terça-feira, 22 de junho de 2010

"Eu Sou Contra José de Alencar!", de Raymundo Netto (reprise)


Entendo que o título deste breve artigo possa causar estranheza no leitor, mas não se preocupe que explicarei, rapidamente, a razão de tal rompante. Caso, mesmo após a devida justificativa, não me perdoe, paciência...


Na verdade, eu sou é contra a mudança do nome do bairro Alagadiço Novo para José de Alencar. Ah, você não sabia? Pois sim, li no jornal que a Câmara Municipal, dia 26 de dezembro de 2007, aprovou a mudança, por reivindicação da comunidade (falou-se em 800 assinaturas), da denominação Alagadiço Novo para José de Alencar, alegando ser o bairro de nascimento do escritor, onde ainda hoje se ergue sua casa. Concordo que a Casa de José de Alencar seja um equipamento de grande valor cultural e patrimonial, até porque foi lá, no sítio Alagadiço Novo, que morou o Senador Alencar (que, além de tudo, ainda ocupou o cargo de Presidente da Província), nasceu seu filho, o bom José, e onde implantou-se o primeiro engenho a vapor no Ceará (1836). Sim, isso tudo aconteceu no Sítio Alagadiço Novo.


Não desmereço a homenagem ao escritor, mas, confesso, o nome Alagadiço Novo era uma homenagem ainda mais completa e, historicamente, mais significativa.


Li também que a iniciativa partiu do humorista João Neto que, a meu ver, não foi muito feliz na ideia. Aliás, eu nem vejo nada de “pejorativo” na antiga denominação. Acho até poética e “romântica”, viu, João?


Lamento muito que, devido a essas “iniciativas”, tenhamos perdido a nossa rua da Alegria, a do Cajueiro, a das Flores, a das Belas e outras tão bucolicamente denominadas por nossos antepassados. Com essas perdas, infelizmente, se vão também os registros de memória!


Penso que o José de Alencar não precisa disso e que, seguindo a mesma lógica, daqui a alguns anos, alguém poderá cismar que esse nome de Fortaleza também deva ser trocado para “Alencarina”... Eu, desde já, sou contra!

OBSERVATÓRIO: Concorrência do Prêmio Literário para Autor(a) Cearense


O Prêmio Literário para Autor (a) Cearense da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, maior soma destinada à Literatura no Brasil, encontra-se em fase de conclusão de seu processo de Análise e Seleção. A primeira etapa (habilitação técnica) está concluída e a segunda (habilitação jurídica) concluirá esta semana. Encerradas as atividades de ambas as subcomissões, se dará início ao cálculo da pontuação final e, diante do resultado deste, a lista de classificação. De acordo com a Comissão (Subcomissões de Habilitação Técnica e Jurídica), é provável que até a primeira quinzena de julho se tenha o resultado classificatório final.

A comissão de seleção do Edital é composta por 15 membros, escolhidos conforme sua especificidade profissional, incluindo críticos literários, professores universitários, personalidades destacadas no meio literário e no mercado editorial convidados pelo Secretário Prof. Auto Filho.

Foram inscritos, ao todo, 317 (trezentos e dezessete) projetos, assim distribuídos:

1.1. Caetano Ximenes Aragão/Poesia - 67

1.2. Rachel de Queiroz/Literatura Infantil - 45

1.3. Edigar de Alencar/Revista Literária - 4

1.4. J. Ribeiro/Livro/Álbum de Arte - 10

1.5. Moreira Campos/Contos - 31

1.6. Eduardo Campos/Dramaturgia - 13

1.7. Jáder de Carvalho/Romance - 13

1.8. Luiz Sá/Quadrinhos - 10

1.9. Guilherme Studart/Ensaio sobre Tema Cultural - 33

1.10. Braga Montenegro/Ensaio/Crítica Literária - 9

1.11. Alberto Porfírio/Cordel - 8

1.12. Manoel Coelho Raposo/Selo Editorial - 4

1.13. Otacílio de Azevedo/Reedição - 47

1.14. Milton Dias/Crônica/Memória - 23

Esperamos que em breve possamos divulgar o resultado do Prêmio

para os nossos leitores do AlmanaCULTURA.


domingo, 20 de junho de 2010

"Quadrix: aventura e ficção" em HQ CEARENSE!

Clique na imagem para ampliar! (hummmm...)


Chegou a mim a Quadrix: aventura e ficção um bom exemplo de iniciativa em quadrinhos, pasmem, no Ceará.

Publicação bimestral da Quadrix Comics, divisão de História em Quadrinhos da Quadrix (será que pensam em publicar outros gêneros?), tem como direção o editor Alex Magnos (autor do álbum A Montanha Negra e o Pássaro de Fogo) e o editor de arte Anilton Freires.

Em janeiro de 2010 foi lançada sua nº.2, com estampa de "Alexandra", na capa de Lucas Ramos, e, na terceira capa, "Andread, a power girl" (às vezes penso que os quadrinhistas são meio tarados...) .

