segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

"Quando o Amor é de Graça XX: Zero Hora"



30 de dezembro de 2012. Dias há, recluso em minha egocrise de todos os anos, buscava na clausura e na solidão de roer as unhas do ano findouro, o sentido para a existência. Cansado de assistir a massacres infantis no mundo todo, fosse por psicopatas americanos, fosse por soldados americanos, ou voluntários por frágeis ideologias religiosas; à Guerra Civil na Síria, os 78 civis mortos no “Massacre de Al-Qubair”, os 80 feridos com a explosão do carro-bomba em Beirute; ao rastilho da guerra em Israel, na Jordânia, na Turquia; ao homicídio de policiais por quadrilhas organizadas; a sequestros-relâmpago e “saidinhas”; a mortes gratuitas no trânsito, ao infeliz, mas natural aumento dos índices de criminalidade e de violência; ao despejo da Comunidade Nova Estiva do Serviluz, à cachoeira de mensalões e mensalinhos de todos os dias; ao vandalismo nos campos de futebol; à crise da dívida europeia; à seca no interior cearense, à fome e à miséria de famílias; a cidade tomada por mendigos, trombadinhas, viciados e pichadores; aos “arrastões”, que ao poucos se tornam tradição; aos descuidos em terminais, ao trânsito ruim e impaciente, associados ao medo de um tudo; aos falsos profetas enriquecidos; a sanha do consumo inconsequente; a briga pelo poder; a política partidária crescendo acima de qualquer interesse coletivo etc, etc. Cansado, muito, descubro que o ser humano, diante de tudo isso, não se indignaram o suficiente, e por isso, tudo perdura, fica como está.
Daí, um inesperado me fez estar no Instituto José Frota, a “assistência municipal”, na madrugada do dia 31, socorrendo a um jovem casal, Bruno e Érika, ambos beirando os 20 anos, acidentados na colisão de um moto com automóvel. Hospital lotado, filas imensas de pessoas nos corredores escuros e quentes — alguns empurravam os seus ou "de outros", para lá e para cá, pois não se viam maqueiros —; gente sangrando, urinada, desacordada, dormindo em cadeiras de metal sustentadas pelas paredes; corredores e pequenos vão são tomados por macas improvisadas; pacientes dormindo nas cadeiras metálicas de recepções de cada ala, enrolados em lençóis cedidos por alguns enfermeiros; outros, vomitavam em baldes tomados de assalto nas salas vizinhas; banheiros nojentos, sem nenhuma higiene, destinados ao público; no setor de radiologia, anunciava: "a máquina ia já, já pifar"; seres humanos tratados, como se pode, mas à revelia de tudo que se prega na saúde. No meio de toda essa babilônia — verdadeira cena de guerra —, o silêncio, o olhar triste de todos, ali, cansados, resistentes, acostumados com o descuido e desamparo da vida. Apenas alguns aproveitavam do silêncio, olhavam para cima em prece, por acreditar em alguma coisa ou esperar, como eu, por algo mais dessa vida.
Lembrei que um dia ali trabalhei, logo depois de formado, pouco mais de vinte anos. Não senti um pingo de saudade.
Lembrei também das discussões e disse-me-disse sobre a tal mega-plus-festinha de Réveillon, repleta de caras estrelinhas. Lembrei dos milhões gastos em comemorações pelos governos estadual e municipal para mostrarem para os outros estados que “nós podemos”; lembrei da gastança que será a Copa do Mundo, com o bom auxílio do Governo Federal; da dinheirama que se torra para ludibriar o turista nesta terra e que transformou o Ceará em local de predação, onde o povo vale menos, bem menos, em troca de se vender dim-dim, chegadinha, cartões postais e cervas, ou mesmo a rede de prostituição, drogas e sessões de enterro vivo.
Sentei-me ao lado da cadeira de rodas da Érika. Ela, uma atendente de padaria. Fazia meses, estava desempregada, depois do nascimento do filho, agora com seis meses. Ele, o marido, porteiro de uma firma de construção, andava no corredor — suspeita de fratura de mão — com o calção completamente rasgado, deixando-lhe à mostra a cueca, mas ali ninguém percebia nada disso. Poderia andar-se nu, como os judeus nos campos de concentração, e ninguém diria nada. Nada desses moralismos ridículos têm qualquer valor diante de tanta miséria humana.
Busquei a agenda do meu celular, com a necessidade e a recusa de ligar para alguém, para falar qualquer coisa. Descobri que não tive coragem ainda de apagar alguns nomes: Airton Monte, Lustosa da Costa, Manuel Bulcão, Ivonete Maia... O que fiz ali, naquele corredor, como a derradeira despedida aos meus amigos.
Veio-me à mente que o Nazareno Jesus chegou a este mundo no meio dos pobres, era o rei de analfabetos, dos esquecidos, dos excluídos, de prostitutas, dos marginalizados. Esse era o senhor filho do Homem que, como dizem, não tinha onde recostar a cabeça.
Andei por horas empurrando a Érika, também enrolada em lençol que consegui com um enfermeiro. Notei que ela se esquivava, o que podia, quando eu a tocava para ajudar-lhe a transferir-se de um lugar a outro. Dignidade. O casal trocava carinhos, às vezes, como se penalizados de si. São sobreviventes num mundo que os explora e que a cada dia mais os empurrará para o abismo sem fundo dos engodos disfarçados em políticas públicas, onde a luz só chega através de urnas eletrônicas. Fiquei com dó deles, tão ignorantes talvez de um destino que vemos todos os dias à nossa porta, ao mesmo tempo em que os admirava por ainda conseguirem ter coragem.
Por fim, sem fraturas, medicados, entre bandagens e talas, fomos à Serrinha, onde residem. Aliviados, pediram para passar na casa de uma tia para pegar o filho: “Cauê... Cauê Emanuel!” “Ah, é Emanuel? Emanuel significa ‘Deus Conosco’ (Mateus 1:23)”.
Era a madrugada do último dia do doce ano, conheci o pequeno Emanuel, inda em fraldas, sorrindo, com brilho nos olhos, alheio a todo sofrimento de seus pais.
Acordei diferente, hoje. Não melhor nem pior, mas sonhei, pela primeira vez na vida, com o calor frio da palma da mão de um anjo.

