segunda-feira, 18 de março de 2024

"Hotel São Pedro: estertores finais", de Raymundo Netto para O POVO

O polêmico infortúnio do Hotel São Pedro (ou Iracema Plaza), edificação em forma de navio, que singra a região desde 1951, um dos pioneiros do ramo hoteleiro na orla da cidade, entre outras peculiaridades arquitetônicas e turísticas, é apenas mais um capítulo da nossa Fortaleza distraída e ambiciosa. Uma cidade sem passado, sem rosto, sem futuro possível.

Há quem diga, no discurso nostálgico, idealizado e falso: “Antigamente as pessoas respeitavam mais o que era antigo”. Isso é uma disparatada ilusão e, para não romantizar mais, outra mentira! Contamos nos dedos as nossas edificações construídas no século XIX. As poucas que restam, e muito poucas – por experiência, em breve, ainda menos –, datam do início do século XX, pois que nossos pais e avós, que Deus os tenham e os perdoem, já gostavam mesmo do “novo”, dos “modismos”. Naquela época, patrimônio era apenas uma palavra horrorosa e sem sentido, a não ser para aquela minúscula e sempre poderosa parcela privilegiada que já nasce em berço de ouro (que depois vira patrimônio e até razão de morte em família) e que sabe bem o valor que um patrimônio (financeiro) tem. Daí, em 2024, quando o exótico e imponente prédio completa 73 anos de existência e divina resistência, nós fazemos com ele o que a sociedade ignorante, consumista e desperdiçadora faz com os nossos idosos: os reconhecem como inúteis, desprezam a sua história, o seu legado, os seus feitos em vida produtiva e passam a desejar que se vão, que morram logo para não dar mais trabalho e ocupar aquele lugar que poderia ser de outro. Afinal, já viveu demais... e o povo gosta mesmo é de plástico, espelhos, silicone e BBB!

Vejamos: há 18 anos – acredite, tempo suficiente – teve início o seu processo de tombamento. O que foi feito desde então? Nada! “Deixa cair! Quero é ver!”

Acontece algo assim também com outro prédio na cidade, que, como não poderia ser diferente, pertence a uma família iletrada, rica de dinheiro e de cultura de TV. O proprietário já afirmou, com toda a sua autoridade (ou boçalidade) política e bancária: “se tombarem, eu o derrubo!” Lembremos da inocente canção: “quem tem mais do que precisa ter, quase sempre se convence que não tem o bastante.”

Coincidentemente, desde o início do processo, o São Pedro ficou à deriva diante do esvaziamento dos últimos moradores e do seu desrespeitoso, gradual e acelerado desmonte. Alia-se a isso, a falta de decisão e de ação do Poder Público (uma legislação que treme feito vara verde) e os conflitos de interesses com a família proprietária, irmanando-o com o “Mara Hope”, outro “encalhe” na nossa deflorada Praia de Iracema, a praia dos amores, que devem estar por vir com os escafandristas do futuro buarqueano.

Nos meus inquietantes sonhos, esses concentradores de renda têm a noção de retribuir à cidade e à sociedade – que bem sabem ser explorada a seu serviço – esses patrimônios. Que as grandes construtoras, curiosamente generosas em doações abundantes e “despretensiosas” durante as campanhas políticas, unidas, usassem desses recursos na solução de casos como esse, quando a engenharia poderia mostrar o seu valor. E que os gestores, com coragem e mais atentos aos clamores sociais (e não políticos, partidários e/ou econômicos) e àquilo que a sociedade precisa, mesmo quando não entende ou não sabe, abraçassem essas causas, articulassem parcerias estratégicas e inteligentes, tomassem a frente de campanhas de mobilização de recursos para cumprir e fazer valer o idílico “pertencimento”. E que o nosso “Titanic de tijolos”, que há quem diga “Nem Deus derruba”, não se choque com o vil iceberg “da força da grana que ergue e destrói coisas belas.”


(*) texto adaptado do anterior de 2021, mas como nada mudou...

 



 

domingo, 17 de março de 2024

"Coleção ESTALOS!", da Avoante Editora e Reboot Comics Store


Um, dois, três, quatro... ESTALOS!

Sim, são quatro, até então, as edições da Coleção Estalos!, uma seleção de mini graphic novels (10,5x14,5cm e 26 páginas, P&B), com tamanho e preço que cabem no seu bolso... ou bolsa, mochila ou seja lá qual for o acessório onde você prefira acolher esses pequenos portais de outras dimensões quadrinhísticas.

A Avoante Editora, que, segundo a própria, “nasceu com o desejo de tomar o mundo, formando seu resistente bando e dando voz e canto a cada uma de suas aves, arribando aos céus às asas da criatividade e pintando o firmamento com a penugem de sua terra natal”, traz à frente o roteirista, revisor, editor e professor Luís Carlos Sousa, o comunicador, crítico de cinema e youtuber PH Santos e Érika Sales, proprietária da Reboot Comic Store, revistaria especializada em quadrinhos e produtos geek, além de ser ponto de encontro e promoção de eventos e publicações independentes na área.

