quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"Quando o Amor é de Graça VIII: História de não se Dar Passo", crônica de Raymundo Netto para O POVO (28.12)


  Moral da História: a vida é o exercício do perder!
Essa fábula ao inverso nada mais é do que a minha tese de pós-torturado da faculdade da vida, na qual nem pedi a inscrição, mas onde tenho cadeiras obrigatórias desde a primeira tapa, e onde jurei: até a morte hei de viver!
Pois sim, que não acreditem em mim, mas é mesmo a vida, tão querida ad respirata, dentre as tantas coisas que desaprendi, um exercício de perdas. Desde a nascença, nada nos é tão certo quanto a perda, cosida, pontilhadamente, até de um dia perder, irreparavelmente, a própria vida. Vai-se infância, saúde, amores, amigos, cabelos e, dolorosamente, os dentes, tudo se vai e, acreditem pelamordedeus, rapidamente num cadinho.
Nos meus 40 anos, já perdi tanta coisa, deixei tanto para trás, nem vale a pena o sofrer por isso... Ciente da prática de perdas, tenho desapegado franciscanamente, exercitado ao máximo, a ponto de, às vezes, ficar me rindo da ausência do peso das tantas coisas que não tenho... Sempre disse: Posso perder tudo, menos as pessoas... E as tenho perdido mesmo assim, aqui e ali, sem jeito.
Por que é charmoso e chama a atenção, vez ou outra grito a todo pulmão: “Desisto!”, mas continuo insistindo nas mesmas burradas a perguntar-me por que as coisas não me hão de nunca dar certo. Chego a ter dó de mim, um dó em si tão grande de fazer choro, não fora eu um nordestino, cem por cento negro, um forte Xunembó, caucásio-brasileiro, sem carteira assinada, nem dinheiro no banco, sem parentes importantes e nascido embaixo de fogos de São Pedro.
É quando me lembro da passagem literária, essa de Queiroz, d’Os Maias, em seu último capítulo, quando Carlos e o João da Ega, numa conversa descontraída de meio da rua, conceituam os românticos de “indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...” e resumem: “não vale a pena viver!” Explicam inda mais: “Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra, porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.” Aconselham: “Não saia deste passinho lento, prudente, correto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.” Os dois fanfarrões estavam convictos da descoberta da fórmula do mais seguro viver: “não fazer um esforço, nem correr com ânsia para coisa alguma... Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...”
Foi quando avistaram, ao longe, uma carruagem. Atrasados que estavam, entreolharam-se e “os dois amigos romperam a CORRER desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia”.
E é assim, meus amigos, que corremos quando temos que correr — a vida não espera —, mas das vezes temos que parar um pouco e apenas olhar o movimento das ruas, encantar-nos com as pessoas que nunca víamos chegar, ouvir histórias demorosas com amigos, arriscar novos pratos, novos sons, tomar banho de chuva e de sol, nunca dizer nunca nem sempre, pensar menos no passado e no futuro, viver mais o presente, ganhar o mundo, não pentear sempre os cabelos, nem fazer sempre a barba, trocar a cueca sempre é bom, mas, acima de tudo isso, fazer as pazes com a gente mesmo, não nos cobrarmos tanto e dar-nos a pequena chance de não nos perdermos, a não ser de amor.
Feliz Dois Mil e Doces para todos.

sábado, 24 de dezembro de 2011

"Integraciones", de Pablo Neruda



Después de todo te amaré
Como si fuera siempre antes
Como si de tanto esperar
Sin que te viera ni llegaras
Estuvieras eternamente
Respirando cerca de mí.

Cerca de mí con tus costumbres
Con tu color y tu guitarra
Como están juntos los países
En las lecciones escolares
Y dos comarcas se confunden
Y hay un río cerca de un río
Y dos volcanes crecen juntos.

Cerca de ti es cerca de mí
Y lejos de todo es tu ausencia
Y es color de arcilla la luna
En la noche del terremoto
Cuando en el terror de la tierra
Se juntan las raíces
Y se oye sonar el silencio
Con la música del espanto.
El miedo es también un camino.
Y entre sus piedras pavorosas
Puede marchar con cuatro pies
Y cuatro labios, la ternura.

Porque sin salir del presente
Que es un anillo delicado
Tocamos la arena de ayer
Y en el mar enseña el amor
Un arrebato repetido.

PS: sou obrigado a publicar esse texto em espanhol, porque com a sua tradução ele pode até ganhar "significado", mas perde a beleza da palavra, e hoje não estou dispensando belezas de jeito nenhum...