sábado, 29 de dezembro de 2012

"Os Acangapebas", por Ana Lúcia Santana, para o Info Escola




http://www.infoescola.com/livros/os-acangapebas/

Os contos de Raymundo Netto trazem notícias da vida urbana e do sertão. E revelam que algumas preocupações e inquietações povoam tanto uma esfera quanto a outra. A narrativa intitulada “Intermezzo”, “Entreato” em Português, demarca exatamente um espaço entre dois segmentos desta obra.

O primeiro é marcado pela presença constante da solidão e da morte nas grandes cidades. Também estão presentes as buscas da própria identidade ou do outro, ou de ambos. O segundo é pontuado principalmente pela temática sertaneja, embora nem sempre as histórias sejam ambientadas na região agreste. Elas são pontuadas especialmente pelas lembranças e memórias de outros tempos, ou de tempo nenhum.

Na verdade, estes temas perpassam tanto um bloco de contos quanto o outro; a diferença reside na intensidade que o autor confere a eles na parte inicial e na que se segue ao “Intermezzo”. O primeiro ato é povoado por personagens que voluntária ou involuntariamente mergulham na mais completa reclusão. Para sempre?

É o caso, por exemplo, de Nazareno, do conto “Gato”, que se distancia dos familiares e desenvolve uma relação simbiótica com seu animal de estimação. No mesmo sentido Dona Carmosina, em “O Mistério do Sótão”, incapaz de gerar vida, reserva seu afeto a um ser inanimado, enquanto aos seres vivos destina um profundo sentimento de avareza e de amargura, em um impressionante contraste psicológico.

