domingo, 26 de janeiro de 2020

LANÇAMENTO "Quando o Amor é de Graça" e bate-papo sobre escrita de crônicas (29.1)



Lançamento de
Quando o Amor é de Graça!
e Bate-Papo de Raymundo Netto com Vanessa Passos
Escrever crônicas: os desafios da escrita cotidiana
Quando: Dia 29, QUARTA, a partir das 19h
Onde: na Livraria Lamarca
(Av. da Universidade, próximo à Casa Amarela)

Saiba mais sobre a obra na apresentação de Sânzio de Azevedo:


Um Livro de Crônicas
                                                                         
Sânzio de Azevedo*

Raymundo Netto, que me distingue com sua amizade, é um dos mais ativos escritores do Ceará presentemente, com vários livros publicados, como Um Conto do Passado: cadeiras na calçada (2004), romance com nova edição em 2009; Os Acangapebas (2011), de contos; e Crônicas Absurdas de Segunda (2015). Tem recebido vários prêmios e é colunista do caderno Vida & Arte, d’ O POVO.
Neste 2019, traz-nos ele o livro de crônicas Quando o Amor é de Graça!, com 47 textos, do qual podemos pinçar alguns trechos interessantes.
Tomemos a crônica “O feio” e destaquemos este parágrafo: “Para mim, ser feio é uma bênção: a beleza se perde, mas a feiura é permanente, e com o tempo e o costume passa a ser compreendida junto com a paisagem. Já os faustos e belos, coitados, estão fadados à decadência ou ao redesenho do bisturi.”
Em “A maior invenção do mundo”, lá para as tantas o autor diz: “Trocando uma ideia com Deus, Adão que preferia a má companhia  à solidão e cansado de ficar na mão em noites de luar, negociou uma de suas costelas em troca de uma diva. Soubesse Anatomia, ofereceria o apêndice, cujo único objetivo é dar dinheiro aos cirurgiões.”
Falemos de “Tá todo mundo doido... Oba!”. Quando era fisioterapeuta, o autor estagiou em um hospício, e presenciou uma entrevista de um médico com alguns loucos, a fim de lhes dar alta. O médico chamou três deles:              “Perguntou ao primeiro: ‘Fulano, quanto é dois mais dois?’ Respondeu: ‘69!’ Reprovado na lata! Ao segundo:  ‘Cicrano, quanto é dois mais Dois?’ Ele: ‘Terça-feeeira!’ Coitado... Insistiu no terceiro:’ Beltrano, quanto é dois mais dois?’ Finalmente: ‘Quatro!’ ‘Muito bem, até que enfim alguém merece a alta... Pode nos dizer como chegou à conclusão?’, indaga. ‘Muito fácil, doutor, só prestei atenção nas respostas dos colegas... Olha só: 69 menos terça-feira é igual a quatro!’  Ô loco!”
Em “Confissão à forca”, comenta a pergunta “Quem você gostaria de ser?” e dispara: “Não, não gostaria de ser ninguém, não tenho vontade de ser nem ter nada dos outros. Por outro lado, se me perguntassem: ‘Quem eu não gostaria de ser’, a resposta pularia do trampolim da língua: ‘Raymundo Netto, esse eu conheço bem. Deus me livre!’”
No final dessa crônica, o autor, que cita Drummond várias vezes, e mais Vinícius, Manuel de Barros e outros de nosso tempo, termina transcrevendo o belo final de poema do cearense Mário da Silveira, assassinado no centro de Fortaleza em 1921.
Em “Literatura para quem?”  há um trecho em que o autor diz não ler nada que não seja do seu gosto: “Não sou ensaísta, resenhista, nem crítico. Leio por gostar e pouco me impressiona assinatura de autor. Na minha simples, e talvez ignorante visão das coisas, conheci picassos que não deixaria enfear as minhas paredes.”
Se eu fosse reproduzir os trechos de crônicas que me chamaram a atenção, não haveria papel que chegasse...
Concluo este artigo com o último parágrafo de “Chuvantiga”: “Mundo, mundo, vasto mundo’... Ah, se eu não me chamasse Raymundo, como vento gemeria, não em prosa, mas em poesia, todo o vivido retrato que, só no escuro deste quarto, a rasgar os céus azula-me o clarão, pela janela distraída do nublado coração.”
Vale a pena ler Raymundo Netto, escritor a quem a cultura cearense deve ainda a reedição de várias obras de sua literatura.

Sânzio de Azevedo é doutor em Letras pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro

e é membro da Academia Cearense de Letras.  



segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

"Táxi", de Raymundo Netto para O POVO



Seria aquela apenas mais uma corrida de táxi, entre as milhares a riscar as vias públicas da cidade... mas não foi.
Um passageiro, após sinalizar afoito na calçada, entrou no carro pejado de pesadas bagagens: “Airport, please!”
Oscar, o motorista, contava anos no ofício. Não sentia a menor vontade de puxar qualquer conversa. Assentiu pelo retrovisor e deu a partida.
De repente, percebeu um barulho estranho por trás do seu assento, um incômodo, uma espécie de solavanco.
Estranhando, mirou novamente pelo espelho do retrovisor e viu o olhar assustado do passageiro. Perguntou: “Tá gudi, mem?”
Então, assistiu quando o gringo esticava os braços por trás do assento do motorista e, com muita força e aos berros, puxava um homem que estava preso embaixo daquele banco.
O resgatado, em trajes surrados, suava às bicas e prostrou-se por sobre o banco, dando tapinhas agradecidas no ombro do americano.
Ainda em silêncio, o motorista, assistindo a tudo, se admirava com aquilo. Por certo não era assim tão zeloso com seu carro. Perdeu as contas de quando havia feito a última lavagem, mas a ponto de perder um passageiro e não perceber...
Lembrava-se daquele sujeito. Havia feito aquela corrida há meses. E, naquele dia, ao chegar no local indicado, ele não estava mais no carro. Ficou até em dúvida se ele existia de verdade, se havia tomado o carro, se teria se aproveitado e fugido em algum sinal ou mesmo se, com aquela buraqueira das ruas, havia tombado porta afora. Mas por ordem da necessidade não tinha tempo a perder, deixou para lá.
O homem contava ao colega que havia sobrevivido ali graças as pastilhas, amendoins e pipocas caídos fartamente ou chicletes deixados por baixo do banco pelos passageiros e, às vezes, com os restos de sanduíches de Oscar, disputados a tapas com baratas.
A princípio, teve medo, mas apesar da situação, aprendeu a ouvir e acompanhar a história de vida dos outros passageiros. As suas dores, seus sonhos, suas conquistas e esperanças. Por outro lado, tinha queda por fofocas, curtia segredos e se deliciava com os ousados amassos e fantasias alheios. Além do quê, aquele friozinho e a tremura do motor passaram a compor seu “berço esplêndido”. Sentia-se seguro, isolado dos últimos acontecimentos e das impostas cobranças sociais. Pela primeira vez na vida sentia-se realmente feliz, pois encontrara o seu lugar no mundo.
Ao chegar a seu destino, o turista, embevecido com o original depoimento do colega, pediu para fotografá-lo, tirou selfies e, bradando “Wonderful... Brazil... Wonderful”, despediu-se do curioso companheiro.
Agora, sozinho no banco de trás, bocejava a saudade de seu aconchego. Olhou para o retrovisor, acenou para o desconfiado motorista, e disse que voltaria para aquele banco. E, antes que ele reclamasse, mandou lembranças para a bela Suzana. A sua mulher? Não, a amante de Oscar.



segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

"Ama o Teu Próximo: Defenda o seu Direito!", de Raymundo Netto para O POVO



Para aumentar, clique na imagem!

Cumpri estágio nos últimos anos de curso em uma instituição bastante conhecida. Durante o período surgiu-nos a oportunidade de participar de evento profissional no Rio de Janeiro. Por conta da bolsa, pela primeira vez poderia participar de algo assim. Entretanto, a responsável nos disse que não seríamos dispensados para irmos a tal Congresso. Protestei, afinal, por ser estágio, não poderiam nos impedir de participar de atividades relevantes a nossa formação profissional.
Éramos seis estagiários. Não aceitei a negativa e estimulei aos colegas que não se sujeitassem a isso, pois era nosso DIREITO. Durante dias, a minha campanha soou incômoda, gerando piadas, indiretas, até que a nossa chefe trouxe uma proposta: “Um sorteio. Apenas 2 estagiários seriam liberados para viajar. Os demais ficariam.” Ao ouvi-la, completei: “Pode sortear se quiser, mas se eu não for contemplado irei da mesma forma.” Então, para minha surpresa, sorridentes, minhas colegas diziam: “Tomara que não seja o Netto, pois ele fala demais!” E assim, durante o sorteio, essa cantilena soou alegre, num agouro incompreensível, que resultou, para minha sorte, em meu nome. Contudo, a coordenadora sensibilizada acabou liberando a todos. Valeu o direito!
Desde então eu aprendi a grande lição: defender o direito alheio pode ser prejudicial à saúde. Antes eu tivesse articulado, miseravelmente e à surdina, a minha ida. Não seria difícil. Porém, não sei se por quase ter nascido dentro de um ônibus, tenho um espírito coletivo demais. Como imaginar na inocência dos meus 20 anos que meus “semelhantes”, beneficiados com meu desacordo, torceriam e se voltariam contra mim? Parece incrível, mas ser irracional é uma das maiores faculdades mesmo entre os mais instruídos dos seres humanos.
Nunca duvidei: DIREITOS não nos são dados, mas conquistados! Todavia, frutos de uma cultura elitista e escravocrata, é terrivelmente compreensível que muitos ainda esperem que a sorte do destino lhes caia dos céus ou chegue pela caridade, em joelhos, suplicando migalhas, adorando, invejando e servindo arrasadoramente àqueles que possuem poder e/ou fortuna.
Hoje, no século do futuro, com tantos rastros históricos a nos apontar nossos erros, crises, holocaustos, tiranias e crueldades assisto a uma pesquisa que afirma: as pessoas estão cada vez mais abrindo mão da democracia ou simplesmente alegando que para elas “tanto faz”, da mesma forma que outras pedem a volta de regimes totalitários e intolerantes – mesmo quando afirmam nunca haver existido tais coisas. É inacreditável o número de pessoas a abrir mão do seu intransferível direito de escolher e decidir o seu destino e dos seus iguais. Da mesma forma, muitos lavariam as mãos, como o fez Pilatos, causando a condenação e a tortura – que também não os incomodam – daquele que nas noites natalinas clamam emotivamente de “Meu Salvador”.
É porque muitos deles usam a religião como expiação, uma chancela para esconder as vergonhas que nem a sua consciência ousa aceitar. Mesquinhas e covardes, buscam a salvação. Nessa hora, em oração, clamam ao seu Deus por sua vida, por seus filhos, seus amigos, pedem mais – não merecem – e pedem ainda mais. Insaciáveis, como bestas em cabrestos dourados, só pedem para si. Daí a minha incontestável certeza: quem abre mão de seu direito é incompetente para dizer que ama o seu próximo, negando o ensinamento maior daquele que, por vezes, traz pendurado no pescoço, mas jamais dentro do peito.