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

"Traição", conto de Raymundo Netto para O POVO (14.12)



Gedeão incomodava-se. Passasse à calçada, a vizinhança logo o apontava olhos censurosos. Era um desgraçado, sabiam mais do que ele próprio. Sabiam sempre mais, de não entenderem como haveria de não saber de nada. Pois sim, a sua mulher o traía às ventas e ele nada! Como poderia?
Já havia de telefonemas anônimos. Bilhetes de solidária maldade lhe chegavam. Os colegas e mesmo os familiares mais próximos, com vexame, insinuavam desconfianças... Era de tão claro, mas Gedeão parecia receber tudo com a naturalidade de um Jó, incompreensível ao geral pensamento humano e, ademais, masculino.
Diante da porta da casa, torcendo a chave, a curiosidade de uma rua despontava aos ouvidos: haveria ali outro alguém? seria daquele dia a desforra? falaria à sonsa da mulher as verdades? surraria aquela vagabunda? acabaria dali, de vez, a pouca vergonha?
O silêncio frustrante de um nada, acontecia.
Naquele dia, entretanto, após minutos, saía ela, a esposa jovem e imperdoavelmente linda, pela mesma calçada, acompanhada de estranho. A lágrima descia única e atrevida à face, a luzir do suor vertido no calor da hora. O homem ao lado nem não tinha cor. Fosse outra, dignaria vaia, mas ela, não, era diferente. Temiam-na. No vento de sua passagem, correram todos à janela da casa. Gedeão, magro ao paletó, cruzava os dedos nos cabelos da cabeça reclinada. “O desespero corroía o peito”, pensavam todos a suspirarem dós de a sua inocência. Homem estudado, embora simples e apaixonado, trouxera aquela moça inda adolescente, virgem parecia, do interior, mal sabendo as palavras de boca. Deu-lhe nome, casa, comida. E agora, era de pagar esse preço. Por tanto a enganar olhos e ouvidos, a vadia aproveitou-se.
Como tudo na vida, menos na morte, o tempo passou. Gedeão, acolhido com disfarce generoso pela vizinhança, encontrou breve outra mulher. Esta, filha única da vizinha mais cruel algoz de sua outrora companheira. Via na filha a redenção daquele corno, pois nela o exemplo quase litúrgico de virtude e fidelidade.
Gedeão casara assim em festa de rua. Nunca mais que ficara só. A sogra, entretanto, não deixava o casal esquecer a outra. Sempre a relembrar de seus pecados e a ostentar a compensação na excelente escolha a remir o seu passado.
Foi-se a novidade. Gedeão atravessava a calçada, incomodado. Era de um encabulo só. Olhos demais, palavras demais, amigos demais e algo pedia-lhe a vida. A esposa já percebia. Acolhendo-o em seus braços, buscava chegar à sua dor, preencher-lhe o vazio de seu coração choroso.
E foi numa noite que Gedeão abriu, com sorriso, a porta da alcova, e apresentou à mulher um homem sem cor, e ela, compreensiva em seu sublime e devoto amor, abriu os braços, como numa cruz, para o seu mundo.

Contato: raymundo.netto@uol.com.br

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Lançamento IMPERDÍVEL: "De Clóvis para Amélia", de José Luís Lira (9.12)


De Clóvis para Amélia
— correspondência inédita de Clóvis Bevilaqua para a escritora e esposa Amélia de Freitas Bevilaqua —
de José Luís Lira (org)

Data: 9 de dezembro de 2011 (sexta-feira)
Horário: 18h30min
Local: Academia Cearense de Letras (Rua do Rosário, 1, Centro)
Apresentação da Obra e do Autor: Cid Sabóia de Carvalho
Participação especial: Cecília Bevilaqua, neta do casal.

Sobre a Obra: Valioso e originalíssimo acervo de correspondência de Clóvis Bevilaqua (Viçosa do Ceará, 1859 – Rio de Janeiro, 1944), um dos maiores juristas brasileiros, para a escritora e esposa Amélia de Freitas Bevilaqua, com quem casou em 1884, no Recife, e com quem teve cinco filhas.
Em 1930, apresentou a sua mulher, Amélia de Freitas Bevilaqua, como candidata à cadeira da Academia Brasileira de Letras, da qual era membro e fundador. A proposta foi analisada pelos seus pares imortais que resolveram interpretar o estatuto da academia como excluindo as mulheres da mesma. Clóvis e sua esposa ficaram ressentidos da posição de seus colegas. Depois do ocorrido, nunca mais Clóvis voltou à ABL.
O livro, cuidadosamente organizado por José Luís Lira, traz fac-similares das cartas, inclusive com desenhos de Clóvis feitos para a mulher amada e fotos do casal ninca antes vista pelo público em geral. É imperdível.