Por outro lado alguns destes personagens são deliberadamente conduzidos ao ostracismo pela doentia hipocrisia. Convenções sociais irracionais atuam como deuses cruéis e caprichosos dispostos a determinar o destino de suas criaturas. No conto “Condomínio” fica bem clara esta intenção quando seus moradores acusam Juca de invasão da privacidade alheia por permanecer nu em seu apartamento. Até então o protagonista ignorava ser alvo da atenção de seus vizinhos; envergonhado e ciente dos olhares dos demais, ele transforma sua aparência em uma constante obsessão e inverte o jogo; agora é Juca quem desnuda os condôminos, pois passa a observar atentamente cada um de seus passos, rompendo os limites da vida privada. Levado à cena principal pela vizinhança, é logo impelido ao abismo da solidão.

Nesse cenário também se insere o Coronel Oswaldo; de homem respeitado e tradicional, conselheiro matrimonial, o idoso se transforma, graças a uma prótese peniana, em ávido Don Juan. Por conta de uma fantasia inofensiva, é logo convertido em alvo de fofocas e brincadeiras ofensivas. Como Juca, torna-se vítima da solidão da popularidade. Normalmente este mal tem um trágico desfecho. Estes contos mais sarcásticos lembram muito a fina ironia de Machado de Assis.

Alguns temas bíblicos também protagonizam os contos de Raymundo, especialmente o do sacrifício. A condição feminina é exposta em histórias como “Cafarnaum” e “Redenção”: A primeira retrata uma cidade típica do mundo moderno, pela qual transitam seres incapazes de se redimir diante da dor, exatamente como na terra natal do apóstolo Simão Pedro, que se recusa a acolher o Evangelho e por esta razão é pretensamente condenada à destruição.

Por instantes seus habitantes parecem se mobilizar ao testemunhar o assassinato de uma bela jovem, sacrificada por sucumbir ante a vaidade. Mas logo se revelam autômatos anestesiados por falsos dramas exibidos na TV. Ilusão e realidade se chocam em suas mentes insensíveis.

Em “Redenção” o julgamento social incrimina previamente uma jovem esposa e assim destrói um casamento, amaldiçoa uma família e esta maldição se perpetua, culminando no sacrifício de outra figura feminina, a imaculada e apaixonada segunda mulher de Gedeão.

O ritual sacrificial atinge também os personagens masculinos. Um dos contos mais impressionantes é “A Ventura de um Morto”. Nesta história o autor atinge o ápice da crítica social. Em uma sociedade na qual tudo está à venda, desde cabelos, órgãos humanos, virgindade e a própria alma, deveríamos nos surpreender com o desenrolar desta história? Ou com o que é retratado em “Filho do Cão”? Ambos são pontuados por uma atmosfera surreal, como a que marca a obra de Kafka.

No primeiro, um executivo passa mal em uma via pública e cai aparentemente morto na calçada. Em momento algum é socorrido por alguém. Como se não valesse absolutamente nada, é roubado, despojado de suas roupas, chutado, jogado de um lado a outro, atropelado, privado dos próprios órgãos. Após uma odisséia surreal, é santificado e praticamente crucificado, em uma alusão ao sacrifício de Jesus.

No conto “Filho do Cão” o protagonista também percorre uma longa jornada, porém no sentido inverso. Aqui, desprovido de todo e qualquer recurso, cansado de ser humilhado, ele vende sua alma ao Diabo. A partir deste momento passa a ser reverenciado, glorificado, e se dá conta de que estas pessoas também são servas da entidade.

O traço psicológico de Clarice Lispector, presente em suas densas e complexas personagens femininas, parece ser uma das influências do autor na composição de suas protagonistas, tais como Cícera, de “Álbum de Fotografias”, que se consome na solitária cela do matrimônio; a avó anônima de “Domingo”, desprovida de identidade, esgotada pelo ofício de servir a família; a garota de “A Mulher de Antes”, na sua jornada cíclica em busca da identidade; e a solitária de “Memorialva”, que de tão reclusa entra em simbiose completa com o ambiente opressivo no qual se encerra.

O segundo ato apresenta histórias mais longas, sinalizadas por uma profunda melancolia e pela inexorável passagem do tempo. São contos mais poéticos e líricos, porém marcados a ferro pelas agruras do sertão ou da vida. Como “O Circo”, no qual o palhaço Cambalhota relembra momentos traumáticos do passado, quando volta a ser o menino Bené. A máscara de alegria cede espaço à profunda desilusão da infância.

