quarta-feira, 25 de abril de 2012

"Quando o Amor é de Graça XIV: Brás Ilha", crônica de Raymundo Netto para O POVO



Horas após assistir à coreografia do fim, tomei porto em Vera Cruz num feriado de data célebre, com direito a professores em greve, manifestações contra corrupção, quarentões enrolados em bandeiras entre mulheres deslizando em isqueites. Festa estranha com gente esquisita e eu, sim, um atávico “candango”, com aquela impressão lunar de que “estava desembarcando num planeta diferente, não na Terra”.
Quando viajo, seja onde for, sou de costume quedar-me um pouco no aeroporto, tomar um café com o tempo de me habituar aos novos ares, afinal, aeroportos são tão iguais, mesmo quando diferentes, como shoppings, que dão a ideia de que estamos sempre por perto de casa.
Acho maçante é esperar bagagem. Coisa chata e sem fim este balé de malas. Pior ainda – nunca passei por isso – quando se extraviam, aproveitando o nosso descuido para fugir de nós, uns “malas”, de fato, “sem alças”. Pois sim, à espera, eis que surge a minha mala. Bem mais viajada do que eu, coitadinha, vinha tão feia e cabisbaixa que nem acreditei fosse justo ela a minha. Flagrei uma moça bonita apontar-lhe o sorriso nas feridas de guerra, ou quem sabe na fita amarela peguenta a enrolar a sua alça. Não sei, de repente fui tomado por um orgulho besta e despropositado e, assim, a acolhi em meus braços como se recebe a um fabuloso filho coruja, mas logo na curva de um primeiro pensamento sabia já que, ao seu lado, nunca mais.
“Dia de festa”, foi o que me falou o Severino, um pernambucano aposentado da Embaixada Americana que reside na cidade há 40 anos, dedicando-se hoje ao taxismo autoviário.
O hotel era bom e “frio”, como reza São Cristovão, padroeiro dos viajantes e taxistas. Ali, duas camas: coisa que me dá a impressão de que estou mais sozinho do que deveria estar. Mala, roupas, livros, papéis de bombons, cupons fiscais... a cubro inteira de trecarias a ponto de esquecê-la.
Dias quentes, sol tinindo na pele — esqueço de novo o protetor solar. Eu arrodeado de livros, boa parte dos quais nunca leria, observando os histerismos das moçoilas por diários de princesas, livros de meninas, de vampiros, piratas, feiticeiros. Rostos desconhecidos andando para cima e para baixo se entupindo de açaí e comprando quase nada. Um casal, ao lado, sorri e comenta ser ali um lugar de gente inteligente... e chata!
Os poetas locais reunidos em palestra se perguntavam — com a pouca audiência presente era quase “se” mesmo — por que não conseguiam se projetar nacionalmente. Questionavam existir uma literatura paulista, uma carioca, uma brasiliense ou uma cearense (em dois momentos citaram Francisco Carvalho). Como sempre, não se chegou à conclusão nenhuma.
Lá fora, ao som de forró, a “bagaceira”. Gente de todo lugar vendendo, num extenso calçadão, sanduíche barato, cerveja, refris ou o que se quisesse comprar.
Numa tarde quente, fui embora, não num submarino do lago Paranoá, mas em avião, como cheguei. Adoro voltar, gosto de ir, mas voltar é a melhor parte de tudo, mesmo quando não se sabe exatamente para onde se está voltando.
De lá de cima, é sempre assim, embaixo de uma montanha leve de suspiros, a nossa cidade madruga linda, calma, regular, iluminada como uma criança a brincar de “chuveirinho”, inodora, a gabar-se de amores na mais tranquila solidão nacional.
Toca-me uma tristeza, de fazer o peito quase rebentar, de quem ao voar descobre que no mundo não há nada maior do que a asa de um avião.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

"Quando o Amor é de Graça XIII: À Semelhança de Barcos", crônica de Raymundo Netto para O POVO


