domingo, 20 de novembro de 2022

"15 Anos de Crônicas no Jornal O POVO", de Raymundo Netto para o dito cujo


Na capa do Vida & Arte, em 04.02.2007 | Foto: Fco. Fontenele


Durante a última edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará, a equipe do jornal O POVO elaborou uma programação na qual constou uma mesa de jornalistas que celebrava os 10 anos de Romeu Duarte como cronista no seu caderno de cultura. Merecida homenagem. Ótimo cronista, contador de boas histórias, Romeu reveza o espaço comigo, às segundas, e temos uma coletânea de algumas dessas crônicas a ser publicada, esperamos, no ano que vem, pelas edições Demócrito Rocha. Pensava nisso quando... epa!... Lembrei-me: em 2022, completei 15 anos no mesmo caderno.

       Daí, não sob holofotes, mas no meu silencioso e reservado eu comigo mesmo, na atitude – hoje quase clichê – de ouvir estrelas, rememorei: em 2007 fui convidado e passei a integrar um grupo composto por quatro cronistas do “Vida & Arte”: Pedro Salgueiro, Jorge Pieiro, Fabiano dos Santos e eu. Fabiano apenas estreou, não chegando a uma segunda participação. Pieiro ainda levou por alguns anos, mas pediu para sair. Restamos apenas eu e o Pedro, debutantes e ainda aprendizes, graças a Deus.

       De lá para cá, muita coisa mudou, seja na vida do mercado jornalístico (espaços menores nos impressos, quando impressos, e a inexistência dos suplementos literários), assim como na dos escritores (escravidão nas redes sociais e exigência de vida social não compatível com sua produção, além de não precisar ser escritor, mas, sim, personagem).

       A crônica, desde o século 19, tornou-se bastante popular por conta de seu maior veículo: o jornal. Na verdade, era um atrativo para que as pessoas comprassem mais jornais. Com o tempo, ao lado de palavras cruzadas, das tirinhas de quadrinhos, das receitas da vovó e mesmo de colunas sociais, a crônica continuaria o seu papel de lazer, de fruição. Esse bate-papo com o leitor, que conforme o autor ou autora teria suas características e estilos bem próprios e distintos – assim como o seu público –, fomentou uma série de publicações que, no meu tempo de estudante, se revestiriam da missão de encantar-nos e nos apresentar ao mundo literário, desenvolvendo o nosso gosto pela leitura. Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Inácio Loyola Brandão, Sérgio Porto, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, Luís Fernando Veríssimo... Uma infinidade de gente muito boa. E, para mim, o mais importante: lia essa turma toda e me sentia feliz!

     Sempre muito solitário, apesar da família grande, a leitura me foi sempre uma grande companheira. Sua fala baixinha correndo pela minha imaginação adolescente fazia-me crer na possibilidade de quase tudo, alimentando-me nas horas vazias, me emocionando e me acolhendo naqueles instantes nos quais me perguntava qual o sentido de existir.

        Quando me dispus a escrever crônicas neste jornal, após o ponto final, eu as lia e as relia, na tentativa de imaginar se a minha leitora e/ou meu leitor teriam esse mesmo sentimento. Se isso não aconteceu ou acontece, FRACASSEI. Não existe outro motivo para continuar.

       Por conta dessas crônicas, publiquei dois livros: “Crônicas Absurdas de Segunda” (2015), ganhador do edital de artes da Secult-CE e finalista do Troféu Jabuti de Literatura, e “Quando o Amor é de Graça!” (2019), também contemplado no Edital de Artes da Secult-CE, e tenho mais dois para sair no ano que vem “Fantásticos!” e “Coisas Engraçadas de Não se Rir”. Elas, as crônicas, seja pelo jornal ou pelos livros, me apresentaram a maior parte das pessoas que hoje dividem comigo suas leituras e amizades. São responsáveis pelos encontros casuais com desconhecidos na cidade a se anunciarem também leitores e, muitas vezes, a compartilhar esses belos e necessários sentimentos.

       Concluo: a crônica é poderosa, mas assim como as estrelas de Bilac, é preciso amá-las para entendê-las.





