segunda-feira, 20 de junho de 2022

"O Faroleiro", de Raymundo Netto, na íntegra, para o jornal O POVO


I

Estava hospedado em um pequeno hotel à beira-mar de uma cidade africana.

Sozinho, sem conhecer ninguém nem o lugar, havia acabado de tomar o meu café da manhã, quando decidi fazer uma breve caminhada de reconhecimento nos arredores. Ainda no hall envidraçado do hotel, algo incomum me chamou atenção. Havia, não muito distante dali, envolta a uma densa névoa, uma espécie de torre escura em alvenaria erigida em um alto rochoso conhecido – me disseram – como Ponta Tenebrosa, por ser remotamente um “cemitério de navios”.

Curioso, segui por uma vereda de areia e cascalhos, e chegando mais próximo da construção, confirmei tratar-se mesmo de um antigo farol a precipitar-se na ponta da tal rocha, como se a qualquer momento pudesse lançar-se contra aquelas ondas extremamente verdes e brilhantes com o mesmo vigor com que elas banhavam o seu torreão octogonal.



Em torno dele, havia uma estrutura de um fortim. Como o largo portão azul da fachada estava aberto, entrei. Nas laterais da entrada havia depósitos ou armazéns, que deveriam guardar provisões, gerador ou materiais de manutenção dos seus mecanismos. O seu terrapleno de pedras era cercado por uma mureta pequena e, em um de seus lados, havia dois envelhecidos canhões de bronze.



Mesmo sendo um dia ensolarado, ao olhar para cima, ainda via aquela grossa névoa a tomar toda a parte superior da torre.

Chegando próximo à mureta, senti a força dos ventos naquele local rodeado por imensas rochas negras, salpicada de mexilhões, de cujas frestas saltavam alvas espumas do mar e um som cortante, como de intermináveis gemidos.

Na base da torre, uma pequena porta encimada por uma saudação à rainha de um tempo distante se abria, e dela saía um homem idoso, negro, magro, que se dirigiu a mim com um extenso sorriso de boas-vindas, apresentando-se: Zacarias. Era ele o faroleiro. Não apenas o faroleiro, disse-me, mas provavelmente o último faroleiro de toda a África.



Perguntou-me se queria entrar, conhecer de perto aquele farol. Não me preocupasse, não seria incômodo nenhum, asseverou, movimentando as mãos ligeiras e trêmulas.

Entrei. Logo ali, uma saleta escura e bastante úmida, impregnada da maresia, o seu local de trabalho. Havia uma cadeira, alguns bancos, uma fileira de latões, um rádio e uma escrivaninha de madeira com grandes gavetas. Por cima da escrivaninha, desenhos, pincéis, pinças, tesoura, martelinho, borracha, flanelas, algodão, dezenas de relógios, de todos os tipos e modelos, assim como nas paredes, relógios de capela e carrilhões.



Percebendo meu estranhamento, Zacarias sorriu: “Sou relojoeiro. Um hobby apenas. As pessoas acreditam que não se tem muito o que fazer em um farol. Parece não ter mesmo. Muitas vezes, somos úteis, o farol e o seu faroleiro, em uma única vez na vida. Mas esta única vez pode salvar muitas vidas. Nos consolamos com isso e ficamos atentos para a chegada deste momento... o nosso!”

Aproveitando o ensejo e imaginando encontrar ali um bom motivo para voltar, perguntei se ele não poderia dar uma olhada em meu relógio. Eu pagaria, é claro. Tirei o relógio e o entreguei. Ele aceitou, desconfiado, me pareceu. Colocou-o à mesa: “É muito novo. Uma limpeza talvez... Trabalho com relógios de família, mais antigos, como pode ver.”

Nesse momento, percebi que me flagrou olhando, ao fundo soturno da saleta, a antiga escada em espiral que nascia ali e que deveria findar no alto da torre: “Você quer subir lá? Tem certeza disso?” E riu, com certo deboche, pensei, tentando me fazer hesitar, mas respondi: “Sim, eu quero muito!”

 

II

Pois bem-vindo ao meu purgatório.”

Apesar do tom jocoso, não sei por que, diante daquelas palavras, senti um estranho arrepio percorrer o meu corpo. Nunca havia estado em um farol antes, coisa que só via em livros ou filmes antigos. Com ele, um imaginário de lendas e narrativas repletas de criaturas fantásticas e sobrenaturais, monstros marinhos, polvos gigantes, nereidas, sereias, tritões, piratas, deuses e demônios. O ar impregnado de miasmas, as artérias verdes que sulcavam as paredes a afunilar à medida que, em direção ao topo, galgávamos mais degraus da íngreme e estreita escada em espiral, me faziam entontecer, sufocar e quase alucinar.

