domingo, 23 de maio de 2021

"Memorialva", de Raymundo Netto para O POVO


 Publicado originalmente em Os Acangapebas

Há todos os dias cabulosos.

Ante a manhã, se esclarecia: à parede, azulejavam mosaicos coloridos, pedras, vidros, restos de lembranças, rastos de vidas a descer pela coluna diante dos olhos claros, verdeados, de passados brilúmens a se esparramar como o silêncio no quarto vazio.

As paredes nuas em sombras a sacudir-lhe a memória; a remexer o desvão escuro dos medos; a segredar-lhe os romances secretos que não vieram nem virão; a confessar-lhe a ausência de rasgar o coração.

Sonhava-se insone.

À janela, outra parede vinha imprevista — sem remorsos — a estorvar os céus de suas lembranças.

Sobre as telhas enegrecidas, garrafas de plástico, pneus, gatos preguiçosos a desfiar estopas usadas, as manhãs quando a passarada estalejava o sol em asas amarelas.

No canto do quarto, aranha porfiava contra formiga na trama de uma teia. A morte breve, repentina.

Nos tacos, marcas de arrastos pés de cadeiras de palhinha pondo a dormir os olhinhos de retrós arregalados e cabelos retorcidos em fios de loiras lãs. Nos mesmos tacos, os pregos surgindo, a emenda com cimento, o desamor cruel de estranhos moradores a estilar infelicidades.

Baratas! Baratas! Baratas! Odiava baratas!

Nos rodapés, a lama negra, a tinta que salta, a bituca de cigarro, a folha seca que só — e acidentalmente só — desce, o cupinzal abandonado.

A parede ao lado ainda aguava da pia do banheiro. Gélida e nua, tiritava. Frio, frio... Escuro!

A apática porta lhe abria o incômodo do tempo que se perdeu, e, mesmo assim, ela não saía. Ela não saía. Ela não se ia nunca, esperando o fim da eterna idade de não chegar, a envelhecer triste como o quarto vazio, como ela, e cheia de baratas por dentro.



 

segunda-feira, 10 de maio de 2021

"Domingo", de Raymundo Netto para O POVO


 

Publicado originalmente em Os Acangapebas


Domingo. Onze horas. Como se marcada hora, barulhentos, acabavam de chegar. Enfileiravam-se à grade branca entreaberta por saudações breves, tomadas de rostos, beijos vãos. As netinhas, em cabelos de rabos de cavalos, à frente e com solicitação do pai, apresentavam as bonecas, imediatamente esquecidas diante da tevê na sala.

Os filhos, genros e noras, à cozinha, traziam nos olhos indisfarçáveis traços da preguiça ou da curtida noite alta. Colhiam jornais e a correspondência desviada, cumprimentavam o pai a levantar sorridente da cama — sem omitir saudades — e a mãe a empunhar flores do quintal. Puxavam os bancos para o oitão, a área mais ventilada, enquanto outros vasculhavam a geladeira em busca das guloseimas que lá já não estavam desde a meninice.

Hora do almoço! Todos tomavam os seus lugares, os mesmos e respeitados lugares, pequenas hierarquias. O avô se deliciava à larga cabeceira da mesa de pinho feita à encomenda para caber a família. A avó não sentava enquanto todos não estivessem fartos. 

Ali, outra mulher, por trás do balcão americano, com olhos postos à pia no manejo da asa de uma caneca tomada em sabão, ouvia tudo, sabia de tudo, analisava-os, percebia-lhes as mentiras, as vaidades, a disputa entre irmãos pelo amor filial. Espremia-lhes com os olhos e torcia a inveja da boca.

Assim, aos domingos: preparava o almoço, os pratos de um e de outro, mais pratos, a sobremesa com um doce especial, a correria da criançada a lhe pedir tudo, sem reconhecê-la nunca, sequer chamá-la pelo nome, e mais pratos. Depois disso, só solidão e silêncio. Percebia-se velha e acabada, não dava mais conta. Sabia-se apenas para servir. E só!

Num domingo diferente, postou-se à cabeceira por trás do avô. Pediu as falas com um sorriso quase terno, a espanar no ar um pano de prato. Na voz rouca e analfabeta desalinhou um segredo: pôs veneno! Daquela macarronada tradicional de família, tudo acabaria ali e agora. Pronto era só isso. Desculpasse, mas não aguentava mais.

Um jovem pai desperta, corre desesperado por um corredor de soluços, vômitos e gritarias sufocadas. Na sala, as suas menininhas, felizes, limpavam com o bracinho rechonchudo o sorriso lambuzado daquele molho gostoso, receita da vovó.