Sobre o Autor: José Luís Lira nasceu no Sitio Correios, Guaraciaba do Norte, Ceará. Filho de agricultores, conhece as primeiras letras em uma sala de aula improvisada na cozinha da casa de sua tia. Ingressou no curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, onde cursou um semestre. Voltou ao Ceará onde prosseguiu os estudos e os conclui na Universidade de Fortaleza – UNIFOR.
Em 1999, publica Ontem Campo Grande, hoje Guaraciaba do Norte, análise histórica sobre a sua cidade natal. No mesmo ano, o autor lança O levita do Senhor – A vida de Mons. Antonino Soares. Em 2003, na Academia Brasileira de Letras e em Fortaleza, lança No alpendre com Rachel: ensaio biográfico sobre Rachel de Queiroz. Ainda em 2003, publicou O Poeta do Ceará: Arthur Eduardo Benevides e Um Bispo da Igreja: Dom José Bezerra Coutinho.
Em 2005, funda a Academia Brasileira de Hagiologia, e pelas edições UVA, lança Academia Brasileira de Hagiologia: Breve Histórico, um resumo histórico sobre a fundação da citada academia e estudos acerca da santidade no catolicismo. Pela Academia lança, em 2006, Candidatos ao altar, com breves biografias sobre os santos candidatos à beatificação pelo Vaticano. Autor premiado, escreveu também a aclamada biografia A Saga de Gerardo: um Mello Mourão e o livro de poesias Algum Poema?, dentre outros.
Atualmente, José Luis Lira é professor efetivo do Curso de Direito da UVA e Chefe de Gabinete do Reitor.


Edição
Academia Sobralense de Estudos e Letras
Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)

Apoio Cultural
Academia Cearense de Letras
Faculdade Metropolitana de Fortaleza – FAMETRO
Universidade Federal do Ceará

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O Sertão Kafkiano de Pedro Salgueiro: "Inimigos", por Alfredo Monte



Resenha publicada originalmente, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em 25 de outubro de 2011, e no blogue do autor: Monte de Leituras

“Foi assim de repente, quando menos se esperava (em plena tarde morna) o sol tornou-se pálido, para sumir logo em seguida. O povo ainda não havia acabado de se assustar-ouvimos no meio da escuridão um bater de asas atravessando o vilarejo, como se um bando de pássaros saísse em revoada. Um pouco antes de os moradores da vila abandonarem suas casas em grande alvoroço, os bichos já alarmavam o acontecido: galinhas cacarejavam, galos cantavam em desespero, porcos fugiam pelas ruas atropelando as pessoas…
    O relógio do mundo parecia ter sido alterado, os sons se intensificavam mais e mais; e não havia quem não gritasse ou corresse de um lado para o outro. Mulheres procuravam seus maridos, mães chamavam pelos filhos, ninguém se entendia.
    Alguém com voz desesperada anunciou  o fim do mundo: suas palavras ecoaram  em outras bocas, e o que se ouviu depois foi um desfiar de rezas e choros. Os mais agitados gritavam o nome de Deus, pedindo ajuda; outros sussurravam um padre-nosso em meio  ao soluço intenso. A maioria andava de um canto a outro feito barata tonta.
    (Estávamos apreensivos desde a semana anterior ao acontecimento, quando a chegada de três grupos de forasteiros fez com que todos saíssem para as ruas e corressem, admirados, atrás dos automóveis, que pela primeira vez cortavam a poeira de nossas ruas. Das três equipes somente uma falava de maneira compreensível, as outras duas apenas trocavam entre si uns mungangos. De início se instalavam na praça da matriz, armaram barracas de lona e começaram a abrir grandes caixas trazidas nos automóveis [...] Com uma semana todos os aparelhos já estavam montados, grandes canhões apontavam, de diversos cantos da praça, para o céu. Os mais entendidos da vila, fingindo compreender as explicações dos invasores, tentavam acalmar a maioria, que permanecia apreensiva com tudo aquilo. Antes que os moradores dos povoados se acostumassem com os visitantes e suas extraordinárias maquinas de apontar para o céu, o mundo escureceu pela primeira vez às três da tarde.)
    Mas também de repente, como tinha escurecido, começou a clarear [...] Na praça, os estrangeiros davam pulos de alegria e estouravam garrafas de espuma [...] os que falavam melhor tentaram, em vão, explicar aos curiosos o que havia acontecido [...]  porém não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão.
    No mesmo dia desmontaram os aparelhos e foram embora…”
             (de A passagem do dragão, de Pedro Salgueiro)

“Na verdade, antes de mim, jamais se ouviu um relato confiável a respeito desses supostos inimigos…”
             (de A grande fogueira, idem)