Em histórias como “A Bodega” e “Cadeiras na Calçada”, a passagem do tempo impõe transformações irreversíveis, contrapondo lembranças de um passado tradicional, conservador, ao nascimento de uma era movida pelo progresso incessante e voraz. Naturalmente nem sempre estas recordações trazem momentos felizes.

O autor não se filia à categoria dos que fazem a apologia de um passado nostálgico. A trajetória de seus personagens é demarcada por vicissitudes tanto no presente quanto no pretérito. Mesmo as narrativas mais belas e repletas de poesia, com toques de Guimarães Rosa e Drummond, como “Luzeiros”, “Ode ao Amor e à Morte” e “O Tio Dançarino”, não deixam dúvidas: a tristeza, a dor e a morte estão presentes, anunciadas na epígrafe inicial, assinada por Dante: “Vós que entrais, deixai de fora toda esperança”.

Realmente sentimos falta de luz e confiança em Os Acangapebas. Aliás, o conto que dá título a este livro é um dos que mais carecem de luminosidade, embora os raios de sol sejam inclementes no sertão. Às vezes a leitura se torna sufocante e até mesmo deprimente. Algumas histórias são realmente devastadoras, como “Gêmeas”, a “Mulher dos Gatos” e “Trégua”, nas quais predominam o horror típico de autores como Poe e Kafka.

Com certeza a realidade está aí presente; não há exagero algum, mas o próprio autor admite, conscientemente ou não, que falta alguma perspectiva positiva a sua obra quando na epígrafe final Goethe clama: “Mais luz!” E com certeza o leitor assina embaixo.

Sobre o Autor:

Raymundo Netto nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 29 de junho de 1967. Ele se formou em Fisioterapia, mas logo optou pelo universo artístico. Iniciou sua carreira no cinema de animação e como produtor de “Hogro: uma homenagem aos 100 anos de cinema”. Migrou para o mundo das HQ, passou pela Publicidade, pelo campo da produção gráfica, militou na Educação Ambiental até definitivamente se estabelecer na esfera literária.

Ele ingressou nesta seara em 2005 com o lançamento de seu primeiro livro, Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, vencedor do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Desde então apresenta uma vasta atuação no universo da Literatura. Em 2009 fundou o blog AlmanaCULTURA, no qual divulga eventos, projetos culturais e literários: http://raymundo-netto.blogspot.com.br/

Seu livro Os Acangapebas conquistou o II Edital de Literatura da Secretaria de Cultura de Fortaleza em 2007 e o Prêmio Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras no ano de 2011. Raymundo foi membro do Conselho Curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará em 2010 e hoje é editor adjunto das Edições Demócrito Rocha.

Fonte:
Raymundo Netto. Os Acangapebas. Editora Fundo de Quintal, Fortaleza, 2012, 147 pp.


"Os Acangapebas", por Hermínia Lima



"O Encantamento pela Linguagem"

A obra que nos inspira para o texto que ora escrevemos começou a provocar-nos pelo título: Os acangapebas. Ao lê-lo, pela primeira vez, na ocasião do lançamento, ficamos a nos perguntar o que significava “acangapebas”? Ou, quem são esses “acangapebas”? Para nossa felicidade, ao folhear o livro, encontramos, logo no início, a resposta a tais indagações. O autor, Raymundo Netto, teve a ideia, ou melhor, o cuidado de transcrever um verbete do Silveira Bueno esclarecendo, “acangapebas: cabeça-chata. De acanga, cabeça; peba, peva, chata”. Bom, lido isso, pensamos: “cabeça-chata”... algo a ver com os cearenses? Ao deparar-nos com os tipos que povoam a obra e, em especial, com os que protagonizam o conto cujo título nomeia também o livro, “Os acangapebas”, confirmamos a nossa suposição em relação ao significado da palavra. Constatamos que, a julgar pelos perfis físicos e psicológicos dos que habitam a referida obra, é possível afirmar que se tratam de tipos bem cearenses. E seguimos com a leitura, livro adentro, querendo saber mais sobre os acangapebas. As descobertas foram muitas e as surpresas várias.