A organização e planejamento da Coleção é de Érika Sales, que divide a direção editorial com Luís Carlos Sousa – que também é editor de toda a Coleção –, sendo Márcio Moreira o responsável pelo design do seu projeto.

A Coleção tem por objetivo fomentar a produção independente local, trazendo sempre grandes feras dos quadrinhos cearenses.

Entre os títulos atuais:

ESTALO 001. Anamnese, de Márcio Moreira (roteiro e revisão) e Talles Rodrigues (desenho):

poderia ser “Yellow Submarine”, poderia ser “Another Brick in the Wall”, mas não é, apesar do surrealismo. Um mundo distante geograficamente, mas muito próximo de nossas mentes em ebulição. Nele, alguém pensa que vai morrer. Será? A sua salvação está nas mãos de um ser, uma curandeira mística, que mergulha com ela no espaço da fantasia de si mesmo para combater seus medos e ir em busca da razão de sua angústia.  


ESTALO 002. Complexo de Dédalo, de Johta (roteiro e desenhos). Márcio Moreira foi o revisor e a capa contou com a participação de Rodrigo Matos: um autor independente de quadrinhos gay passa por um bloqueio criativo, justamente quando aparece a oportunidade de sua vida. Juntamente com o gato Kerberus e alucinações (?) íntimas, acompanhamos a luta de superação de conflitos não muito estranhos (o seu “labirinto”) do jovem... hã... protagonista.


ESTALO 003. Licya e o Labirinto, de Márcio Moreira (roteiro) e Débora Santos (desenho). No miolo, a participação flashônica e especial de Nádia Lopes, Talles Rodrigues, Natália Prata, Luís Carlos Sousa, Letícia Bernardo, Davi Ferreira, Johta e Nycolas Di: voltando ao “labirinto”, desta vez com a engraçada adolescente Licya que, diante de um esbarrão acidental com a jovem Kaline, tem que tomar uma decisão aparentemente simples, porém, a leva a antever seu futuro de sucessos ou conquistas que poderão vir ou não por conta dessa escolha. Será que a fofa conseguirá se decidir antes de surtar?


ESTALO 004. Goku e a Flauta Doce, de Deleon Stu (roteiro) e Nycolas Di (desenho): aqui, novamente as escolhas empatando a vida da gente. Nessa divertida história, o personagem-menino tem que escolher entre a flauta doce, com a qual levaria arte ao mundo, e o pequeno Goku, parceiro no objetivo maior de meter a peia em todo o mundo.

 

A Coleção e os seus números podem ser encontrados e adquiridos na Reboot Comic Store, localizada no Shopping Benfica. Claro, eu já tenho a minha...

E melhor: estou sabendo que, em breve, sairá a número cinco. Para não perder nenhum número, conhecer esse ponto de encontro dos quadrinhistas e aficionados por HQs e estar a par das novidades da Avoante Editora, acompanhe:

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quinta-feira, 14 de março de 2024

"A Rede", de Raymundo Netto para O POVO

 

Cansado de ouvir os reclamos da mulher todos os dias à beira do fogão, Zé Panapanã, que acabava de chegar da lida na roça, ainda salgado em suor e com as pernas “à milanesa”, largou a enxada e mergulhou na primeira rede que encontrou no alpendre.

Quando pronto o almoço, não se buliu. Nem quando a mulher, insistente, sacudia o punho daquela rede: “Tá morto, Zé? Ôxe, nem pra comer se mexe? Avia!” E nada.

Poderia ser birra, o Zé era teimoso e ao mesmo tempo não tinha ambições, nem as pequenas, mais queria o sossego do que tudo no mundo. Dali não sairia, nem para comer, para ir ao banheiro, pitar seu cigarrinho ou dormir.

A mulher se preocupou, mas achava que o turrão não resistiria à frieza cortante da noite. Porém, ao acordar, ela o encontrou ainda mais embiocado, não se vendo nem uma brechinha do homem na rede: “Vai trabalhar hoje, não, preguiçoso? Aqui não tem café pra gente dorminhoca, viu?” Não adiantava. Por mais que Solange berrasse às franjas da rede, o Zé não dava um pio. Dias depois ela decidiu consultar o farmacêutico da cidade que, na falta de outro doutor, poderia ter com o marido: “Tá custando dentro da tipoia, seu Augusto. Não levanta pra nada, nem pra comer, nem pras necessidades. Deve de tá doente... mas não fala nada...”

O farmacêutico estranhou a história e, por curiosidade, descambou a visita.

Chegou batendo sonoras palmas no batente da casa, como se não soubesse estar logo ali, recolhido na rede, o marido de Solange.

Arrastou um tamborete, tentou puxar conversa, sem sucesso. Perguntou se sentia dor, se havia diarreia, alguma anemia, dificuldade de respiração. Com esforço, vez ou outra ouvia um sussurro, uma espécie de “deixe estar” ou coisa parecida. Puxava o pano da rede tentando abri-la para examiná-lo e não conseguia. Já irritado, porém percebendo a aflição da mulher, receitou algumas mezinhas: “Deve ser somente alguma verminose associada à cisma mesmo. Paciência.”