   Em 2006, em Dos Valores do Inimigo, Pedro Salgueiro fez uma seleção entre os textos curtos que publicara até então (nas coletâneas O Peso do Morto, O Espantalho e Brincar com Armas). O conjunto assinalava um escritor de admirável sobriedade e controle da narração, sintético e cheio de lampejos brilhantes, mas traia igualmente certa timidez narrativa (que se sobrepunha ao talento imaginativo), poucas vezes indo até o fim do que sugeria com suas histórias. O adjetivo “curto” para os textos era tanto índice de qualidade quanto de limitação[1].
    Essa oportunidade de rever seu percurso anterior permite valorizar ainda mais o salto que Inimigos, uma das obras de ficção mais notáveis publicadas no Brasil dos últimos anos, representa. Salgueiro utilizou alguns dos incluídos na antologia citada, juntando-os a outros (num total de 20) de altíssimo nível, fazendo um aliciante misto de romance e de conto e nos propondo uma idéia de sertão completamente desvinculada de quaisquer clichês ou personagens “típicos”.
    As histórias se referem à Papaconha, povoado cuja inquietante característica é não ser fixo. Segundo o que corre no sertão, seus habitantes são os “inimigos” que estão sempre de mudança, aproximando-se, e podem chegar e invadir a região (um processo que leva gerações): “O boato corrente na região dava conta da existência de um povo estranho, que pretendia invadir e saquear todos os lugarejos, escravizar seus homens, aproveitar-se de suas mulheres e comer suas criancinhas. Mas a distância que os separava era tanta que, se um bando deles se dispusesse a andar até os vilarejos, certamente morreria no caminho, e as poucas crianças que porventura os acompanhassem chegariam tão velhas que nem forças teriam para contar as histórias do percurso”. Por isso, dissemina-se um sentimento de expectativa, de angústia, de fim de mundo, “esse medo que nos consome desde o começo dos tempos”.
    Há quem acredite (como o narrador de Um Batedor) que infiltrados de Papaconha ocultem-se entre os moradores locais - os “inimigos” podem estar entre quem menos se espera, como a esposa de  Fronteira (o marido “cavou trincheiras no jardim e montou um observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal”, nem se dando conta de que o adversário “se infiltrara há muito tempo em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a sua confiança. Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas do fogo).
   Há quem se sinta forasteiro e “inimigo” como o narrador de Descoberta, ou nostálgico, como o de Madrugada (um daqueles textos anteriores, nos quais a intuição certeira do grande escritor cearense identificou as marcas desse universo de valores em choque, sem que possamos decidir qual é o lado “certo”); há quem se perca pelo mundo e acabe em povoados que podem ter a marca de Papaconha, e de qualquer forma são quase experiências com alienígenas, como os narradores de Aleine, A grande aventura e Perdido.
    O peculiaríssimo universo sertanejo de Pedro Salgueiro, a ambivalente tensão que estabelece entre os pólos do atraso e da modernização, nos remete às parábolas e fábulas de Kafka como, por exemplo, Uma mensagem imperial ou Um médico rural[2], um mundo onde as pegadas morais se apagam, as certezas se dissolvem, a realidade se torna ameaçadora (e muitas vezes cômica), como se também nos perdêssemos por trilhas inesperadas, sem que haja um único elemento sobrenatural, como experimenta o marido atrás da esposa desaparecida: De repente, um medo tomou conta de mim… e disparei na mais apressada carreira de que as minhas pernas foram capazes… Corri a madrugada inteira, subi e desci serras, encontrei nova estrada—sempre me afastando. Hoje não me arrisco a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que - enquanto eu a procuro - muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela”. Tudo e todos se tornam estranhos e absurdos. E a linguagem brilha,  absolutamente irretocável, nessa obra-prima (acho que já dá para arriscar essa avaliação ousada) da nossa literatura atual.

[1]   Já não tenho mais essa opinião.  A leitura de Pedro Salgueiro, aliás, está me demonstrando mais uma vez como é interessante e absorvente acompanhar a “evolução”, por assim dizer, de um determinado universo criador. No momento em que escrevi a espinha dorsal do texto acima, não havia lido nem O peso do morto nem Brincar com armas, cuja leitura modificou consideravelmente os dados. A obra de Salgueiro é um pouco como a sua cidade de Papaconha: nunca fixa, sempre movente, e inquietante.

[2]  Discordo, nesse ponto, de  Miguel Sanches Neto, o qual escreveu um simpático posfácio à edição da 7 Letras (Coleção Rocinante, 2007), em que afirma: “Se fosse para eleger um parentesco literário, poderíamos dizer que a vila dos contos e a cidade móvel chamada Papaconha [...] são desdobramentos das orbes fictícias de Italo Calvino (As cidades invisíveis), o que significa dizer que elas guardam as mesmas latitudes imaginárias, funcionando mais como  metáforas do que como pontos em um mapa.” A meu ver, isso passa longe do coração do universo de Salgueiro, uma vez que—sem ser menos profundo ou complexo—o universo de Calvino tem uma benignidade, uma deliberada leveza, uma transparência, muito pouco afins de Papaconha e das vilas que aparecem em Inimigos, mais próximas de Kafka, de José J. Veiga e Juan Rulfo, com um sentido mais trágico e “pesado” da existência.