Uma singularidade

Antes de discorrer sobre as impressões desta leitura, de revelar surpresas e descobertas, mencionamos, ainda, outro detalhe que nos chamou muito a atenção no primeiro contato com a obra: Raymundo Netto publicou o seu livro, Os acangapebas, sem carta de apresentação; ou seja, sem prefácio, sem o depoimento de um crítico reconhecido, sem o aval de um argumento de autoridade na área. Começamos, pois, a render homenagens ao autor por este gesto. Pensamos que, de propósito, Netto quis deixar ao leitor o prazer da descoberta, sem o risco da influência prévia de uma leitura anterior. Assim, o pôs em contato com a obra sem o risco do contágio da avaliação estética e um direcionamento de olhar de um crítico especializado. Na verdade, a obra não necessita de apresentação, pois traz a chancela de duas reconhecidas premiações: O Edital de Incentivo à Literatura da Secretaria de Cultura de Fortaleza, 2007 e o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura da Academia Cearense de Letras, 2011. A conquista destes dois prêmios dispensa qualquer texto de apresentação. Saber que o livro foi lido e indicado por comissões especializadas nos dá, salvo raríssimas exceções, a certeza de que a obra nos oferecerá um conteúdo de qualidade.

A leitura

Após estas considerações iniciais, deparamo-nos com nova indagação: o que vamos destacar desta leitura? A obra nos oferece tantas possibilidades de análise e leituras que, definir um único viés e explorá-lo, torna-se tarefa difícil. Decidimos, então, após traçar as considerações gerais sobre a obra, destacar um aspecto que, de modo especial, chamou-nos mais a atenção: a linguagem. Porém, antes de fazer este recorte, gostaríamos de tecer, brevemente, uma explanação de ordem geral.

Visão geral

Os acangapebas é um livro de contos composto por 39 narrativas predominantemente curtas, com exceção de uma pequena minoria. Os contos são apresentados em um único bloco de textos, sem subdivisões; mas, o livro apresenta-se dividido por três pares de páginas pretas que sugerem um início, um intervalo e o final. As duas primeiras páginas pretas trazem a epígrafe de Dante Alighieri, “lasciate ogni speranza, voi ch´entrate”, que nos parece avisar sobre o conteúdo dos contos. É como se recebêssemos uma sutil advertência, mais ou menos assim: “percam as esperanças, o que vos espera não é nada estimulante e não tem remédio”.  O segundo par de páginas pretas traz um conto que sugere um intervalo, uma parada, após as cem primeiras páginas do livro. E, as últimas páginas pretas nos ofertam palavras de Goethe: “Mais Luz”, como a nos sugerir mais claridade neste mundo escuro que acabamos de percorrer. 

Dos símbolos

Não podemos deixar de contextualizar aqui a simbologia da cor preta que marca estas páginas divisoras do livro. Ao passo que, ao comentarmos sobre o conteúdo e ambiência dos contos, ficará absolutamente entendido o porquê do uso desta cor que, na verdade não é uma cor, mas a ausência de todas elas.

Comecemos por destacar o que mais causa estranhamento – entenda-se aqui “estranhamento” no sentido estético e positivo – na leitura da obra. Podemos afirmar que este estranhamento estético se dá nos planos da forma e do conteúdo. Os contos nos tomam de surpresa tanto pela linguagem elíptica e poética, marcada por construções sintáticas inusitadas e permeada de neologismos, quanto pela maneira surpreendente como o narrador nos coloca em contato com ocorrências insólitas de desfechos mais insólitos ainda. Cada conto é uma surpresa e as narrativas se/nos afastam do previsível.