Todavia, o certo é que nem Solange conseguia que o Zé tomasse qualquer coisa, como nem aqueles poucos sussurros se ouviam mais. Ela apelaria, então, ao jovem pároco local. Ele, de cara, denunciava a ausência divina no coração daquele homem que, inclusive, nunca pisara a soleira da igreja e não cumpria sequer com os seus sacramentos.

Em uma primeira visita, tentou extrair, inutilmente, uma tal confissão. Depois, clamando aos surdos céus, o provocou a levantar-se dali, ameaçando-o até de excomunhão. Nada! “Está endemoninhado, só pode. Contra as forças do Todo-Poderoso ninguém pode, dona Solange. E como deixar de atender a uma esposa tão amável, caridosa e temente a Deus como a senhora? Só endemoninhado!” E abraçava àquela mulher, que nem tinha ideia de que era aquilo tudo, e cuja face pousava agora menos inocentemente na sacra batina quase tão cerrada quanto a rede do Zé.

No domingo, uma romaria se quedava em torno da encolhida rede de Zé Panapanã. Dezenas de fiéis da paróquia, empunhando missais, velas de todos os calibres, terços e rosários, cantavam hinos e rezavam pela cura do marido de Solange, que já trazia ares de viúva, mas uma viúva bem fornida, disposta, aparentemente melhor do que antes da crise, sempre ao lado do padre, cuja oratória – confessava – lhe causava um certo frenesi.

Foi ali, naquele instante divinal, que alguém apontou de joelhos para a rede que se abria lentamente. Todos, boquiabertos, se abraçando ou fazendo o sinal da cruz, testemunharam sair da fresta aberta da rede uma borboleta cujas asas batiam incessantes, carregando a criaturinha para onde avermelhava o horizonte e para longe daqueles barulhosos vizinhos.

 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Nerds" (na íntegra), de Raymundo Netto para O POVO


Stanley era um daqueles garotos que vulgar e pejorativamente eram carimbados de “nerd” na escola. Com isso, sempre fora excluído das rodas mais populares, visto com a mesma estranheza que aparentemente exalava. Silencioso, tímido, embora pouco discreto – usava sempre camisas pretas com estampas coloridas, bottons e pins em todo canto –, ainda conseguia reunir outros ao seu redor quando, na hora do recreio, aparecia com gibis de super-heróis, distopias ficcionais, aventuras espaciais e interplanetárias repletas de androides que, com o tempo evoluiriam para publicações undergrounds, sci-fi, cavaleiros steampunks, mangás, figurinhas e jogos de RPG.

Na sua casa, sem irmãos e saindo da adolescência, trancando a porta do quarto, era irreconhecível: vivia na sua mente fervilhante de imaginação as mais eletrizantes aventuras de seus ídolos, fosse pulando nas paredes ao som do lança-teias de boca, treinando sua espada Jedi coberto em lençol ou praticando um “gomu gomu no qualquer coisa” contra maquiavélicos travesseiros e almofadas. De resto, quando não estudava, era vidrado em TV, nas séries favoritas, numa crença de “vida longa e próspera”, cercado por quadrinhos, álbuns de figurinhas, máscaras, batarangues, modelos de naves espaciais – como a Millennium Falcon –, entre outros brinquedos, o espaço e a fronteira final...

Entretanto, os hormônios da juventude explodiam como supernovas por dentro e ele passou a sentir falta da “mocinha” naquelas brincadeiras. Onde estaria a sua Mary Jane, Tempestade, Lori Lemaris, Batgirl, a srta. Naaamiii...?

Sabia que ali estava o seu ponto fraco, a sua icônica fragilidade heroica: diante das garotas, entrava em um desconcertante e irrecuperável estado de letargia e tartamudez.

Havia uma, apenas uma garota a não lhe causar tais efeitos. Era a vizinha do oitavo andar de seu prédio. Fã de mangás e animes, vez ou outra ela o encontrava no hall do condomínio e aproveitava para consultá-lo sobre as novidades das revistarias ou trocar ideias sobre os últimos episódios daquelas séries do Miyazaki. Os olhinhos dela brilhavam por cima de seu sorriso branco e tímido, como a bandeira nipônica, encantados com o falatório colorido e tão seguro daquele rapazola.

Um dia, inesperadamente, Shizuko – era esse o seu nome – o convidou para conhecer a sua coleção de mangás em seu apartamento: “Não se preocupasse, estava sozinha!”

Stanley a acompanhou no elevador, mas, de repente, sentia gelar as suas pernas. Olhando bem – nunca reparara direito –, passou a perceber em Shizuko uma beleza singular. Esguia, muito branca, pescoço longo e cabelos cor de rosa. “Como a Jessie... Tão pokemônica!” Sim, estava quase apaixonado, uma dimensão inexplorada até então.