De entrada, Magnos fala em seu latino editorial "Nihil fieri non potest nobiscum!"sobre uma "maldição" que paira sobre a produção dos quadrinhos brasileiros (agora senti até um arrepio...) e que lhes assegura a falência antes mesmo do segundo número. Causo, parece, superado agora pela Quadrix que, ufana, "levanta as canecas num uníssono heil!"

Depois, seguem-se "Censurado", terror de Wislon Vieira e Aloísio de Castro (que está de parabéns pelo traço e arte-final, roteiro bem do gênero, mas que carecia de melhor revisão), "Carne", ficção científica de Gian Danton, Solange Pitombeira e Elson Thomasi, "Balkhan, o arauto da morte, ficção científica de Leonardo Laino (uma mistura de Wolverine com Conan, de onde não entendi a exclamação "pelos grandes seios da deusa Whoranna!"), "Uma Nova Vida", fantasia de Carlos Henry e Romo (com texto poético), "De Pai para Filho", ficção científica de Dellano Rios e Fred Macedo (parabéns pelo texto, roteiro e desenho muito bons, a melhor peça da revista) e, finalmente, ela, a "Alexandra", ficção erótica de Camilo Manzoni e Di Amorim (desenho bom, entretanto, o texto carece de revisão e de certo primor).

Tenho acompanhado a evolução do trabalho de quadrinhistas locais. Os temas, geralmente, giram em torno dos publicados na Quadrix (eróticos, ficções científicas, fantásticos etc.). Vi surgir muitos fanzines horrorosos, de extremo mau gosto, mas sempre justificados pela falta de recursos. Creio que a visão editorial faz a diferença. Acho que os editores da Quadrix, que não conheço pessoalmente, nos apontam a possibilidade de algo novo que surge. Espero que aprendam a lidar e desenvolver o lado econômico do negócio e que, com isso, consigam superar as dificuldades usuais de sustentabilidade (as tais "maldições") e continuem a publicar cada vez mais revistas de qualidade.

Mexam-se, quadrinhistas!

Quem quiser saber mais da Quadrix, comprar e/ou participar do projeto, seguem abaixo os contatos:

www.editoraquadrix.com.br
vendas@editoraquadrix.com.br
contato@editoraquadrix.com.br

Cartas: rua São Sebastião, 640, Pajuçara, Maracanaú, Ceará CEP: 61932-250

sexta-feira, 18 de junho de 2010

"O Escritor de Aluguel", crônica reportagem de Raymundo Netto para O POVO


http://digital.opovo.com.br/reader2/

1º de junho de 2010 – 8h p.M.

Dá-se a noite. Um projétil disparado adianta-se pela janela desgradilhada de meu apartamento. Corro na esperança de ver ainda, mesmo em fuga, o vândalo. Antes, o guincho de pneus e mais nada. Ninguém. Nem sinal. Calçadas vazias, portões cerrados, tristes iluminantes empalidecem a avenida movimentada de expedições.


Volto à mesa e encontro o petrecho sob a cadeira: uma pedra envolvida por uma folha de papel. Mais clichê que isso, só mesmo a “passione” de um autor global. Em diligência, examinei a pedra, uma vagabundinha dessas que nem para fins de peso de papel serve... Desfiz as amassaduras revelando uma mensagem curta silabada em recortes de revistas: “PREC i Só FalAR com vC imediA tAmente! Não FALE nada SOB Re isso com NINGUÉM nEM PENSE em não DAR as CARAS!”

Logo mais um endereço, um horário, uma ameaça recidiva: “NE m PENSE!


Engano?, brincadeira?, trote?, armadilha? Poderia ser tudo ou um pouco de qualquer coisa. Poderia ser somente nada, mas fiquei curioso, coisa normal: “Droga”, pensei, “fosse e-mail, eu deletava!”

Provavelmente o arremessante previa isso, o que intrigava mais ainda.

O dia veio e eu não dormi.


2 de junho de 2010 – 10h a.M.

No trabalho, desatentava-me. Meus olhos, de quando em quando, fixavam-se no papel amarrotado em cima da mesa. Não conseguia parar de pensar no que fazer e no que poderia haver por trás daquilo.


Procurei na textura do papel, nas letras cuidadosamente recortadas à tesoura, nos traços à régua em lápis HB ou na cola branca que as fixava, coser um raciocínio que pusesse qualquer luz sob o caso... mas vingava o perseverante nada. Sentia-me perdido e, tão nessa perdição, mergulhei na obviedade do escuro e decidi: eu vou!


2 de junho de 2010 – 3h p.M.

Nem precisava, mas ainda recebi um e-mail do tal estranho, cujo endereço me parecia criado com a função de conservar seu anonimato: mensagemdepedra@gmail.com.


Pedia que, para facilitar meu reconhecimento, tivesse à mão um exemplar de “Memória do Espantalho”, do Francisco Carvalho. Bem, agora eu tinha a certeza de não se tratar de brincadeira de amigos. O sujeito nem me conhecia. Por outro lado, tinha meu endereço eletrônico. Como?


2 de junho de 2010 – 9h p.M.

No caminho, ouvia as dolentes “Bachiannas nº. 5”. Confesso: tive medo.