Das personagens

Considerando os elementos estruturais da narrativa: personagem, enredo, tempo, espaço e foco narrativo, convém lembrar que os personagens estão longe de serem os protagonistas típicos das narrativas tradicionais. Não nos deparamos com os tipos heroicos, atléticos, famosos, ícones sociais ou políticos, muito menos modelos de comportamento ou de beleza. Ao contrário disso, temos uma gama de personagens anônimos, complexos, depressivos, esquecidos, mal ajustados socialmente, marcados por traumas e dramas existenciais graves e, muitos, em situações terminais. Vejamos alguns fragmentos descritivos que comprovam o que acabamos de afirmar: “Tão jovem, magra, tez branca lunar, olhos agudos de infinito...”; “Sabiam-lhe pelas vestes e pelo estado físico, sem posses...”; “... não queria ver ninguém. era doído mostrar um sorriso de aparência...”; “ a mulher trêmula, larga e apática...”; “Em andrajos, como filhos de deus, espíritos rotos comiam a bolacha salgada aos goles d´água.”; “Na cabina, uma criança dorme na rede dependurada a balançar pelas últimas forças e suor daquela mãe sem descanso nem peito.” “Arde ainda o peito da criança a gritar a fome no meio da madrugada.”; “Dona Carmosina era mulher conhecida na rua da feira por ataques matinais. Nunca nada estava bem.”.

Elementos da narrativa

Os enredos, por sua vez, também estão bem distantes daqueles estruturados em começo, meio e fim, que apresentam um clímax bem marcado. As narrativas têm, na maioria, formas fragmentadas, estilhaçadas, sugestivas e muito pouco explicativas.

A abertura

Os enredos não se concluem como esperaria um leitor tradicional, eles nos surpreendem a cada conto. Cada narrativa exige continuidade na mente do leitor. Cabe bem aqui lembrar o conceito de narrativa aberta de Umberto Eco[1]. Além dos desfechos abertos, podemos definir os enredos deste livro como: narrativas do não dito. A leitura deixa-nos a impressão que a narrativa se constitui muito mais em torno do que não foi dito, mas apenas sugerido, do que em torno do propriamente explicitado. E cabe aqui enaltecer a astúcia do contista que sabe muito bem trabalhar a teia para que essa sugestão se torne cada vez mais instigante e, muitas vezes, fazendo o leitor retornar e reler o conto, ou o final dele, para melhor entender o que acabou de ler. Acredito que, nesta obra, podemos afirmar a existência de uma influência do quadrinista sobre o contista. Os contos, com seus enredos breves, são como quadrinhos. São pequenas cenas que se desenham sob os nossos olhos e, o modo como o narrador apresenta-nos os fatos, com sua escrita elíptica, dispensa maior desdobramento verbal. O narrador não pratica delongas. Ele vai ofertando-nos flashes que são lampejos a acenderem-se na mente do leitor. Ele vai esquadrinhando a realidade em pequenas amostras, muito breves, quase minúsculas; porém, muito intensas. E nestes breves e insólitos enredos, são os desfechos que mais nos causam surpresas. 

A linguagem figurada

O contista brinca com as palavras, criando imagens metafóricas, interrompendo a sintaxe, abreviando e entrecortando frases que levam o leitor a executar malabarismos mentais no intuito de entender o que aconteceu nas tramas narradas, principalmente, nos seus desfechos. Em alguns casos um acontecimento sobrenatural se instaura, permitindo-nos a inclusão de alguns desses contos no rol das narrativas fantásticas; outras vezes, é apenas o estranho, o misterioso. Em geral, são contos de desfechos enigmáticos. São histórias de destinos humanos que, simplesmente desaparecem tão insignificantes e secretos como lhes foi a existência.

Amálgama de ficção e realidade

Quanto ao tempo, nada podemos definir com precisão. Não nos deparamos com marcadores temporais que precisem datas ou épocas. Nas narrativas, as referências ao tempo são vagas, indefinidas, como a combinar com a imprecisão que conduz os destinos aqui apontados. Parece não importar muito a medição precisa do tempo. O narrador nos dá a impressão de querer focar a atenção do leitor sobre os dramas existenciais humanos, independentemente do “quando”: “Estacara a hora...”; “Ademanhãzinha...”; “Não lembrava já de quando, mas se eram tempos incontados...”; “Naquela noite não precisou convidar moça alguma.”; “Era uma vez, se fosse, mas não era uma, nem a primeira.”; “O sol se punha cedo...”; “No tempo da era num pedaço esquecido do agreste...”.