Todavia, imaginou: aquilo tinha tudo para dar errado. Que mulher se interessaria por um cara vestindo camiseta do Homem-Aranha, que ainda brinca com bonecos e é completamente obcecado por quadrinhos? Tirando a sua mãe, ninguém!

De fato, Shizuko apresentou-lhe a sua coleção, mas não se deteve ali. Atraída pelo súbito acanhamento e seu excesso de inocência, se jogou num épico e descompromissado beijo de dorama, conduzindo-o a um primeiro descuido de amor... ou de sexo, vá lá.

Ao final da tarde, ela, sentada na cama, abotoava a blusinha: “Você foi incrível, Stan!”

Ele, definitivamente inebriado por novas sensações, era outro, sentia-se empoderado, seguro e alucinado, como se conquistara o Everest. Não parava de falar. Não parava.

De repente, pôs a camiseta e, para surpresa dela, saltou pela janela de seu quarto. Porém, ao invés de lançar teias e se desembestar pelos arranha-céus comemorando o grande feito, estatelou-se fatalmente na quadra próxima à piscina.

Afinal, nós sabemos: em quadrinhos, nem sempre os heróis têm finais felizes...






 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

"Saudades, Infinitas Saudades!", de Pedro Salgueiro para O POVO


Desligado que sou, ando frequentemente no mundo da lua (mesmo debaixo deste calor causticante da nossa loirinha desmazelada pelo sol) quando tomo conhecimento de fatos e pessoas que faz tempo são muito conhecidos dos outros, e tomo da surpresa um susto, lendo a página na internet do mestre Ronaldo Salgado, descubro que existe um Dia da Saudade, paro o dedo nervoso de passeador de internet e quedo pasmo a ler a pequena pérola:

“AH, SAUDADE! QUE MODOS DE EXISTIR?

Tenho alguns amigos que costumam me cutucar com vara curta como se eu fosse onça pintada. Falam em alto e bom tom: "Cara, tu sempre quer um motivo pra beber!" Essa não é uma verdade nem absoluta nem relativa. É simplesmente uma verdade, entre tantas espalhadas por aí. Mas hoje, quando se comemora o Dia da Saudade, alguém aí tem o destempero de me criticar porque vou brindar a saudade? Du-vi-d-o-dó! Saudade é copo cheio de memória. E com memória não se brinca! Tenho até desconfiança de que uma e outra são retroalimentadoras entre si. Ora, a gente sente saudade do que viveu... Isso não é esteio de memória? E a gente guarda na mente e no peito esquerdo lembranças, reminiscências e recordações do que vivemos... Isso não é leitmotiv de saudade? Embaralha as expressões verbais para ver o que acontece! Saudade de pessoas, de datas e épocas importantes, de beijos e abraços fervorosos debaixo de sol quente ou de chuva indômita. Saudade de canções cantadas ou não em serenatas ao luar. Saudade de livros, filmes, discursos, gols, gestos, atitudes, carícias e carinhos, segredos e aventuras... Ora, pois tá! Até de bancos de praça onde se trocou o primeiro e interminável beijo sente-se saudade – pergunte a Ronnie Von, que cantou aquela música que nunca me sai da memória. Vixe, olha a memória aí de novo, juntinha com a saudade. É, gente, saudade é de vida e de morte. País, mães, avôs, avós, irmãos, irmãs, filhos e filhas, netos e netas, amigos, amigas, heróis de carne e osso e representacionais, ídolos... Eu tenho saudade até do Zé Pilintra, que eu não conheci, mas não sai do meu 1/4 de Bar – Terraço Poeta Sales! Pois taí um brinde à Saudade!”

Pronto, passei o dia inteiro a cometer saudades, não uma só, que sou repleto delas, vivo em faltas de dinheiros, vontades, coragens, mas empanturrado de recordações e saudades – o pensamento voou ao passado (tem razão o bardo da comunidade das Quadras da Aldeota: passado e saudade andam de mãos dadas sempre).

Lembrei-me devagarinho a infância, corri para os campinhos de futebol improvisados no meu Alto das Pedrinhas, lá pelo Tamboril de antigamente, mas não só os três ou quatro recantos que marcávamos entre grotas e areias e pedras, mas os dos bairros vizinhos dos Pereiros e Praça 11, onde disputávamos nossas primeiras pelejas mais organizadas; de lá a memória (e a saudade!) vagaram pelo campinho triangular da Rua de Baixo (que por ser caminho do cemitério, certa vez paramos o joguinho para que desfilasse rua abaixo um enterro: porém antes que o cortejo triste dobrasse à esquerda na Ponte da Mijada já recomeçamos a partida no mesmo local e lance onde havia parado), dali para o estranho campo do Morro do Tetéu, e recordei que lá de uma trave não se avistava a outra, seguia a lembrança para o Campo do Juremal, quando me dei conta já umas lágrimas me embaciavam os olhos.

Então lembrei que não deveríamos ter apenas um dia da saudade, mas um ano talvez, um mês, quiçá uma semana... Talvez bastasse alguns minutos por dia! E já que as saudades são infinitas, deduzo que – na verdade – jamais poderíamos delimitar um tempo para sentir saudades.