"Hábitos do ofício, brincadeiras testosterônicas e boemia 1: happy hour de bancários", de Manuel Soares Bulcão Neto


"Angústia" de David Alfaro Siqueiros




“Não leve problemas do trabalho para casa”, determina o bom senso. Mas… e quanto a nós, escritores, que trabalhamos em casa, sob – como se costuma dizer – os “tormentos da criação”? E sem ganhar dinheiro?! Por isso que minha mulher (inteligente e pragmática como todas as advogadas) pediu o divórcio. Decisão sensata.
Quanto aos “hábitos” do ofício, ora, passamos a maior parte do nosso tempo de vigília trabalhando. Tão condicionados ficamos que impossível não levá-los para onde quer que vamos.
A propósito, lembro-me da época em que fui bancário (escriturário do extinto BEC). Sexta-feira à noite, relaxávamos eu e outros – todos, menos eu, estudantes ou formados em Contabilidade – pelos bares da Avenida Tristão Gonçalves. Pois, bêbados ou não, em qualquer conversa manifestavam sua “visão contábil do mundo”. Exemplo: à luz de um globo colorido e giratório, contei a um deles que, logo após o big bang, igual era a quantidade de matéria e de antimatéria – sim, meu papo sempre foi teórico, abstrato e chatíssimo –; que houve um processo de aniquilamento mútuo, restando, como refugo, um oceano de fótons e ínfima quantidade de matéria: esta de que nós somos feitos. Meu insólito interlocutor, com ar de espanto, disse: “Quer dizer que somos parte do patrimônio líquido do universo!”.
Noutra dessas “noites no século”, o mais feio e desengonçado deles – do tipo que, por mais caríssimas que sejam as roupas de griffe que vista, em vez de elegante fica só “enfeitado” – afirmou, jactando-se, estar namorando uma mulher casada. O único que acreditou passou-lhe um sermão: “Essa senhora” – nestes termos falou – “é um crédito indevidamente lançado no livro-caixa da sua vida. Estorne-a!”
Havia, ainda, o poeta da turma. Romântico – sim, empacou no romantismo –, costumava afetar profunda introspecção e melancolia (ou, como ele preferia chamar, tedium vitae), principalmente na frente de mulheres, entre as quais escolhia, para namorar, a mais “bandida”, só para ser corno (outra vez, sempre) o mais rápido possível, curtir aos prantos a dor de cotovelo e ter inspiração para escrever poemas — versos que recitava para outra musa “com cara de safada” num eterno retorno de dar piedade. Por sinal, ele lembrava muito aquele poema Elegia desesperada, em que Vinicius de Moraes roga a Deus que tenha piedade das meninas feiosas que, na adolescência, adquirem buço, dos que andam de ônibus, dos que empobreceram, dos práticos de farmácia que queriam mesmo ser médicos, dos ficcionistas frustrados que, para compensar, tornam-se ensaístas (poxa, o Vinicius foi muito cruel!) e, também, “muita (sic) piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta…”.
Pois, também bacharel em Contabilidade, às vezes, vagueando nas profundezas abissais do seu espírito, levantava-se da mesa, saía do bar e, na calçada (um cigarro no canto da boca, parecendo o Bogart) contemplava o firmamento infinito — contemplação à maneira contábil; isto é, ficava a “contar” as estrelas e com o cuidado de não deixar passar nenhuma célula falsa: “Uma, duas, três, quatro… não, aquilo é um avião… quatro, cinco, seis, sete…”.
Seu insight poético mais hilário e criativo, porém, foi na vez em que, agraciado não com um chifrezinho qualquer, mas com uma galhada do já extinto alce canadense (a maior que jaz registrada nos anais da zoologia), abraçou-me chorando e, entre soluços, desabafou: “Bulcão, minha autoestima nunca esteve com o passivo tão a descoberto!”. “Ó que bela metáfora!”, foi o que me saiu da boca. Ele, apesar do choro, abriu leve sorriso. “Obrigado…”, disse-me, agradecendo o elogio.
E por falar em poetas, estes, tanto os profissionais (isto é, os raríssimos que vivem do seu ofício literário) como os permanentemente desempregados (em cada esquina existem pelo menos doze) mantêm o cérebro operando, o tempo todo, no modo mágico-poético. Em tudo vêem metáforas e metonímias — e se rimarem, melhor. Um mundo, portanto, literalmente onírico e de tal modo fantástico que, estando o poeta em saias justas ou situações-limites, de seus atos e palavras podem surgir imagens as mais inusitadas e de uma criatividade que somente os deuses, “quando ainda crianças”, são capazes de manifestar. Conheço um caso bem ilustrativo. Não sei se devo contá-lo… Vou!
Meu saudoso amigo Francisco Moreira Júnior (“Bigo”, entre os mais íntimos), poeta (um dos mais criativos que já conheci), nos episódios maníacos do seu transtorno bipolar, perdia o controle sobre as pulsões eróticas do id. Em consequência disso, flagrei-o, num recanto escuro do campus do Benfica, dando o maior amasso na garota com quem eu estava “ficando” (aviso que, na época, eu ainda era solteiro!). Pareciam dois animais!… Bem, na verdade não — pelo menos não conheço nenhum animal que faça aquilo. A menina, morta de vergonha, limpou as mãos na calcinha e as levou ao rosto. Quanto ao Moreira, disse-me ele a seguinte pérola:“Bulcão, pelo amor de Deus entenda tudo isso no sentido figurado!”