O encontro seria na Ponte dos Ingleses. Por que na Ponte? Por que o Carvalho? Por que eu?

****

A Ponte, como sempre, às escuras melancolias. Apenas o mar, a não balançá-la, ainda, cuspia-lhe, no encontro das vagas, o sal do pedregal da Iracema ex-boêmia. Sentado, ao frio ventanejar, lembrei as vesperais de sábado na mocidade, auscultadas as poesias, músicas e sonhos reduzidos ao pó das areias cobertas por duros mosaicos. Por instantes, olhei para trás, como há muito me proíbo, e a vi, cabeça deitada em meu colo, cabelos a tingir o velho jeans que apertava, olhos fechados para este mundo — mesmo mundo condenado e aprisionante —, a cantar que se ia embora, que amor não chorasse, que se voltasse era para ficar. Voltou nunca. “Nunca” é uma das palavras mais desesperadoras do dicionário.

****

De repente, aconteceu e ele chegou-me pela voz doutro: “Um dia as reminiscências do morto/ recomeçarão a longa travessia pelas salas desertas/ onde a memória sangra”.


Olhei-o espantado. Tinha cerca de vinte oito anos — não mais —, pele clara, cabelos volumosos e os aros plásticos dos óculos coloridos. Não apresentou-se, apenas afirmou enquanto sentava, bem desconfiado, ao meu lado e por trás de um poste: “o Carvalho é o melhor. Dos poetas, sem dúvida.”

Fui direto ao ponto: o que, quando, como, onde e por quê?


O rapaz não me olhava nos olhos e falava, embora com segurança, quase a murmurar. Perguntou-me se eu era escritor de aluguel. “Escritor de aluguel, o que é isso?”, perguntei. Ele riu, provavelmente por achar que se tratava de falsa inocência. Olhou-me e brincou: “Ghost-writer, Gasparzinho...”


Neguei ser “ghost-writer”, escritor de aluguel ou qualquer coisa do tipo e perguntei o porquê da dúvida. Contou-me que havia lido, apenas por gostar de futebol, as duas crônicas que escrevi sobre a Copa, e estranhou: “escrever duas vezes sobre o mesmo tema é coisa de escritor de aluguel...”


E se fosse, por que o interesse?

Revelou ser “também” escritor de aluguel, negócio rentável, “frila”, não paga impostos, trabalha em casa, faz seu horário, é seu próprio patrão. Com a “efervescência” cultural dos dias atuais, não dá mais conta sozinho, pensa em terceirizar para satisfazer a demanda e não perder clientela. Precisava de “colaboradores”, sabedores do ofício, além do quê, cansara de deletar de seu e-mail meus convites eletrônicos de eventos literários. Aliás, como havia o conseguido? “Ah, meu amigo, eu também tinha os meus segredos...”


Pôs-se, então, em digressões surpreendentes: Não entendia o interesse de tais “escritores” em divulgar literatura. Seria bem mais lucrativo escrever auto-ajuda, guias de sobrevivência e de turismo, livros para adolescentes... “Ô, povim burro!”.


Interrompendo, disse-lhe nunca o ter encontrado no meio literário, em canto nenhum, ao que me respondeu que não vai a lançamentos de livros, primeiro por ser muito chato, e, segundo, para não constranger os clientes “Que diabos de ‘fantasma’ eu seria?” Ademais, não via menor graça em literatura cearense: “Parece que não entendem que existe uma grande diferença entre ser escritor e ser alfabetizado.”


Curioso, perguntei se havia mesmo tanta procura assim. Não acreditava nisso, juro!

Perguntou-me se eu conhecia o livro [...]. Sim, o conhecia. É do [...]. Foi muito comentado nos jornais e em resenhas de revistas, na época do seu lançamento. Riu-se: “Você conhece algum livro dele antes desse? E depois, ele lançou mais algum? Não? Pois bem: cliente!”


Tinha também, segundo ele, outro “cliente” que ficara deprimido após contratá-lo em duas ocasiões, mas que, imprimindo seus livros em gráfica para reduzir custos e não contratando editora especializada, não alcançou boa vendagem e mesmo indo, por um bom tempo, a todos os lançamentos da OBOÉ (sempre ia com um paletó risca de giz azul marinho e na gravata cor vinho trazia um broche com uma pedra vermelha em forma de flor) nunca fora seu trabalho reconhecido. Tentou aconselhá-lo a procurar uma editora e coisa e tal, mas com assessoria administrativo-financeira era mais caro...


Continuou revelando que outros mais, a princípio, contrafeitos, o procuravam pedindo “revisão” ou “estabelecimento de texto”. Na verdade, subentendia-se “reescreva essa porcaria e a faça parecer literatura decente!” Alguns, continuava, ligavam a pedir sugestões, argumentos, ideias ou soluções para desenvolvimento de romances (a maioria dos clientes é romancista ou cineasta). Rindo, confessou-me que bastava dar uma olhadela nos jornais locais e a ideia estava lá: à caneta do jornalista mal remunerado e não reconhecido, a trama passional de um romance de sucesso! Começo, meio e fim. “Esses escritores não leem — ou melhor, apenas SE leem — e dá nisso. Temos que assessorá-los para garantir que, no futuro, os doutos das letras possam ter matéria para produzir seus ensaios”.