 



 

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

"Linguagem", de Raymundo Netto para O POVO


“Mulher intelectual não pega homem!” Ouvira isso inúmeras vezes, mas, naquela noite de coração desértico, quente e vazio, seria diferente.

Ao espelho, vestia, quase em lágrimas, a roupa mais fatal. O próprio corpo queria saltar do vestido, ela não se reconhecia, envergonhava-se, mas nada importava mais!

Chegou a um pub. Pouca luz, muita fumaça, ar alcoólico e frenético barulho. Por ela, se jogaria na barra de pole dance, mas dirigiu-se ao bar, pediu uma bebida, a mais forte, que guardou entre os dedos até quando chamaram ao pequeno palco o poeta, um rapaz magrinho de cabelo avermelhado. Ele pegou o microfone, olhou para o público desatento e declamou aos gritos o seu poema.

Em meio à barulheira, o tilintar de copos e as risadas expressivas, ele continuava uma falação ardente, suspirosa e inútil, enquanto ela, mesmo quando alguém já apalpava a sua bunda, fitava-o. Não se sabe se por um instinto atávico e autossabotador, certo é que sentira tanto amor ali, capaz de encher até buraco sem fundo.

Ao final, aproximou-se dele, em uma indisfarçável timidez. Imersos no alvoroço, se olharam em risinhos desnecessários, quando ela deixou escapar: “Estou sem calcinha.”

Ele riu desconcertado: “Que comentariozinho mais exótico... ”

Extasiada, respondeu: “A um cantinho mais erótico? Agora? Sim, podemos ir, sim.”

Ele insistiu ao seu ouvido: “Não, eu disse exótico!” Ela, pasma consigo mesma, engoliu de vez o trago e emendou: “Sim, eu também. Foi o que eu disse... exótico?”

Marcaram então de se encontrar no sábado próximo, quando ele a levou ao zoológico para ver o recinto dos pandas. Era alucinado por pandas. “Que fofo!”, ela pensou.

Após uma hora de jujubas, aulas de cultura chinesa, veganismo e pandas, ela encorajou-se e tascou: “Sim, mas... você não gostaria de ir agora a um motel?”

Ao convite inesperado, ele murmurou: “Eu preciso que saiba de uma coisa...” Ela adiantou-se: “Você é gay? Ai, meu Deus, esse amor por pandas...”, quando ele acudiu: “Não, não sou gay... Eu sou virgem!” Aliviada, ou quase, estranhando ainda a resistência, pensou que seria uma experiência singular. Ele insistiu: “Mas muito virgem. Virgem demais. Nunca beijei uma mulher. Apenas espelhos, dorso da mão...” Ela nem quis saber e o trouxe à boca, quando, naquele momento tão inaugural, em vez do aguardado beijo recebeu dele uma tremenda lambida.

Ela sentiu um nojo colossal: “Que foi isso?” Ele queria mais. Nova tentativa. A lambeu outra vez, desta vez o rosto inteiro. O poeta tinha uma língua abundante, descontrolada. Tomara gosto e não pararia mais, se ela não se lembrasse de um falso e emergente compromisso. Ele compreendeu. Segurando a baba e com os olhos brilhantes, insistia: “Quando nos veremos outra vez? Quando?”

Não sabia o motivo, se por ser de Humanas ou pelo desespero de quem se afoga, mas o recebeu em sua casa.

Desta vez, sem cafés, enxerimento na estante de livros, entre outras preliminares, foi ele que se atirou sobre ela, afoito e covardemente, num apetite absurdo, rasgando-lhe as roupas e lambendo-a inteira, dos pés à cabeça e vice-versa. E a lambeu tanto, mas tanto, por horas sem fim, que pela manhã não havia mais nenhum pedacinho desejoso dela para contar história.





 


 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

"Vidente", na íntegra, de Raymundo Netto para O POVO


Há 30 anos aguardava o grande amor de sua vida.

Ainda jovem, diante da angustiante sensação de que não havia neste mundo um rapaz que a agradasse, Grace sucumbiu à tentação de consultar uma vidente: “Encontrarei alguém que me sirva, que eu possa amá-lo?” A vidente, uma idosa de olhos quase brancos, nariz adunco, queixo proeminente e de poucos dentes, escondia o cume da cabeça e boa parte de seu rosto e pescoço por um xale escurecido, dando-lhe aspecto de ave agourenta. Seus dedos magros e nodosos espalhavam de forma circular as cartas na mesa, até que sua mão terrivelmente fria apertou o pulso da moça, enquanto apontava para uma das cartas: “Ali está ele... Que homem lindo... Ele está vindo, vindo...” 