Zacarias ia à frente, ágil como quem percorrera aquele trilhar por uma vida inteira. Percebia que falava o tempo todo, creio, movido pela costumeira solidão, mas eu não conseguia compreender nada do que dizia. Além do som da agitação e do choque brusco do mar que ecoava ali, e do meu inesperado mal-estar, me dispersava com o implicante rangido dos degraus aos meus pés – que me pareciam mais pesados do que o normal –, o fluente suor a gelar o meu rosto, a visão de aranhas a mordiscar moscas, como que mumificadas, em extensas teias a tomar as paredes úmidas e escuras da construção, além do uivar do vento a zumbir nos meus ouvidos.



Parei em uma pequena janela, a primeira que encontrei, próxima ao contrapeso que pendia no centro da torre, e lancei meu rosto para fora em busca de ar puro.

Àquela altura, o horizonte baço, como berço, acolhia o firmamento. Alguns albatrozes ou fragatas ligeiras, não tenho certeza, transpunham o céu azul-acinzentado. Logo abaixo e distante, um barco pequeno oscilava, com dois homens, provavelmente pescadores. Eles acenavam, colocando a palma da mão sobre a testa para avistar o farol. Deveriam passar por ali muitas vezes, acredito, mas mesmo assim achavam dever alguma reverência àquele impávido gigante.



Zacarias já havia chegado à plataforma e apressava-me. Estava no alto da escada. Exceto a brancura de seus olhos e dentes a se destacar na escuridão, mal conseguia enxergá-lo. E assim, subi os últimos degraus para a claridade.

Era impressionante a vista que tínhamos da plataforma. Tanto do mar, quanto da cidade. Talvez por esse motivo, o convívio diário e zeloso com aquela silenciosa e solitária vastidão, muitos faroleiros se tornavam pessoas excêntricas, ensimesmadas. Apoiei-me no guarda-corpo que circulava a plataforma. Devido à maresia, estava bastante carcomido. Zacarias alertou-me: “Não confie...”

Enquanto ele fazia sua rotineira faxina e a manutenção das lentes do farol, eu contemplava o panorama, esforçando-me para ficar em pé, resistindo à força dos ventos dali.



O faroleiro aproximou-se, trazendo nas mãos uma flanela velha: “Você consegue ouvir a voz?” Não entendi, e ele me disse: “A voz do mar. Com o tempo, a gente aprende a ouvi-la. Ela ensina, nos conta histórias e nos alerta. O oceano é a maior testemunha da eternidade.”

Enquanto limpava um a um dos dedos de suas mãos, perdia o olhar no espaço distante, quando, do nada, sentenciou: “O mundo, meu amigo, vai acabar aqui.”

Seu olhar se transfigurou, de doce a sombrio. Tive a impressão de um aviso, um mau presságio, sei lá. Uma angústia profunda me tomou por inteiro. Gaguejando, disse-lhe que tinha que ir-me logo, havia esquecido um compromisso. Ele riu: “É mesmo como o oceano... quem vê o vaivém suave de suas ondas na superfície, não imagina a vida que se passa nas suas profundezas.” Nem esperei a sua conclusão e, aflito, desci ligeiro, correndo perigosamente pela escada, tomado por uma insólita sensação de perigo e possessão, sem olhar para trás e alheio ao som da voz cada vez mais distante do velho Zacarias.




III

Naquela noite de perturbado sono, despertei subitamente ao som de carrilhões e sinos ecoando na cabeça. Com eles, a imagem distorcida de dezenas de relógios amontoados nas paredes salsuginosas do farol. Cambaleando e quase involuntariamente corri à janela. Chovia muito. Tentei avistar o farol e não consegui: “Estaria desligado?”

Desci as escadas desertas do hotel e, movido por uma estranha e incômoda curiosidade, ou talvez por uma outra força sobre-humana que não saberia explicar, enfrentei a tempestade fria e relampejosa, envolta a sons guturais de ventos e trovoadas, seguindo por um caminho da lama a descer em corrente do alto da Ponta Tenebrosa.

No meio da trilha escura, uma surpresa: pude ver, por meio da fosforescência das águas revoltas do mar, um navio se dirigir à costa. O farol estava mesmo apagado, como se imerso na sua própria melancolia, e previ ali uma tragédia.

Corri o mais rápido que pude na esperança de alertar o faroleiro. Porém, lá chegando, bati à porta diversas vezes. Chamei por Zacarias, desesperadamente, e ele não me atendia. Não, ele não poderia estar ali. O que teria acontecido? Chutei a velha porta. O cadeado se manteve firme, mas ela se arrebentou e eu entrei.