Melhor: após a tal “revisão” o próprio autor se surpreendia, e na cegueira da sua vaidade acusava: “E não é que ficou muito bem escrito? Pensando bem, essa é uma obra-prima. ESTOU melhorando a cada dia...” Não ligava: se pagassem, e pagam muito bem — menos pelo serviço; mais pela discrição — para o “fantasma” está certo. O “autor de fachada” prefere até não colocá-lo nos créditos, pois sentiria um “insegurançazinha”... Aliás, percebera com a rotina comercial que a diferença entre o “Ghost-Writer e o “Live-Writer é apenas a vaidade. “O escritor, o que não escreve, mas o que simula, é um boneco nas garras da editora gananciosa.”


Não entendia também por que algumas pessoas com carreiras tão bem sucedidas em áreas, para ele mais respeitosas, como médicos, advogados, empresários e políticos insistiam em se apresentar ao público como escritores se isso é o que eles, de fato, não eram. “Afinal, ‘mã’, que graça tem em ser escritor? Auahauauahaua” — pausa para a sinistra risada do jovem “fantasma” — “Ao escritor, coitado, vítima de suas próprias ficções, só os louros, verdura que murcha depressa”.


3 de junho de 2010 – 10h a.M.

Na noite anterior nos despedimos, com alguma aflição, sem promessas de reencontro. O rapaz, cujo nome não me foi permitido, deixou-me um cartão com um ex-libris medieval impresso e o número de caixa postal, e só! No verso do cartão, porém, um endereço curiosamente datilografado de um pretenso cliente anônimo. Movido novamente pela curiosidade — tenho que acabar com isso... —, dirigi-me ao local e fiquei de tocaia, quase envergonhado, por trás de uma castanholeira na calçada. Do portão, pude vê-lo (a) surgir e passar coçando o queixo nervoso, como de costume, e não acreditei que ele (a) também era mais uma vítima do “fantasma”, habitante sombrio dos porões trevosos do submundo da literatura!

O Rei continua nu e mandei colocar cortinas na janela.



Raymundo Netto que não tem peito de aço, não faz revisão, não sabe de nada, nem recebe ligações ou encomendas, mas que atende pelo e-mail raymundo.netto@uol.com.br e mantém o AlmanaCULTURA, um singelo blogueto.

terça-feira, 15 de junho de 2010

"Ubuntu", por Silas Falcão

A primeira Copa do Mundo de Futebol foi realizada em 13 de junho a 30 de julho de 1930, no Uruguai, em homenagem ao centenário de sua independência. Noventa e três mil pessoas lotaram o Estádio Centenário para a final entre Argentina e Uruguai que, por 4x2, tornou-se campeão do mundo. Progressivamente vários países aderiram a esse grande encontro mundial entre os povos que esse evento se tornou. Para a realização da Copa de 2010, a Fifa inovou na escolha do país sede: África do Sul. Conhecido por seu mosaico cultural, idiomas diversos- onze deles são reconhecidos constitucionalmente - e pluralismo religioso, esse país, habitado por seres humanos há mais de 100.000 mil anos, recebeu dessa instituição dirigente do futebol mundial, a grande oportunidade de mostrar ao mundo o seu DNA espiritual.

Dia 10 de junho bilhões de pessoas se deslumbraram com os imperecíveis ritmos musicais e com as coreografias das danças africanas na festa de abertura.

Mas nem sempre o livre arbítrio foi rotina na vida dos sul-africanos.

Se as gunguzelas multicoloridas soam felicidades africanas, ásperas memórias compõem o passado desse povo festivo.

O governo republicano de 1961 manteve o apartheid, redimensionado pela colonização européia – leia-se domínio britânico -, para controlar a riqueza nacional extraída das minas de diamante e ouro. Aprisionando a liberdade dos africanos, leis foram promulgadas proibindo o casamento entre brancos e negros. O registro de cor para todos os africanos foi criado. A circulação de negros só era permitida em determinadas áreas da cidade. Bairros negros foram construídos por determinação do governo. Os nativos não usavam instalações públicas como bebedouros e banheiros. Um sistema diferenciado de educação para as crianças negras foi imposto.

Apartheid significa vidas separadas.

Em um país com ¼ da população desempregada e subvivendo e não sobrevivendo – com menos de US$ 1,25 /dia, essa copa é uma grande vitrine para os africanos mostrarem ao mundo que, mesmo sofrendo as dores físicas e sociais que o apartheid infligiu, são capazes de superarem-se pelo talento.

Uma Copa do Mundo não é apenas manifestações das habilidades humanas na arte futebolística. Entendo-a, também, como um momento de união entre centenas de aspectos culturais, históricos, linguísticos, raciais, artísticos e religiosos. A versão que mentalizo é a de que ela tem a dignidade de promover a cultura do entendimento entre as nações e o congraçamento entre as diversas raças da sociedade universal.