Manuel Soares Bulcão Neto para o blogue Arte do Conceito  http://artedoconceito.blogspot.com/

Lançamento "A Lei Maria da Penha em Cordel", de Tião Simpatia (6.12)

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Lançamento "Bom-Croulo", de Adolfo Caminha, pelo Armazém da Cultura (07.12)

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X Semana Paulo Freire no Museu do Ceará (7.12)


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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Lançamento "O Povo Fez Sua Santa", de Dellano Rios, no Museu do Ceará (7.12)

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Ganhador do Prêmio Literário para Autor (a) Cearense da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, categoria Prêmio Guilherme Studart, de Ensaio Sobre Tema Histórico/Cultural 

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Quando o Amor é de Graça VII: Felicidade por Trás de Muros", crônica de Raymundo Netto para O POVO (29.11)

Minha análise faço em mesas de bares ou restaurantes, mas não as dispenso, assim como não dispenso bons pares de orelhas, geral e exclusivamente de amigos, pessoas realmente queridas, pois quem me conhece sabe: só como com quem gosto. Assim, ser convidado para comer comigo é uma espécie de homenagem, da mesma forma que, por motivos outros, também não ser convidado pode ser outra.
Em uma macarrônica conversa com a biógrafa radialista Lílian Martins e com o poeta Madjer (com dois “Y” de destino), exerci o direito ao aluguel e pus a falar de tudo o quanto minha filosofia de bolso dispunha de céu e de terra — de mar não poderia, pois a Lílian tem alergia a tudo que dele provém, como sereias, lagartos gigantes, vagas incidentais e outras pancadas afins. O tema descambou para a busca eterna e frustra da felicidade.
Disse e repito: não estou nem aí para a felicidade. “Você não quer ser feliz? Todo mundo quer!” Pois é, não penso nisso. Pode até ser de um dia, tão feliz a encontrá-la sentada à minha calçada — quando tiver uma — e que tenha sorriso livre e brilho no olhar — e, sem querer abusar, um par de grossas pernas — já que não vejo graça nenhuma em pessoas de olhar embaçado e sorriso de empréstimos.
Mas não, eu mesmo não busco por isso. Se quiser, que me encontre ela numa das esquinas de ventos revéis que sigo sem medo ou dúvida, a procurar por nada e seguindo em frente no passo do coração desamado, pero encantado pela marcha de um tempo só meu a soprar-me todo o trilhar de uma minha vida.
Minha história sempre me foi de uma liberdade incômoda. Uma constante busca de dentro a sacudir de tudo para fora, mudando meu destino a cada ato, trazendo-me à vista personagens diversos curtidos, amados, contidos e deixados para trás em lamentos ecoados de retrovisores num difícil e possível exercício de perder quase que sempre.
Meu olhar de ver páginas em branco, sem carimbos e clichês, sem o ilusório deslumbramento de vitórias, sem fracassos irrepetíveis, sem respeito nenhum a opulências e vaidades, ferramentas de gente fraca, dissimulada e egoísta, tragadas pela lascívia cerebral. Desprezo as caricaturas de lustro e os pedintes empavonados que não me valem nada a frente daqueles que trago no peito como amigos, colhidos numa seleção tão segura de admiração e carinho a trazer-lhes sempre comigo, mesmo quando nas eternas noites caminhantes pareço-me estar perdidamente só.
Para trás, olho sempre, e demorosamente, de não me perder, a ruminar as páginas já coloridas, de gravá-las no peito, como fosse possível não esquecer jamais daquilo que janãomais existe.
Pensando bem, tudo o que quero é tão pouco... Felicidade nesse mundo, não creio. E, se existir, aconselho: devemos esquecê-la. Basta-nos SER. Quando nós conseguirmos ser nós mesmos, nos encontrarmos, fatalmente ela também nos encontrará, e se deitará conosco em estrelada noite de esfuzilante e perfeito amor.
Contato: raymundo.netto@uol.com.br


domingo, 27 de novembro de 2011

Lançamento "Os Guerreiros de Monte-Mor", de Nilto Maciel, na Livraria Cultura (1.12)