Grace, antes arrependida de estar ali naquele ambiente inóspito, esqueceu o pavor e só perguntava: “Onde? Vindo de onde?” A velha se recolhia lenta e estranhamente no espaldar da cadeira, envolvendo-se em sombras: “De navio. Ele não é daqui. Estrangeiro. Está vindo. De navio. Vindo...” Emudeceu, não respondendo mais às perguntas da moça eufórica: “Logo vi que só podia ser de fora... Aqui não tem um que preste!” E saiu alegre e saltitante à rua, deixando para trás a velha a coçar o queixo com o indicador trêmulo: “Está... vindo...”

No entanto, não vinha, nem veio. Nada de Grace encontrar seu amado prometido.

Anos depois, não haveria um dia sequer no qual ela não desse uma volta no cais com o pretexto de ver o mar, tomar um café, curtir o vaivém de pessoas ou assistir ao pôr do sol, na esperança de dar de cara com o homem da carta. Mas ninguém a interessava. Ou melhor, ninguém sequer se parecia com o homem que ela desenhou em sua mente. Voltaria à vidente, mas do velho cortiço não restava mais nada. Desesperou-se!

Com o tempo, obcecada pelo anunciado amor, a sua presença no casamento das amigas chegava a azedar. Era inconveniente, via defeito em tudo, agourava o amor alheio, embriagava-se, de forma que foi isolada em seu sonho de amor romântico.

Passadas décadas desde a profecia da vidente, Grace entrou em um velho bar do cais do porto. Cruzara com ele diversas vezes, mas nunca se interessara por ele devido ao ar promíscuo exalado por seus frequentadores: pescadores, marinheiros e prostitutas. Naquele dia, porém, isso não mais a incomodava. Entrou, sob uma cortina de olhares curiosos e de cantadas maliciosas, e sentou-se no canto do balcão amadeirado.

O balconista, um senhor de uns 60 anos, aproximou-se e advertiu-a: “Acho que a senhora não é bem o público daqui...” Ela corrigiu: “Senhorita. E me dê uma cerveja.” 

E estava ali, sem mais esperanças, entretida na fumaça de seu cigarro, quando correndo o olhar pela parede viu uma galeria de fotos e, entre elas, reconheceu a de seu amado. Gelou! Gritou pelo balconista e perguntou quem era aquele homem. Ele estranhou: “Esse quadro foi uma homenagem à equipe de um navio que naufragou na costa há uns 30 anos. Esse aí é o ‘Charles Francês’. Chamavam ele assim. Era oficial. Afogou-se.” Grace, atônita, caiu ali mesmo em lágrimas lancinantes.

Durante dias, não saiu de casa. Quando não estava adormecida, envolvida em cobertores, chorava. Sentia não haver mais sentido em sua vida. Sua busca findara tragicamente. Contudo, uma madrugada, como se delirante, correu para aquele bar. Estava fechado. Com uma banqueta, quebrou o vidro da janela e adentrou. Caminhou vagarosamente pelo corredor escuro até postar-se estática diante da foto de Charles. Acendeu o isqueiro e a admirava com ternura até quando, de súbito, a beijou.

Uma corrente de vento entrou pela janela derrubando garrafas, copos e alguns quadros da parede. Com ela, um som sinistro, quase gemido, quase gargalhar, tomava todo o ambiente, também envolvido por uma névoa cinzenta. Nesse instante, Grace abriu os olhos e, para seu espanto, diante dela estava o capitão Charles.

Ela, sem acreditar, com os olhos marejados, sorriu emocionada: “Eu esperei você por toda a minha vida... Ah, eu sempre te amei.”

O homem, orgulhoso de si, pegou uma garrafa de uísque e a levou para o salão, onde estirou-se numa espreguiçadeira. Colocou as pernas em um banco, apresentando as botas envolvidas em algas e cheirando a peixe. Foi quando lhe dirigiu as primeiras palavras: “Chéri, tirre as minhas bottes.” Grace não acreditou. “Como é que é?” Ele insistiu veemente: “Tirre-as já, mulher! Que diable!”

Grace, boquiaberta, deu meia-volta, saltou pela janela e, encontrando o primeiro estranho à sua frente, deu-lhe com muito gosto aquele beijo tão aguardado por mais de 30 anos...




 


 

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

"Eurrico ou Eugênio?", de Raymundo Netto para O POVO


Quem o visse chegar ali, caminhando a passos frouxos e profundos, teria a segura impressão de que estava a entregar o pescoço à forca. Mas não ele. Não o Eugênio.

Sabia-se lá, mas cruzava o extenso balcão do cartório numa tristura medonha, maior do que a de uma noite sem novela ou sem amor, o que viesse primeiro.

“O que o senhor deseja?”, arriscou uma balconista.

Vinha registrar um filho, mais um “último”, pois o mais velho dos três também o seria, assim como o segundo ou como este, e, provavelmente, o próximo.

Recebeu parabéns de um ou de outro circundante: “Um filho? Que graça: um filho!” O mais idoso tapou-lhe nas costas a benção recebida do Grande Pai Celestial. Porém ele nem nem. Tinha pressa. Registrar a criança e se mandar logo dali.

“Qual será o nome da criança, senhor?”

“Eurrico!”, foi o que respondeu. Assim, na bucha.