É um momento de paz mundial dentro do país sede.

Relembro esta frase de Nelson Mandela: “Sonho com o dia em que todas as pessoas levantar-se-ão e compreenderão que foram feitas para viverem como irmãos.”

Copa do Mundo é o conceito sul-africano da palavra ubuntu: essência do ser humano.

"Beleza Tirana", de Manuel Soares Bulcão


"O sexo, dissociado da procriação, subsiste menos como princípio do prazer do que como princípio de diferenciação narcísica; o mesmo vale para o desejo de riqueza.”

Michel Houellebecq (Partículas Elementares)

Uma das coisas de que mais me orgulho foi ter influenciado a decisão da minha filha de jamais pôr cigarro e gota de álcool na boca (até o antisséptico bucal que ela usa não contém etanol). Não, não sou abstêmio e antitabagista, muito pelo contrário. Sua escolha, ela a tomou em razão do meu pigarro atroz e do meu ronco domingueiro de capotado, cacofonias que atrapalhavam seu soninho de princesa. Ah! Outras atitudes minhas também foram determinantes em sua sábia resolução de se formar em Medicina… e se especializar em Psiquiatria. (Conforta-me moralmente saber que estou desempenhando bem minha função paterna: dar exemplos. Aqueles que não devem ser seguidos, eu aviso e, com a linguagem do meu corpo desmazelado, demonstro o porquê.)

Como, nesta crônica, pretendo criticar a monomania, atualmente pandêmica, por saúde e beleza perfeitas, achei por bem – para ser honesto – introduzi-la com um breve autorretrato. Sim, não sou uma pessoa comedidamente ocupada com a própria saúde e a boa aparência para, com o moral dos justos, chutar o pau da barraca daqueles que, de forma desarrazoada, preocupam-se com tais motivos.

Ou não? Será que, pelo fato mesmo de ser exagerado ao ponto da displicência com o próprio corpo, não tenho legitimidade para falar, “de igual para igual”, com esses tarados por cooper e halteres? (Excluo do rol os profissionais, sejam atletas, atores, modelos e os que fazem do sexo um ofício, dado que seu ganha-pão depende da melhor forma física possível.) — Se, tanto em meu comportamento como no de muitos desses maníacos, há fortes traços de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), uma afecção mental, não posso sentenciar com propriedade: “você é minha imagem ‘invertida’ no espelho.”? Quanto às “carolas” de academia de ginástica que olham com desdém minha barriga grande – carinhosamente alcunhada por uma ex-namorada de “nossa” ilusão de óptica –, por que não devo dizer-lhes que são criaturas pasteurizadas, amargas pela carência de açúcar na dieta, deformadas pela supermalhação diária, embonecadas pelo silicone?

Essa preocupação “mórbida” com a saúde e a beleza, assim como o alcoolismo e o tabagismo, é uma doença mental degenerativa amplamente disseminada na sociedade de consumo. Três são as causas da pandemia: a) O merchandisingmidiático das grandes empresas, que, valendo-se de artifícios psicológicos, “erotiza” as mercadorias, associando até inseticidas com belas mulheres seminuas; b) O fato de que, nas economias afluentes, a riqueza material já não basta como meio de distinção social. Conforme constatou Michel Houellebecq, observando as pessoas em um shopping center, não dá para saber quem é filha de operário ou de capitalista. Em razão disso, o que melhor atende, hoje, ao impulso natural de competição narcísica é o sex appeal; c) A tecnocracia da previdência pública e privada, que, objetivando minimizar as despesas com doenças associadas a certas escolhas, desenvolve campanha agressiva contra o gordo e o fumante.

Criou-se, assim, um ideal de beleza inacessível à maioria das pessoas. Demais, a revolução new age, ao transformar o sexo em meio de diferenciação narcísica, trouxe muita miséria afetiva. Sim, enquanto um punhado de estátuas gregas faz amor com vários parceiros todos os dias, a massa dos quasímodos gasta a maior parte do tempo só treinando.

Enfim, essa luta obsessiva contra o envelhecimento e a morte (por juventude eterna) está fadada ao fracasso. A antecipação do fiasco e o desconforto das dietas geram frustração, que, por sua vez, é fonte de agressividade. Ora, tal agressividade pode voltar-se contra o próprio indivíduo, seja na forma de moléstias autoimunes ou como vontade inconsciente de morrer jovem — ou então se concentrar num bode expiatório: o “outro” que não compartilha seu modus vivendi.

Por isso que, como afirmei, tem essa doença um caráter mentalmente degenerativo.

Concluo esta crônica com um poema que escrevi para as mulheres possíveis (para a maravilhosa “comida caseira”, no sentido figurado da expressão), intitulado “Pequenas Imperfeições”:

Beijo tuas estrias,
Lambo-te as celulites,
Aperto teus culotes,
Mordo teu sinal de carne
E também os joanetes.
Não me teria apaixonado
Se não tivesses esse estrabismo leve
E os caninos saltados.
Ah, essas pequenas
Imperfeições
Que apimentam tua beleza…


Extraído do sítio/blogue As Esquisitices do Óbvio de Manuel Soares Bulcão

domingo, 13 de junho de 2010

Os "FitoManos" de Raymundo Netto em "Buraco na Camada de Ozônio"


Clique na imagem para ampliar!