Dos lugares

O espaço é item que merece atenção toda especial, porque ele se torna quase personagem. Geograficamente, alguns contos têm espaço definido no Ceará, em cidades como Canindé e Fortaleza, por exemplo. Os demais, apenas apresentam descrição de um espaço físico sem identificação geográfica precisa. Esse conjunto de pequenas histórias levam-nos a lugares escondidos, marcados pelo anonimato e, predominantemente, miseráveis, fétidos, escuros, mal cheirosos, infestados de insetos, em desordem etc. A composição das cenas tem significado físico dentro das narrativas, mas também psicológico. O que nos permite afirmar ser este espaço não somente um cenário decrépito, mas também o prenúncio da própria condição das personagens. O espaço anuncia os tipos humanos com os quais vamos nos deparar. As baratas, por exemplo, com sua aparência asquerosa, são uma recorrência nas cenas dos contos. E a presença delas é de suma importância para compor o cenário onde habita uma mulher quase sombra, um farrapo humano que acaba sendo devorada pelas baratas, conforme sugere, de forma fantástica, o final do conto. O seguinte fragmento, desfecho do conto “Trégua”, nos dá uma ideia desse espaço nada acolhedor e tão repulsivo:

"Angustiava-lhe, contudo, o banheiro. Às horas escuras, as baratas reinavam. Por vezes, queria usá-lo, mas à visão nojenta de dezenas delas desistia-lhe a vontade. Percebia-lhes nas gretas da parede, nas frinchas do piso, no descuido do ralo, por todos os cantos. Saíam elas protegidas, ligeiras, com propriedade tradicional de uso.
No abrigo escuro da noite, do travesseiro, além do seu cheiro em tudo, podia ouvir centenas de patas a deslizar. Corriam, acasalavam-se. Mais baratas, cada vez mais. Pânico!"

Leiamos, a seguir, outros fragmentos menores que exemplificam a apresentação espacial na obra e que nos permitem apontar o Ceará, mais especificamente, Fortaleza, como espaço predominante das narrativas:
 “Esta, chácara antiga, nas bandas do Montese...”; “...um antigo sobrado perto dos trilhos de Jacarecanga.”; “... tinha que comprar a mercadoria na Governador Sampaio.”; “...a pedido do governador, no Palácio da Luz.”; “ ... no rumo da missa na Igreja do Coração de Jesus.”; “ ... a quase perda da vida numa irresponsável brincadeira no riacho Pajeú;”; “... um retratinho amarelado, tirado em Canindé.” etc.

A voz do narrador

O foco narrativo também comporta estudo à parte. Ao nos referirmos ao foco narrativo dos contos, usaremos aqui a palavra “narrador”, no singular, para facilitar a compreensão; mas, admitindo a existência de vários, já que estamos nos referindo à muitas narrativas. O narrador se insere sorrateiramente nos espaços descritos anteriormente e, de forma mágica e onisciente, vai revelando-nos cenas de um mundo quase invisível, um mundo à parte, que se faz cenário do submundo de indivíduos, em maioria, infelizes, tristes, solitários, doentes, abandonados, depressivos, deprimidos, suicidas etc. Sem intenção panfletária, este narrador desperta em nós, leitores, uma reflexão profunda em torno das cenas e dos tipos que habitam os contos. Há, em suas revelações, um espaço para críticas sociais densas, mas ele não as faz. Não se posta como narrador-intruso ou participativo. Apenas abre a possibilidades para que o leitor se posicione diante das cenas narradas. Ele deixa a reflexão plantada na mente dos leitores. O que poderá provocar desdobramentos da obra como este que fazemos agora. Esse modo de narrar e de possibilitar ao leitor a continuidade da reflexão crítica lembra-nos muito o estilo do mestre Moreira Campos. Passemos, então, ao que mais nos interessa destacar: a linguagem. Este aspecto que constitui o foco central da nossa apreciação.