Os Guerreiros de Monte-Mor
(Armazém da Cultura)
de Nilto Maciel

Data: 1º de dezembro de 2011 (quinta-feira)
Horário: a partir das 19h
Local: Livraria Cultura (Av. Dom Luiz, 1010, Meireles)
Entrevista com o Autor: por Raymundo Netto, escritor.
Para contato com o Autor: niltomaciel@uol.com.br

Sobre a Obra de Nilto Maciel: Os Guerreiros de Monte-Mor, novela publicada pela primeira vez em 1988, pelo selo Contexto Jovem, de São Paulo, traz uma história divertidíssima, marcada pela ironia e a crítica aguda, além de um vocabulário e expressões de época e de costumes, características do texto de Nilto Maciel, um dos mais profícuos nomes da Literatura Cearense.
A saga quixotesca-macunaímica da família Cardoso, remanescente da tribo Jenipapo, iniciada por Antônio, grande revolucionário nativista — embora visto como excêntrico — que inspira seus descendentes a conspirarem contra o imperador, a autoridade portuguesa e a Igreja, numa denúncia revelada, em segundas intenções, do etnocídio pela opressão colonizadora portuguesa.
Antônio, índio criador de armas de guerras caseiras e enferrujadas, sempre a elaborar estratégias militares que, pensa, libertarão os jenipapos do domínio português, trama tudo em sua cabeça, em conversas demoradas com os animais da varanda, espantando galinhas, sonhando solitário com o sucesso do Regimento Cardoso, composto por ele o filho, ainda menino, o João, pequeno fazedor de buracos na terra em busca de minhocas, que, ao crescer, torna-se conhecido como contador de lorotas fantasiosas de príncipes, fadas e de outras lendas regionais. Mais tarde, após desilusões, João assume, ao lado do neto José e do demente índio xocó, Chico — seu até então “escudeiro”, formado nos campos de batalha do Cariri, e adestrador de uma infantaria de morcegos revestidos em armaduras de aço (arma secreta do Regimento) e de um bode, o velho Nazaréu, montaria militar do levante contra a vila Monte-Mor (nome antigo de Baturité, terra natal de Nilto) —, a proclamação da República Imperial dos Tapuios. A narrativa, a princípio não é linear. O tempo vai e volta numa costura bem feita a dominar o leitor curioso. João torna-se o personagem-eixo da narrativa que se desdobra mirabolante e desastrosamente num clima fantástico e humorado entre fatos da história do Siará Grande, como a chegada de D. João VI no Brasil, a Inconfidência Mineira, a Confederação do Equador, a tentativa de derrotar José de Alencar (o pai), de encontros com padre Verdeixa, dentre outros, e permitindo que o leitor participe das intermináveis e hilárias reuniões dos revolucionários nativistas onde se discutiam planos de dominação, patentes, nomes para o novo país, e até do primeiro golpe militar pré-revolucionário.
O Armazém da Cultura, ao publicar o imperdível Os Guerreiros de Monte-Mor, faz jus ao autor Nilto Maciel, destacando mais uma face de sua bibliografia, com certeza, tão instigante quanto muitas do melhor cenário da literatura brasileira.

Raymundo Netto

Sobre o Autor: NILTO MACIEL nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Cursou Direito na UFC. Em 1976, um dos criadores da revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 1977, onde deu início, em 1992, à publicação da Literatura: revista do escritor brasileiro, regressando a Fortaleza em 2002.
Entre os melhores contistas brasileiros, obteve primeiro lugar em vários concursos literários nacionais e estaduais. Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço: uma antologia do conto marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Participou de diversas coletâneas e antologias, entre elas: Quartas Histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa e Capitu Mandou Flores, ambas organizadas por Rinaldo de Fernandes, e “O Cravo Roxo do Diabo”: o conto fantástico no Ceará, organizado por Pedro Salgueiro.
O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela pelo cineasta Clébio Viriato Ribeiro, em 1993.
Publicou nos mais diversos gêneros literários e em diversas línguas (esperanto, italiano, espanhol e francês): Tempos de Mula Preta, Itinerário, Punhalzinho Cravado de Ódio, Os Guerreiros de Monte-Mor (a ser relançado em breve pelo Armazém da Cultura), As Insolentes Patas do Cão, A Guerra da Donzela, Carnavalha, Vasto Abismo, A Rosa Gótica, Pescoço de Girafa na Poeira, A Última Noite de Helena, A Leste da Morte, dentre outros. Como pesquisador do gênero CONTO, publicou: Panorama do Conto Cearense e Contistas do Ceará: d’A Quinzena ao CAOS Portátil.