"(...)", contopoema de Raymundo Netto



foto: Raymundo Netto

Ela morreu. Ninguém mandou, mas mesmo assim, ela morreu.
Rompeu a lógica num absurdo e abmudo processo.

Caiu num abismo de incertezas e conflitos que, ninguém sabia, trazia entre os cabelos quase sempre desalinhados.

Ela morreu. Difícil crer no vazio do seu quarto. É estranho poder, agora, ler as cartas recebidas, mexer nas caixas guardadas no armário, escolher suas roupas, separar o seu prato e o copo, distribuir seus livros, fotos e discos... Aliás, nada do que tanto amava levou consigo, nem a vida nem eu.

Ela morreu. Olhava por aquela janela todos os dias. Parada, encostava a cabeça, empunhava uma xícara de café e lançava o olhar, contornado pelo cansaço das noites indormidas, para adiante. Só o olhar, até então, só o olhar.

Mas ela morreu, não, não morreu, sim, foi-se.

Nunca falou nada sobre isso. Por que não gritava, por que parecia que nada, absolutamente nada, lhe pesava tanto? Precisava? Precisava?

Não, ela falava sim, falava o tempo todo, quem quisesse podia ver na sua inquietude, no silêncio, no toque das mãos, no suor, no olhar... Ela estava lá, o tempo inteiro, naquele olhar.

Ela morreu. A apoteose deu-se à calçada, sem flores nem jardim. O cinzento do céu combinava com o cimento da garagem. Tanto fazia o céu como o chão. Voar ou morrer. Ela morreu.

Texto extraído da coletânea de contos Os Acangapebas

"As Leituras, as Viagens", crônica do leitor-escritor Carlos Vazconcelos

Capa de "México: história duma viagem" de Érico Veríssimo

Todos dizem que ler é viajar. Isso é fato consumado, mesmo na opinião de quem nada lê.

Ler Josué Montello, por exemplo, é transportar-se para o Maranhão. Jorge Amado nos leva à Bahia. Com Machado, retrocedemos ao velho Rio de Janeiro imperial (e às profundezas da alma humana). João Guimarães, Graciliano e Rachel nos conduzem a uma pátria chamada Sertão. E assim segue o leitor, nas mais variadas e pitorescas aventuras, turismo espiritual. Desse modo, quem tem boa biblioteca possui de saldo uma agência turística virtual, sem os protocolos e a burocracia das convencionais.

Pois estive viajando, esses dias. Li Érico Veríssimo e viajei ao México...
– Ao México, tchê?
Sim, senhor! E de trem. Mas tudo bem, compreendo a estranheza. Quem lê Veríssimo viaja não é para os pampas? E escuta aquela música ao longe (talvez um solo de clarineta), vinda do tempo e do vento, que varre os lírios do campo pelos caminhos cruzados?

Floreios à parte, explicarei melhor. Estou me deleitando com a leitura do livro intitulado México, do escritor gaúcho. É daqueles livros injustamente esquecidos. Como se dizia antigamente, o lado B do long play. São notas de viagem, testemunhos de vida, capítulos de humanidade de um escritor que, ao sentir-se sufocado pela vida diplomática, em Washington, consumido pelo desejo de umas férias, chega em casa e sugere à mulher:
– Vamos ao México?
Esse bem poderia ser o título do livro, pois realmente o convite se estende ao leitor.

Qualquer um o aceitará prontamente depois de ler o Prólogo, onde o autor trava um delicioso colóquio com o mestre William Shakespeare em torno das razões que o aliciam a arredar pé da metrópole americana. Lá, "tudo funciona direitinho, um modelo de organização, um primor de urbanismo". E sentindo-se um gato preto em campo de neve, desabafa ainda: "Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia".

Sempre em que se tratar de um grande autor, devemos dispensar um pouco mais de atenção a alguns livros considerados menores. Um grande escritor é multifacetado e dificilmente sua pena admite um rótulo impostor.

Para uma grande pena, não existe literatura amena. Exemplo: na consagrada obra machadiana, não esqueçamos jamais de ler O Alienista.

Com tantas investidas assediantes em torno de Gabriela ou Tieta, alguém se lembrará de ler Terras do Sem-fim, de Jorge Amado, talvez o seu melhor romance?

Da vasta bibliografia de Érico Veríssimo, num cantinho escuso de prateleira, achamos o México, a paisagem do México, o sentimento do México.

Viaje! Não perca tempo! Vá à biblioteca ou livraria mais próxima, solicite seu livro. E quando puder (não desaconselho) solicite também seu passaporte. Você viajará com conhecimento de causa.

Aproveite as palavras veríssimas do mestre Érico: "A vida não merece bocejos".
E hasta la vista!