Pintura a óleo sobre madeira, por Otacílio de Azevedo




Em 15 de abril de 2012, completa-se 100 anos do naufrágio do “Titanic”, o famoso navio que diziam, na época, “nem Deus conseguiria afundar”.
Fato: Deus deve ter coisa mais importante a fazer do que assistir a passeio de barquinhos nessa coxia (leia-se “oceano”) de subdesenvolvido planetóide. Nem não precisaria conferir qualquer esforço para de rápido pôr ao fundo o chaminenoso grandalhão, cemitério d’água de quase 2.000 pessoas, a maioria da terceira classe, claro, assim como o é a do terceiro mundo. Entretanto, não há tamanho para a queda, e esta, mesmo um dia, é certa para todos!
Barcos vêm e se vão numa vaga rosa ou escaudalosa rota, muito própria — e única — de cada. À semelhança de nossas vidas, nascem, navegam, se encontram, aportam, se perdem, soçobram, afundam e apodrecem.
Imagino-os com bandeirinhas festivas e, em seu interior, dezenas e ou centenas de pessoas acenando: “Não se esqueça de mim, também fiz parte de sua vida.” Às vezes, dentre tantos e inúmeros rostos de se acharem importantes, um ou dois, apenas, valem a cor de uma sua lembrança. Como barcos, carregamos coisas demais, a ponto de imaginarmos como ainda ser possível continuar a navegar. Mas, como dizia o infante português D. Henrique, criador da primeira escola virtual — a de Sagres — e visionário incentivador do internAutismo: “Navegar é preciso; viver não é preciso!”
Navegamos, porém, buscando lastros a nos sustentar ante o marzão de loucura, de violência, de consumo, de desperdício, de maldade, de incompreensíveis discursos e regras vazios, de burríssimos Homo lattes pontuados na forja da pressa de se arvorar e não de contribuir, inventar, originalizar-se.
Passo o olhar na “Crônica...” do “Gabo”: “Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte folhas, na qual soltou sem pudor as verdades amargas que trazia apodrecidas no coração desde a noite funesta. Falou-lhe das cicatrizes eternas que ele deixara no seu corpo, do sal da sua língua, do rastilho de fogo da sua verga africana. Entregou-a à funcionária dos correios, que ia à sexta-feira à tarde bordar com ela para levar-lhe as cartas, e convenceu-se de que aquele desabafo final seria o derradeiro da sua agonia. A partir de então já não tinha consciência do que escrevia, nem sabia de ciência certa quem escrevia, mas continuou a escrever sem tréguas durante dezessete anos.”
O cantar dos galos, disso tinha “ciência certa”, calam os apitos do barco, e calam profundamente, mas não podem com os marulhos dos ventos soprantes. Não apenas com os ruídos, mas com a força que carrega as coisas para o mais distante dos ermos e dos remos.
Os barcos quando nascem de “quilha torta” compreendem bem de a extensão do caminho, mas não se iludem com trajetórias pré-traçadas, nem crêem tanto na força de seu timão. Preferem as velas ao motor e as estrelas são seu único guia — enxergam mais à noite de astros. O risco de ir à pique é sempre iminente e, por vezes, desejado, senão seguro. Para eles, as noites são sempre frias e apenas o luar aquece os seus corações. Contemplam as madeixas verdes das águas, ouvem os sons de seus duelos, apreciam o encontro breve — a certeza do seguinte adeus — de outros barcos a navegar nas espáduas daquilo que ignoram. Tristes, singram solitários em cursos inexplorados, por entre dragões e sereias, a pôr demãos de futuro esquecimento, sem acenos de saudade, mas com olhares de arrebóis lacrimosos de nunca se esquecer.

Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br

segunda-feira, 9 de abril de 2012

"Ciclo do Livro: da criação à edição", no CCBNB, dia 14 de abril (sábado)às 7h.