“Eurrico? O senhor tem certeza, senhor?”

Absoluta. Ele, o pai, era Eugênio, não queria isso para a criança, que o bichinho não tinha culpa. Culpa mesmo – enfatizava com o indicador erguido solene no ar – era da mãe. Ali, todos sabiam... sempre era da mãe!

A atendente, sem entender bulhufas daquele discurso, tentou contornar:

“Bem, o senhor não prefere, ao invés de... Eurrico, Eunício?”

Eunício? Deus o livrasse: “Que nome terrível! De jeito algum.”

Lembrava: “Eu... Gênio!” Trazia no peito franzino o orgulho de criança. Gostava de ler desde cedo. Inteligente e curioso. Um gênio de verdade, como sua mãe anunciava, enquanto o sol se punha, por cima do muro para a vizinhança. Seus pais nunca tiveram problema com ele. Nunca pediu nada demais. Tudo suficiente, até na respiração. Costume que carregou por toda a vida, numa humildade e modéstia – complementadas com a realidade do salário – de fazer vergonha.

“Quem se abaixa muito, mostra o fundo das calças”, dizia a sua avó, impressionada como ele não havia sido engolido pelo mundo, um monstro sedento de gente direita para arruinar. Mas Eugênio, porque ninguém o notara, vingou, cresceu, enamorou-se pela primeira mulher a olhar para sua testa rala e casou-se. Ademais, aquela mulher, provavelmente uma resignada, era bonita. Ninguém, nem a sua própria mãe, entendia como aquela moça jeitosinha dera cabimento ao sem graça do Eugênio que, claro, na sua inutilidade existencial e contagiosa, acabou por lhe enfear a vida e a figura.

Restava-lhe um emprego chinfrim, um ganho de nada, trabalho excessivo e o não reconhecimento, o que o deixava deveras arrasado nos poucos momentos de folga que tinha, nos quais passava horas e horas parado, feito estátua de ilustre desconhecido, assistindo à vida que passava em torno de si. Assim, pensava: de que adianta ser gênio? queria mesmo era ser rico. Eu... Rico! Encucado com isso, botou pra fora a entranha quando aquela estranha lhe perguntou: “Afinal, meu senhor, qual é o nome da criança?”

O nome? ... deixasse ver... Eurico. Seria esse: Eurico! Com dois “r” para não ter dúvida e ficar mais estiloso: “Eurrico!”

E Eurrico de quê?”, insistiu a moça se abanando.

“De merda, que é o sobrenome do pai, é que não vai ser...”




 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

"Vida?", de Raymundo Netto para O POVO


“Esses sãos desígnios de Deus, e eu os aceito.” Essas foram as últimas palavras de minha mãe, deitada em uma maca hospitalar, antes de cerrar os olhos pela última vez, como se fosse apenas cair em sono profundo. Estava ali, toda arrumada, linda, para assistir a um culto do Dia dos Finados, quando o coração emudeceu. A equipe médica tentou trazê-la de volta e ela não quis. Todos nós saberíamos: ela não queria mais. Era o ano de 2016, e um dia propício para partir. Passaram-se sete anos, desde então, e ela continua viva.

Minha avó Alice, mãe de meu pai, ao contrário, turrona e contestadora, escolheu justamente essa data, o dia dos mortos, para nascer! Era bem dela... Próximo de sua morte, não queria ver ninguém. Permitia apenas a filha que residia e tomava conta dela. Fora ela, que ninguém a visse assim, em plena decadência de seu rumo à morte.

O seu filho descansaria quase dois anos após a passagem de minha mãe, no dia 25 de outubro de 2018. Queria curtir um pouco mais dessa vida e dessa terra que tanto amou. Tendo a sua filha caçula como cúmplice, caminhava no calçadão à beira-mar, ia à praia colocar os pés na areia e no mar, tomar sua água de coco, rever amigos – mesmo quando muitas vezes não se lembrava deles. Ela comprava suas roupas, o arrumava, o deixava bem cheiroso, e o levava a locais em que se tocava músicas de seu gosto e, quando possível, arriscava até dançar. Mas, diante do Alzheimer, que o deixava muitas vezes sem condições de apreciar tais coisas com a intensidade que gostava e queria, ele passou a pensar também na sua partida. Por vezes, falou às filhas: não contassem com ele para o aniversário de oitenta anos que planejavam para o ano seguinte, pois ele mesmo não iria. Claro, aquela festa foi cancelada. Mas festa boa de verdade era o meu pai.

Nunca tive medo da morte, mas quando penso nela, me vem a ideia de desperdício, de coisas que não fizemos, nem conseguiremos mais fazer. Chega um dia em que temos que escolher. O que é o mais importante para nós ou o que não gostaríamos, de jeito algum, de deixar de ter feito, escrito ou dito nesta vida. Outros velhos planos de “um dia...”, melhor talvez nem tentar. Passou.