Para acompanhar o trabalho de Carlos Vazconcelos, acesse o blogue A Inquietude da Busca: http://ainquietudedabusca.blogspot.com

"Consolação", do Poeta de Meia-Tigela

O Arqueólogo, de Giorgio de Chirico

O quanto busquei
atalho
querendo chegar
a ti
e depois quedar
paspalho
só, sem lei nem rei
aqui...


* * *

Um ser esteve
Emtre meus braços:
Por breve espaço
De tempo breve.

Resta o vaziØ
Do que não é:
Templo sem fé,
Curto pavio.

Resta o que deve
Permanestar:
Este lembrar
E alguma neve.

Um ser sorriu
Fazendo festa:
Nada mais resta,
Nada. (Se o...)

(Extraído do "CONCERTO Nº 1NICO EM MIM MAIOR PARA PALAVRA E ORQUESTRA", 2º Movimento, Livro 1, Seção Intermediária)

Para acompanhar a poesia do Poeta de Meia-Tigela, acesse o blogue:

http://opoetademeiatigela.blogspot.com

"Ordinários", de Fernanda Lym


Preto no branco, (re)verso do que não se crê. Seta desconvexa, cor única que retém as demais. (In)segurança no mistério submersa. Luz fosca que vivifica o escuro. Coringa na manga, metralhadora de direitos surreais. Aspereza macia nas entrelinhas de um jeans. Gestos agridoces que transbordam sem licença pedir. Labirinto de cartas marcadas: up, down, left, right. Menu in shuffle, Converse por aí. Uma Heineken, um black, um suspiro no vazio. Uno, múltiplo, tara por mais. Presença na ausência quando no medo se constrói. Sou tudo o que sinto, imagino e desejo. Sou tudo aquilo que ninguém vê.

Para acompanhar o trabalho de Fernanda Lym, acesse o blogue Transfusões: palavra-sangue, e contamine-se: http://trans-fusoes.blogspot.com

"Planeta dos Macacos", crônica de Manuel Soares Bulcão para o DN (18.4)


Certa vez, num botequim, conversava com amigos sobre a peleja evolucionismo versus criacionismo. Um dos nossos, que cultivava a fama de politicamente incorreto, disse: "Se Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, então Ele se chama Chico." Neste instante, aproximou-se um sujeito, musculoso como um gorila, branco como um chimpanzé pelado e, tal qual um orangotango, coberto por uma hirsuta pelagem ruiva. Após nos xingar de comunistas ateus, deu-nos uma banana - não a fruta, alimento dileto dos monos, mas o gesto que se faz com o antebraço: o famigerado "aqui, ó!".

A banana, o dedo em riste e o ato de segurar e balançar a genitália ante o desafeto, Freud classificou de símbolos fálicos. Aventou, também, que essas gesticulações, ao mesmo tempo eróticas e agressivas, indicam uma relação entre sexo e poder. O pai da psicanálise, entretanto, não sabia que esse tipo de ofensa, longe de ser uma idiossincrasia humana, é prática corrente entre quase todos os primatas.

Com efeito, em muitas pesquisas de campo, primatologistas observaram forte semelhança entre os rituais de corte e os de luta dos macacos machos por fêmeas, território e status social. À guisa de exemplo, o macaco-de-cheiro, ao se desentender com um dos seus pares, aponta o seu pênis ereto para a cara do rival. Às vezes, no clímax da fúria, chega mesmo a ejacular. Ameaças fálicas similares também ocorrem entre babuínos, chimpanzés, bonobos, macacos japoneses e em muitas outras espécies do Velho e do Novo Mundo.

Nos bonobos, por haver codominância entre os sexos, há ocasiões em que uma fêmea de posição elevada agride um macho subalterno, domina-o e depois "o cobre" ritualisticamente, isto é, simula com o infeliz uma relação de coito em que ela figura como ativo, o macho. Desta forma ela o avisa: "Aqui sou eu quem manda!". Acham isso bizarro? Ora, qual machão jamais recebeu "bananas" de uma dama? E quantas mulheres valentes ameaçam homens com um "vou te f.!"? - O fálus, mais que o órgão sexual masculino, é um símbolo de dominação (ou melhor, um paleossímbolo, visto que inato, transmitido geneticamente, como descobriu D. Ploog et al); e, nesta condição, muitas mulheres o têm e alguns homens, não.

Como o espaço que disponho é pouco, não comentarei o fato de que o agressor estava encharcado de garapa fermentada, o que me lembrou outro fato: muitos macacos frutívoros preferem os frutos podres do chão, fermentados e com teor alcoólico, do que os frescos da copa.

De uma coisa, porém, o religioso me convenceu: os homens não evoluíram do macaco, nem de um ancestral comum. Na verdade, os homens somos macacos - e muitos de nós, macacos metidos a besta.