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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Seminário Cabeças de Papel 3, no Cuca Che Guevara!



O que é o Seminário Cabeças de Papel 3?
É um evento de discussão, produção, troca de difusão de experiências artísticas e culturais envolvendo o universo de fanzines locais, nacionais e internacionais.

E as Oficinas, quais são?

1. Arte Urbana - Cartazes de Lambe-lambe - 9h/a (30 vagas)
Período: 30 nov e 01 e 02 dez - 14h às 17h
Apresenta as técnicas da pintura mural, através da criação de cartazes de rua, ensinando desde a preparação do desenho ao uso de materiais adequados.

2. Oficina de Fanzine: 9h/a (30 vagas)
Período: 30 nov e 01 e 02 dez - 14h às 17h
Confecciona fanzines. A oficina será uma oportunidade para registrar em zines as aventuras e andanças dos jovens pela cidade, através de textos, recortes, colagens, desenhos, fotografias etc.

3. Oficina de Registro e documentário - 9h/a (30 vagas)
Período: 30 nov e 01 e 02 dez - 14h às 17h
Ensina os princípios básicos de documentário, com cobertura do Seminário no Cabeças de Papel 3: "Um zine na mão e uma câmera na cabeça".
Pré-requisito: ter realizado algum curso de audiovisual.

4. Memória em Quadrinhos e Diário Gráfico - 9h/a (30 vagas)
Período: 30 nov e 01 e 02 dez - 14h às 17h
Capacita a prática de desenhos, com a produção de quadrinhos autobiográficos, como conteúdos dos diários gráficos criados.
Pré-requisito: Ter afinidade com a prática do desenho.

Para se inscrever em qualquer uma das oficinas acima, basta trazer a cópia do RG, cópia do comprovante de residência e ter entre 15 e 29 anos.

Caso você esteja acima da faixa etária, poderá participar das oficinas como ouvinte.

As vagas são limitadas!

CUCA Che Guevara
Av. Pres. Castelo Branco, 6417, Barra do Ceará - 60312.060

Contato:
Comunicação Popular
Instituto CUCA

(85) 3237 4223/ ramal 216

"O Mundo Coberto de Penas", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO


O sujeito vai envelhecendo e, crente de que a velhice por si só vai lhe dando sabedoria, passa a criar para si inúmeras (e inúteis) teoriazinhas. Uma delas, e das mais bestas, me assegura que os amigos e familiares se dividem em dois grupos distintos e opostos: O dos que adora o fim de ano – são os “puros de espírito”, os que tiveram uma infância feliz, os que sentem saudades de tudo (especialmente da meninice); estes mal veem chegar o novembro e já adquirem um estranho brilho nos olhos, riem (e choram) por qualquer coisa, ficam mais pacientes e ternos, passam a se preocupar com coisas bobas, como lavar o cachorro, fazer listas de presentes. Mas não só isso: revivem o ano todo de modo mais otimista: fazem balanços, estilam promessas, enfim, escrevem de letra vermelha na agenda frases edificantes que sugerem a si e ao mundo que se tornarão pessoas melhores e mais felizes. O segundo grupo detesta qualquer rito de passagem, seja ele religioso ou mesmo o da mera marca do calendário – são os de “almas pesadas”, os que carregam nos ombros o peso do mundo, os que têm aftas no coração: estes só veem interesses comerciais nas mil luzinhas de Natal em cada janela de subúrbio, apenas vislumbram hipocrisias nos cumprimentos risonhos e nos apertos de mão entre vizinhos e colegas de trabalho: repassam em suas mentes as infinitas mazelas do ano que passou, as inúmeras tristezas que carregam no coração, as matrículas do colégio dos filhos, o negrume que a luz deixa por trás de qualquer objeto.

E para tornar mais baratas as muitas teoriazinhas que me povoam a desocupada cabeça chego rapidamente à conclusão de que o mundo se divide entre os otimistas e os pessimistas.

***

Entre os bobões românticos e os chatos realistas.

***

Entre os Fabianos e as Sinhás Vitórias. Entre as Cachorras Baleias e os Soldados Amarelos*.


* Referências a personagens do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que inicialmente se chamaria O Mundo Coberto de Penas.