Entretanto, a ideia da má velhice sempre é um incômodo íntimo. A perda crescente da memória, dos movimentos, da disposição, da utilidade e do próprio orgulho é lamentável. Durante anos, assisti a personalidades renomadas e festejadas, pessoas que aprendi a admirar na minha adolescência e juventude, definharem, serem esquecidas, confessarem as suas dores e a sua sensação de incompreensão daquele “outro mundo” que surgira e que nada mais tinha a ver com o “seu mundo”, aquele lugar seguro no qual cresceu, contribuiu e chegou a protagonizar.

Os familiares, pelo apego natural, desejam a eternidade para seus pais, muitas vezes por não entender que alguns estão vivos apenas porque não morreram. Parece óbvio, mas não é. Um dia, essas pessoas perdem as referências de toda uma vida. Os pais, irmãos, amigos, colegas continuamente cumprindo a sua travessia. Os seus programas de TV, ídolos, os autores e compositores preferidos, aqueles bares ou restaurantes onde encontrava seus amigos mais queridos, tudo, tudo desaparecendo com o “seu” mundo. Difícil não se perguntar o que resta para você, quando será a sua vez, o porquê de ainda estar aqui... Um vazio que se torna ainda pior com a coleção de “não possos” que os mais próximos lhe impõem “por amor”: não posso beber, fumar, comer aquele prato predileto bem salgado ou bem doce, sair sozinho... Os “não posso” são tão cruéis quanto os “não consigo”, cada vez mais frequentes, dia a dia, aumentando uma enfadonha lista de inutilidades e frustrações. Sim, a vida é o exercício de perder e a morte não assusta tanto àqueles cuja vida pode não ter mais sentido algum. Temos que aprender a viver, tanto quanto a morrer.





 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

"Imita a Vida, a Arte?", de Pedro Salgueiro para O POVO


Em diversas ocasiões constatei que a vida imita a ficção bem mais que seu contrário, não raros são os casos em que um fato recentemente acontecido nos remete a textos há tempos escritos, seja em qualquer gênero: numa conversa na repartição alguém contou do caso amoroso entre colegas em que um casmurro sujeito era apaixonado por outra sapeca ruiva, que por sua vez morria de amores por um coroa meio gordinho e sem graça, que só tinha olhos para a elegante e esquiva magricela do sétimo andar, que nunca correspondeu seus (meus?) olhares pidões e jurava fidelidade a J. Pinto Fernandes, que não estava na história nem era conhecido por ninguém do prédio inteiro em que circulávamos há décadas - o Poeta Carlos Drummond de Andrade acabou sem querer interferindo na conversa.

Várias vezes, em entrevistas sobre literatura, bate-papos em colégio sobre livros, alguém desenterra alguma crônica ou conto cometidos por mim e pergunta sobre sua veracidade, se “aquele que fala da moça que fugiu da cidade teria sido uma tia de um político em tal cidade que sequer andei um dia?”, ou se “aquele crime em que o sujeito voltou depois de décadas à sua terra natal para ser morto não teria relação com a família dos Anzóis Carneiro?” Claro que digo que não, mesmo que alguém acerte na hipótese, pois já sofri horrores ao ter personagens identificados com pessoas “reais”, magoei familiares, amigos e conterrâneos. Por isso nego até a morte: nem sabia de tal história; aproveito para inverter a sentença: a vida imita (ou limita?) a arte!

Mas um pequeno relato meu tem “acontecido” bastante em diversos lugares, o de um personagem traidor, machista, diabólico (segundo os que me contam em meio a meu espanto), que acaba prostrado e “cuidado” pela sua “vítima”: não foram poucos os leitores que me relataram histórias quase idênticas a este reles continho da década de 1990:

Bem antes

Ele nunca fora caseiro; antes passava em casa apenas para trocar de roupa – resmungava um desaforo à esposa enquanto se encharcava de perfume. Os antigos olhos tristes, distantes na direção da porta que ele logo atravessaria para voltar apenas na manhã seguinte. Agora fingia não notar que ela escondia na sala sua melhor roupa, disfarçava no vestido a colônia de alfazema; cuidando resignadamente dos mínimos detalhes: – Querido, se precisar do penico me chame. E ela de sono tão profundo bem no quarto ali de lado: – Se eu não escutar, Lucinha acode, que ela tem o sono mais leve. Na manhã seguinte também fingia não perceber seus olhos inchados, o nervosismo das mãos, a solicitude gratuita, o amor eterno...

– Querido, dormiu bem!? – E afirmava ele com a cabeça, o olhar distante; o lençol escondendo a mancha de urina.

Ultimamente nem a filha mais acordava, com o mesmo sono pesado da mãe – na hora do almoço vislumbrava seus belos olhinhos vermelhos, que não mais o miravam de frente, mas sempre procurando algo para fazer.

Também fingia não notar o jeito cúmplice das duas; no passado: tão distantes – agora altivos, mais de irmãs. Não ligava para o estacionar dos carros na frente da casa, antes bem calma – pois sabia que inevitavelmente elas já estavam dormindo no quarto ao lado: e quão inútil seria chamá-las.