Para ler e acompanhar o trabalho de Manuel Soares Bulcão, ensaísta, cronista e filósofo, é só acessar o blogue As Esquisitices do Óbvio: http://asesquisiticesdoobvio.com.br/index.html

"Literatura Feminina?", artigo de Tércia Montenegro para o Opinião de O POVO (8.6)


Basta folhear a História da Literatura Brasileira para perceber que existe uma ínfima presença de escritoras até o século XX. Não que as mulheres não escrevessem. Claro que, em meio às atividades maternais e domésticas de uma figura que ainda não tinha, em termos gerais, entrado no mercado de trabalho e na roda-viva do moderno estresse, havia tempo e disposição. O que não havia era instrução suficiente, muitas vezes. Dentre as "prendas" femininas não estava o aperfeiçoamento numa arte até o ponto do brilhantismo. Mesmo assim, nossas avós mais remotas guardaram seus versos em cadernos de receitas, ou em papéis de carta amarrados com fitilho - preciosidades que sumiram ao longo das gerações, junto com os antigos baús de noiva.

Lógico que muitos desses versos familiares eram despretensiosos, sem qualidade. Mas existia a chance de que, no meio de tantos exercícios poéticos, fosse desperdiçada a sensibilidade de uma Adélia Prado. Quantos talentos assim não deixamos escapar, não ignoramos durante décadas? O século XX permite que editorialmente isso comece a mudar. Editoras significam leitores, que significam incentivo - e cada vez mais as mulheres aparecem nas capas de livro. Tudo começa com uma surpreendente qualidade: Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles (para ficar só em algumas referências do cânone didático) aparecem, dos anos 20 em diante, para exasperar os desacostumados. Imediatamente, era necessário identificar o estranho fenômeno. Assim nasceu o rótulo "literatura feminina".

A necessidade de entender, conceituar, é uma obsessão tipicamente humana, e por causa dela toda a ciência pode ser justificada. Traz grandes benefícios, portanto. Mas o termo "literatura feminina" não se realiza como uma boa definição, na medida em que simplifica a incalculável diversidade de escritos reunidos neste forçado conjunto. É um rótulo, que nasce simplesmente por uma referência de gênero. À primeira vista, parece criar um território, valorizar um espaço - mas, na verdade, constrange e segrega. Induz à fatídica pergunta: por que não existe o termo "literatura masculina"? Porque essa parece óbvia, natural. Que homens escrevam, tudo bem, nada estranho. Mas mulher escrevendo é coisa exótica, diferente. Precisa de um rótulo.

O rótulo, assim como toda etiqueta, deve classificar, apresentar as características de um produto. Ora, socialmente, o adjetivo "feminino" sempre esteve associado à delicadeza, suavidade, muito mais que à conotação puramente sexual, de fêmea. Dessa maneira, pensar numa "literatura feminina" seria também levantar expectativas a respeito de um certo tipo de texto. Não que essa modalidade de uma literatura branda, terna, seja ruim. Apenas é falso sugerir que todas as mulheres escrevem desse jeito. Imagino, por esse ponto de vista, que se alguém adquirisse um de meus livros para adultos numa seção sob o letreiro "literatura feminina", estaria sendo bastante enganado. Induzida pelo rótulo, a pessoa esperava uma obra que lhe desse histórias agradáveis; acabou levando contos de violência. Nesse caso, o leitor foi trapaceado em seus direitos de consumidor. Sim, porque literatura também é produto de consumo, deve ter qualidade e direcionamento mercadológico, o que não invalida absolutamente o estético. O valor artístico não concorre com o alcance profissional de uma obra: já se provou isso há muito tempo (e debater tal questão agora seria perder o rumo).

Talvez para outras escritoras o suposto letreiro na seção da livraria não prejudicasse nem um pouco. Seria o caso de Marina Colasanti, por exemplo, que em seu belíssimo livro Fragatas para terras distantes comenta, no ensaio intitulado "Por que nos perguntam se existimos?": "Se homens e mulheres utilizam o cérebro de maneira diferente ao falar e, ao que tudo indica, o utilizam de maneira diferente para ler, parece apenas lógico que o utilizem de maneira diferente também para escrever."

Ao contrário de Marina, porém, a escritora Susan Sontag, em artigo do livro Questão de ênfase, discute a utilidade de agrupar mulheres reunidas artisticamente pelo único elo de pertencerem ao mesmo sexo: "Parece fazer sentido, por muitas razões, existirem antologias de escritoras ou exposições de fotógrafas; pareceria muito estranho propor uma antologia de escritores ou uma exposição de fotógrafos que nada tivessem em comum senão o fato de serem homens."

Talvez essa discussão reflita o quanto a mulher ainda é vista como minoria, em termos artísticos. E talvez o mais importante não seja entrar numa guerra por espaços, mas perceber algo mais amplo: antes que se nasça homem ou mulher, nascemos humanos, e a literatura é reflexo disso, dessa experiência típica. O trato com as palavras foi criação exclusiva de nossa espécie, que articulou um sistema linguístico e inventou essa arte. No final das contas, não importa o sexo, a época ou o lugar, qualquer escritor(a) age da mesma forma: tudo o que produz é uma tentativa de compreender, traduzir ou testemunhar a vivência humana - algo que pode ao mesmo tempo ser tão medíocre e tão misterioso.

Tércia Montenegro (texto originalmente publicado no jornal O Povo, em 08/03/2008)