 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

"Ninguém Vive sem Amor", de Raymundo Netto para O POVO


Apolônio Eugênio de Mascarenhas Lobo, desde a primeva infância vulgarmente conhecido pela alcunha “Ninguém”, teria algumas qualidades que o distinguiam da maioria dos mortais: era boêmio, ateu, comunista e poeta. Havia outra, para ser sincero com o leitor ou a leitora, que distraídos deixaram cair os olhos nessas apenas sugeridas linhas: Ninguém nunca amara alguém! Sim, se dizia poeta e não vivera sequer a mais mísera história de amor. Porém, como a vida não é nada perfeita e dada a sua condição de reiterada improvisadora, deu-se que um dia Ninguém sentiu um aperto inédito no peito, que, de tão original, pensou ele ser o seu fim... mas, ao contrário, foi o começo!

Ao entrar numa loja de variedades, encontrou-a, tímida, na seção feminina. Belíssima, a mais linda mulher em que já pusera os olhos. Como encantado, aproximou-se dela, sussurrou algo em seu ouvido, e ela parece ter gostado, pois dali sairiam os dois agarradinhos direto para a casa daquele que, até então, ignorava esse estado de graça.

Durante semanas, Ninguém seria o homem mais feliz do mundo, descoberto como num sonho, a percorrer a pé os versos tortos sem eira nem beira dos desvairados amantes.

Quando nos passeios ao final da tarde, Ninguém percebia os olhares zombeteiros e curiosos do populacho para o casal. Ele, claro, sempre subestimado, supunha logo que estranhavam: “O que essa mulher tão linda viu nessa coisinha?” Neste momento, ele olhava para a companheira e, ela, altiva, não dava a mínima para eles. As lentes do coração violam a miopia do olhar humano. Que os maledicentes se lixassem, se roessem de invejas, fossem para o inferno: eles se amavam!

Às noites, vendo-a na cama, deslumbrante e completamente nua, pronta para incendiá-lo, chegava a se envergonhar por merecer tanto. Deitava com cuidado ao seu lado e diante das estrelas cadentes que regem amores assim, tomava-lhe os seios, as nádegas, beijava cada poro de seu corpo, chupava os dedos de seus pés. Daí flagrados pelo sol a espiar cedinho na janela, percebiam a noite não ser suficiente para caber tanta paixão.

Contudo, com o passar do tempo, inexplicavelmente, como injusta é a vida de quem ama, percebia a gélida presença de seu silêncio, uma inesperada e incômoda apatia. Teria se entediado com ele? Estava arrependida? Por vezes, enquanto ele inventava assuntos, contando causos, falando de poetas e poemas ou de seu modesto – e quase insignificante – trabalho de editor, a assistia sentada no sofá da sala, olhando distante pela janela, como a divisar uma despedida anunciada.

Enfim, não aguentando mais a tortura da indiferença e da desatenção, conversou com ela em prantos de morte. Podia partir! Levasse com ela o seu coração, o seu mundo, nada mais importava. Estava ferido, melhor não vê-la nunca mais. Ela, talvez surpresa com o inesperado desfecho, nada falou. E assim se deu o fim de mais uma, entre tantas, histórias de eterno amor.

Meses depois, Ninguém cruzava a calçada da mesma loja em que encontrara a sua amada. Difícil olhar para o prédio e não se recordar sofrido desse dia. Contudo, sobressaltou-se ao ver, expostos na vitrina da loja, ela ao lado de um outro homem. Estava resplandecente como sempre, agora vestida de branco, com véu e grinalda. O sorriso era o mesmo que ela o oferecia todas as manhãs, só que então ela o dividia com aquele outro, um novo amor, de cravo na lapela, também inerte, segurando levemente os dedos da mão enluvada. Parecia feliz, insuportavelmente feliz, como nunca, e isso bastava para ele, que aprendera da forma mais cruel: o verdadeiro amor pede renúncia e desesperança, mesmo que doa... e muito. Foi-se. E até hoje, maldito pelo amor, sangrando de saudades e ciúmes, Ninguém é triste.