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TROCA DE IDEIAS – CCBNB FORTALEZA

CICLO DO LIVRO: DA CRIAÇÃO À EDIÇÃO

Dia 14 de abril de 2012, sábado, 17h às 19h

com a presença de:

Nilto Maciel - Kelsen Bravos - Jorge Pieiro

Mediação

Paula Izabela

domingo, 8 de abril de 2012

Encontro de Twitteiros Culturais de Fortaleza (14.4)



Encontro de Twitteiros Culturais de Fortaleza (@ETC_Fortaleza)

Em Fortaleza, o ETC foi abraçado pela jornalista e editora Albanisa Lúcia Dummar Pontes (@albanisal), a jornalista Luiza Helena Amorim (@luizahelena) e a socióloga Glória Diógenes (@gloriadioge) que cuidam da organização do evento no Armazém da Cultura, Casa Editora e Espaço Multicultural.
O ETC Fortaleza faz parte do ETC Brasil que reúne twitteiros de todo o país com o objetivo de disseminar a cultura e educação nas redes sociais, utilizando o twitter como seu principal canal. O movimento está presente atualmente em 18 cidades do Brasil, espalhadas por 14 Estados, com a presença ainda em Barcelona, Turquia e Amsterdam. Para esta edição o tema será Literatura e Cultura nas Redes Sociais, com a participação de:

José Luiz Goldfarb
Bacharel em Física (USP), mestre em Filosofia e História da Ciência (McGill University, Canadá), doutor em História da Ciência (USP). Vice-
coordenador do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, presidente da Cátedra da Cultura Judaica e coordenador do Twitter, na PUC-SP. Curador do Prêmio Jabuti. Consultor de programas de incentivo à leitura, de projetos do terceiro setor, e de desenvolvimento de ações sociais e educacionais no Twitter. Coordenador do projeto #REDEMIS do Museu da Imagem e do Som de São Paulo.

Fabrício Carpinejar
Escritor, jornalista e professor universitário, autor de dezessete livros. Comentarista na Rede Gaúcha. É mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ganhador dos prêmios: Prêmio Nacional Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras Prêmio Fernando Pessoa, da União Brasileira de Escritores, Prêmio Jaboti entre outros. Tem 144.032 seguidores no Twitter.

Glória Diógenes
Antropóloga, Professora da Universidade Federal do Ceará, escritora. Ela é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado e doutorado em Sociologia pela mesma universidade, onde também é professora. Ela coordenou pesquisa pioneira para o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica) sobre exploração sexual de crianças e adolescentes pelo Unicef.

Plínio Bortolotti
Jornalista. Diretor Institucional do Grupo de Comunicação O POVO, jornal, rádios e TV (Fortaleza, Ceará). No jornal O POVO foi repórter, editor e ombudsman por três mandatos (2005/2007). Integra o Conselho Editorial do jornal
e coordena o Conselho de Leitores. Também é responsável pelo projeto Novos Talentos para estudantes de Jornalismo. Escreve um artigo semanal e faz intervenção diária no programa de rádio Revista O POVO/CBN. Diretor da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), entre os anos de 2008/2011. Cidadão Cearense, por título concedido pela Assembleia Legislativa em dezembro de 2010.

Serviço:
VII Encontro de Twitteiros Culturais de Fortaleza (@ETC_Fortaleza) acontecerá dentro da programação do 2º WebFor.
Data: 14 de abril de 2012
Hora: 16 horas
Local: Gran Marquise Hotel - Sala Capitólio - Avenida Beira Mar, 3980
Maiores informações no site: www.armazemcultura.com.br
e/ou pelos telefones (85) 3224.9780 / 9633.9355 (TIM).

Espaço O POVO de Cultura & Arte: Programação COMPLETA do mês de abril



Programação de ABRIL
Espaço O POVO de Cultura & Arte
(Av. Aguanambi, 282 - jornal O POVO)
ABERTA AO PÚBLICO

1. Data/Horário: 10 de abril de 2012 (terça-feira), às 19h
Confronto de Ideias
O que era bom no O POVO – e acessado pelas mídias digitais – ficará ainda melhor. O programa Confronto de Ideias faz sua estreia no Espaço O POVO de Cultura & Arte, trazendo para o campo do debate presencial a temática de “gênero”.

Convidados
Silvia Siqueira, doutora em História, professora da Uece, se dedica ao estudos de gênero, com ênfase no feminino
Paulo Reis, urologista, especialista em Sexualidade Humana

2. Data/Horário: 11 de abril de 2012 (quarta-feira), às 19h
“Os Quatro Cantos de Fortaleza”: uma prosa sobre memória, comportamento e espaços da cidade.