Diferente da última vez em que lá estive, subi mais do que depressa os degraus da escada da torre e alcancei a plataforma. A torre inteira parecia tremer diante do lamber agressivo das ondas. O navio, dali, parecia ainda maior, assim como o perigo que o conduzia. Mesmo com a visão dificultada, percebi ser um navio antigo, tais quais os contratorpedeiros japoneses da Primeira Guerra Mundial. No convés não havia ninguém, assim como não havia sinal de iluminação ou de vida em parte alguma na superfície da embarcação, que mantinha o curso em rumo de colisão com os recifes e as rochas.

Mesmo sem nunca ter operado um farol, na tentativa de atrasar o tempo, desci novamente e ousei acionar os botões, interruptores e pequenas alavancas do painel até conseguir emitir os aguardados lampejos brancos e vermelhos do aparelho, além dos sinais sonoros. Milagrosamente, consegui!

Voltei à plataforma e de lá busquei atento por qualquer movimento do navio que me confirmasse terem percebido o sinal luminoso. De repente, o mar, diante dele, começou a se abrir. A embarcação pôs-se a descer, como se em rampa, em direção ao fundo, sendo aos poucos tomada e coberta pelas ondas até desaparecer por inteiro. Foi quando a chuva e os ventos cessaram. As nuvens dissiparam no céu e uma enorme lua surgia totalmente indiferente a tudo aquilo que eu assistira. Seria apenas um delírio? Uma ilusão? Aquilo realmente acontecera?

Decidi voltar ao hotel. Contudo, passando pela saleta de Zacarias, dei pela parede e seu amontoado funesto de relógios que me assombraram à noite e me trouxeram ali. Para o meu espanto, entre eles, em um prego velho, pendia o meu relógio, estranhamente parado no horário em que lá estive pela primeira vez. Fixado a ele, um bilhete com letras garranchudas: “O mundo acaba aqui.”

Senti minhas pernas falharem e ajoelhei-me. Uma voz, como a que ouvimos em conchas, tomou-me os ouvidos. Tive a certeza de que eu não poderia mais sair dali. O farol, conforme a voz, havia me escolhido. Não era Zacarias, mas seria eu, o último faroleiro da África.



Fotos: Raymundo Netto (2011)





 

sábado, 4 de junho de 2022

"Chiclete com Banana", uma antologia antológica


Em outubro de 1985, com ares da “Nova república”, surgia a revista de humor underground Chiclete com Banana, um sucesso inquietante que chegou a vender cerca de 3 milhões de exemplares em suas 24 edições (a última em novembro de 1990) por todo o país e talvez até em Vênus (o planeta, e não a camisa).

Eu tinha 18 anos, havia há pouco ingressado na faculdade (Fisioterapia), e apesar de ler esporadicamente uma coisa ali e acolá que saía nos jornais (no “Ilustrada” da Folha de S. Paulo, por exemplo) ou em pequenas coletâneas, respirando formóis da Ana(tomia) e nas fileiras do movimento estudantil, só viria conhecer a revista em si muito mais tarde, juntamente com a Animal: feio, forte e formal, Lúcifer, Striptiras, Piratas do Tietê, Níquel Náusea e as coletâneas geniais de Calvin & Haroldo, entre tantas outras.

De resto, guardo essa coleção/antologia lançada em 2007 (e umas 10 a 15 edições originais), que traz alguns dos melhores momentos da produção desses sempre heroicos quadrinistas brasileiros em 16 edições (tenho apenas 8).

No editorial da revista (ou seria gibi?), Angeli declarava o seu objetivo: “Queremos apenas beliscar a bunda do ser humano para ver se a besta acorda.”

Irreverentes, criativos, inigualáveis, iconoclastas e demolidores eram os “titios” da Chiclete com Banana: Angeli (o grande e original líder dessa bagunça toda), Laerte, Luiz Gê, Fernando Gonsales, Edi Campana, Rui Resenha, Cacá Rosset, Christiane Tricerri, Toninho Mendes, Gonçalo Júnior, Paulo Caruso, Sérgio Machado, Glauco Mattoso, Marcatti, Furio Lonza e blá-blá-blá.

Ali, cabia de tudo, quadrinhos, resenhas, fotonovelas, charges, entrevistas (fictícias ou não), gurus, punks, hippies, junkies, revolucionários, sexo, drogas, rock’n’roll, cultura pop, solidão, política (e podridão) e o mais ridículo que poderia existir na sociedade e caber no olhar desses criadores.

Não há dúvida de que esse legado Chiclete com Banana, e não aquele outro que precisava de trios elétricos e encheu os bolsos do BEL vil metal, foi, de fato, revolucionário, delirante e transgressor, apesar de ter sofrido da mesma anemia pecuniária infinita que a arte e acultura brasileira traz em seus genes.

Viva a cultura da liseira (ou a liseira da Cultura?)