onde não predominem tantas injustiças, desigualdades, sofrimentos, doenças e mentiras. É por isso que pretendo continuar acreditando, até a última chama ou lágrima, no que há por vir.




domingo, 12 de abril de 2020

"A Casa Onde Nasci", de Amália Simonetti



Essa é a casa onde nasci!
Casa amarela de telhado alto com três portas de madeira na calçada! Uma delas é a porta do quarto onde nasci, numa manhã de sol quente do século vinte!
Casa do corredor dos quartos sem janelas, com redes balançando família, histórias, sonhos e vidas. VidaFamílias!
Casa de sala acolhedora e terraço do cacimbão, terraço da mesa grande que abraçava as quatro gerações da família e amigos em cada refeição!
Casa da cozinha do fogão à carvão e panelas de barro exalando cheiros. Casa do oitão do fogão e forno à lenha e muitas conversas fiadas! 
Casa do quintal do quarto dos livros, da casa do Porco, do vento das plantas, do cheiro das flores e sabor das frutas. Quintal das crianças e suas brincadeiras e peraltices pé de imaginação.
Casa da calçada das lavadeiras, dos banhos de chuva, das cadeiras de balanço, das noites de lua cheia, das prosas, poesias e muitas histórias para contar.
Essa é a casa onde nasci! Casa Sá Leitão da rua do córrego, rua do Rio Açu!
Casa da minha infância crianceira!