Convidados
Narcélio Limaverde, jornalista, radialista e escritor, autor de livros onde destaca suas memórias sobre Fortaleza.
Preto Zezé, presidente nacional da Cufa. Há mais de 10 anos atua em projetos sociais que buscam, por meio das artes, transformar a realidade de vários bairros de Fortaleza. É o primeiro nordestino a ocupar a presidência da entidade dirigida antes por MV Bill.
Lídia Noemia dos Santos, historiadora, doutoranda em História pela PUC-SP, é autora do livro Brotinhos e seus problemas, uma pesquisa que envolve juventude e gênero na imprensa cearense nos anos 50 do século XX.
Lídia Valesca Pimentel, socióloga, doutora em Sociologia, pesquisa há 15 anos os espaços de Fortaleza. É autora do trabalho Vida nas ruas: corpos em percursos no cotidiano da cidade. É professora da Faculdade Farias Brito.

3. Data/Horário: 12 de abril de 2012 (quinta-feira), às 19h
"O Olhar do Cronista sobre a Cidade"

Convidados
Carlos Vazconcelos, contista, mestrando em Literatura (UFC), é autor do livro de contos O mundo dos vivos. Coordena o projeto literário Bazar das Letras, no Sesc-CE.
Demitri Túlio, jornalista, escritor, assina a coluna Das Antigas, do suplemento Vida & Arte (O POVO). É autor da coletânea de crônicas Das Antigas e dos livros infantis  Detestinha, o bicho que detestava ler (teatro); O Ipê Amarelo e o passarinho O Ovo Mudo
Raymundo Netto, escritor, cronista do suplemento Vida & Arte (O POVO). É autor do livro Um conto no passado: cadeiras na calçada. É editor-adjunto das Edições Demócrito Rocha.

4. Data/Horário: 19 de abril de 2012 (quinta-feira), às 19h
"Entrevista Aberta” com Halder Gomes, de Area Q

O cineasta cearense é convidado da terceira edição do projeto Entrevista Aberta. Ele é o produtor executivo de Area Q. No início dos anos 2000, levou ao Festival de Cinema do Rio de Janeiro, o curta Cine Holiúdy: O astista contra o caba do mal e ouviu  dos críticos que assistiram ao trabalho que o curta poderia se transformar num longa. Foi assim que Cine Holiúdy cresceu.  Dirigiu ainda os trabalhos As mães de Chico Xavier (2007); The Morgue (2007), No calor da Terra do Sol (2005), entre outros. Já participou de mais de 60 festivais de cinema mundo afora. Diz que faz filme de olho no mercado internacional.

Entrevistadores
Pedro Rocha, jornalista, repórter de O POVO, mestre em Sociologia (UFC)
Sander Cruz Castelo, historiador, doutor em Sociologia (UFC), professor da Uece.
Mediador: Plínio Bortolotti, jornalista, diretor do O POVO.

5. Data/Horário: 20 de abril de 2012 (sexta-feira), às 18 horas
Palestra-Lançamento
Palestra “Construindo a História da Cidade”
       Convidados: Artur Bruno, Airton de Farias e Clélia Lustosa
Lançamento: Fortaleza: uma breve história, 2ª edição, Edições Demócrito Rocha.

Informações: 3255.6084

Lançamento Revista Pechisbeque #2, no sobrado Dr. José Lourenço (28.4)



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Data: 28 de abril de 2012 (sábado)
Horário: 15h
Local: Sobrado Dr. José Lourenço, situado na rua Major Facundo, 154, Centro.
Valor da Revista: apenas R$ 1,99
Editores: Edilson Pereira, Madjer de Sousa Pontes e Nathan Mattos.

Nem tudo que reluz é ouro...
No mês de aniversário da capital Alencarina, Fortaleza mantém seu espírito de liberdade e efervescência cultural nas novas produções de seus habitantes.  Com o objetivo de subverter a ordem do academicismo e jogar luz onde apenas descansavam as espumas dos bravios verdes mares, a revista literária Pechisbeque chega a sua edição número dois provocando os leitores na descoberta de novas joias preciosas.
Editada por  Edilson Pereira, Madjer de Sousa Pontes e Nathan Mattos, a Pechisbeque é produzida em formato e caráter independentes. A nova edição reúne prosa e poesia de autores e autoras cujo único compromisso é o texto literário. Longe das tradicionais panelas que cozinham os autores em grupos esparsos e do mofo das agremiações nada-literárias, a Pechisbeque propõe congregar artistas e suas múltiplas linguagens em um espaço de profícuo diálogo e desconstrução de ideias.
Em seu segundo número, o feminino é questionado sob a perspectiva poética e desconstruído através de representações que invertem o significado das questões de gênero. Como a liga metálica que finge ser ouro, a Revista Pechisbeque inverte o ofício da escrita e questiona, deste modo, o sentido da literatura e seu suposto pedestal de erudição. Assim, velhos conhecidos das Letras cearenses e desconhecidos do dito “grande público” se unem em uma nova edição que traz as poesias de: Ayla Andrade; Ângela Calou; Tito de Andréa; Poeta de Meia Tigela; Kamilla Cândido; Uirá dos Reis; Bruno Prata; Madjer de Sousa Pontes; Rebeka Xavier; Mário Rafael; Vinícius Alves; Tatiane; Veronica Benevides e Rodolpho C. Teles. Além dos contos de: Araújo Jr; Edilson Pereira; Nathan Mattos; Geórgia Cavalcante; Nathália Bernardo.
Participam também desta edição, Rodolfo Batista com sua análise cinematográfica sobre o diretor italiano Michelangelo Antonioni, responsável por incluir temas modernistas em suas produções e também trilhas sonoras produzidas pelas bandas Pink Floyd e Rolling Stones. Quem assina a ilustração da capa é a artista plástica Lúcia Teles. Em seu lascivo desenho, a artista nos sugere uma provocação entre o não-significado do Ser mulher em confronto com a sua função de rainha destronada contemporânea.
O lançamento da Pechisbeque número 2 será no próximo dia 28 abril, sábado, às 15 horas, no Sobrado Dr. José Lourenço, situado na rua Major Facundo, 154, Centro.
Lílian Martins

Apoio Cultural
Secretaria da Cultura do Estado do Ceará
Sobrado Dr. José Lourenço

Lançamento "O Tempo em Estado Sólido", de Tércia Montenegro, na Cultura (24.4)

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quarta-feira, 4 de abril de 2012

"Da Memória dos Relógios", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO (3.4)



aos bairros José Bonifácio e Parque Araxá, hoje quase esquecidos


Se despertássemos um dia ouvindo os ruídos da manhã de tempos atrás, certamente tomaríamos um susto. O ruge-ruge do mundo, os barulhos cotidianos vão mudando com o passar dos anos. Os roncos de motores dos automóveis, os diálogos televisivos na casa vizinha, dariam lugar aos pregões de rua, às valsinhas chiadas num rádio e às conversas de senhoras lavando roupas.
Mas nem tudo acompanha a marcha inexorável do tempo: aqui e ali encontramos um recanto perdido em algum quintal de subúrbio, um corredor sombrio em certo casarão ainda não demolido pela especulação imobiliária, uma árvore riscada por cupins e povoada de pássaros invisíveis esquecida em pleno centro da cidade; vezes mesmo há bairros inteiros, margeando outros mais movimentados, que parecem ter sido poupados pelas pesadas correntes dos relógios.
Se neles penetrássemos com bastante cuidado, numa delicadeza tal que não toque nos míseros fiapos das teias de aranhas que formam as sensíveis roldanas que movimentam estes e outros mundos esquecidos pelos deuses do progresso, com certeza ganharíamos o paraíso.
Mas há que se andar com mocassins de pelica, a respiração lenta e pausada, para que as suas finas membranas não sejam rompidas. E é certo que estes mundos quase invisíveis, estas esquinas impossíveis do tempo, precisarão sempre de um ouvido atento, de dois olhos bastante distraídos, para não desaparecerem entre as infinitas peças que movimentam a engrenagem desse gigantesco mecanismo do mundo.