Recursos expressivos

A linguagem em Os acangapebas é uma caixinha de surpresas que se abre a cada parágrafo, a cada frase, a cada expressão e, às vezes, a cada palavra. Surpresas que ocorrem nos planos sintático, semântico, morfológico e fonético. Desnecessário dizer que todas estas ocorrências são expressões não só do poder do autor sobre o uso da linguagem, mas também da sua consciência e criatividade literárias. A sintaxe inusitada chama-nos a atenção para as rupturas que o contista realiza nas estruturas convencionais das frases, gerando um efeito estilístico a nos lembrar o estilo de Guimarães Rosa. E este inusitado da sintaxe permite um estudo à parte que não será feito nesta leitura. Para organizar mais didaticamente o que pretendemos destacar sobre os aspectos linguísticos nos contos de Raymundo Netto, optamos por ressaltar, a título de exemplificação, os seguintes aspectos: a poeticidade, os neologismos e as marcas regionais. Aqui, cabe esclarecer que estes não são os únicos aspectos linguísticos a merecer destaque na obra. Optamos por eles apenas porque se tornaria extenuante a tentativa de esgotar a análise de todos os recursos utilizados pelo autor.

Estilo mesclado

Raymundo Netto escreve em prosa; mas, em muitos momentos, a poesia invade o espaço narrativo e fragmentos poéticos adornam a aridez das cenas, às vezes, cruéis expostas nas páginas do livro. Iniciamos, pois, esta análise da linguagem, com alguns exemplos de poeticidade nas narrativas. Destacamos, a princípio, como exemplos da poeticidade, algumas ocorrências de usos de figuras de linguagem. Comecemos com um sugestivo paradoxo: “... a exigir a presença dela em cada instante de paz de nunca sequer alcançada.”. Não passa despercebida a passagem que traz o exemplo de personificação sinestésica: “... e o cheiro ensurdecedor a não lhe deixar o corpo mesmo quando misturado ao suor.” Também encanta a antítese do seguinte fragmento: “As janelas da sua casa eram estreitadas por grossas cortinas que coavam severamente as manhãs.” Chama atenção a musicalidade das aliterações no fragmento citado no final do conto “Tragédia”: “Vozes vizinhas vazavam vazias nas várzeas, nas vilas, nos vales da vida...” e no seguinte: “As águas tomavam o silvoso silêncio.” Assim como chama a atenção também a seguinte passagem, pela sequência de antítese e paradoxo: “A vida na Terra parece não ter sentido sem a morte. A vida, eterno exercício de ter e perder; uma partida constante; uma dor interminável de não ter fim.”. Merece destaque a catacrese: “Trazia, em ramalhete de palavras provavelmente colhidas daquele coração enfraquecido,...”. E, como último exemplo, a sugestiva personificação da chuva em: “Desce logo a chuva cuspida em bicas, a revolver a terra coberta inteira por castanholas.” 
Além dos já citados, vale conferir, agora sem enfatizar figuras, outros fragmentos de intensa beleza poética: “Os búzios urdiam o colorido da imensa solidão apresentada.”; “ondas quebravam no dorso das pedras desabrolhadas ao veludo frio do mar. A folgada sucessão de águas reconstruía memórias. Poesia gritava aos seus ouvidos em voz rouca dos corais, e foi assim que respondeu.”; “... as manhãs quando a passarada estalejava o sol em asas amarelas.”; “dormem alguns ainda no banco de pau; outros embaixo do caminhão; os demais, no escuro das esperanças.”; “Uma mulher linda, de sorriso que era um varal de dentes alvos.”; “O vento corria no trazer dos aromas do café e da merenda.” etc.

Os neologismo também adornam fartamente a escrita de Raymundo Netto, numa profusão de novas palavras que expressam a criatividade do contista diante das inúmeras possibilidades do fazer literário: saudejavam; silhuetarem; jangadeava; porfavores; dalicenças; malolhado; dançarinava; entrebraços; azulejavam; admirante; tempotodotodotempo; nudice; pelamordedeus; madrugadeadas; anoitecidas; amareladamente; brilholhares; doraguda; olhiagudos; janelavam; sobranceirava; vozeado; deslembrada; sombrejando; sombrejada; momices; choravia; tiquetaquear...

O efeito da linguagem regional na tessitura do texto

 Por fim, vale discorrer sobre os momentos em que a linguagem regional irrompe o tecido do texto e confere graça e leveza às narrativas. Nota-se que a linguagem erudita do contista abre espaço para a linguagem popular do falante nordestino e isso ocorre de maneira natural, sutil. As linguagens se mesclam nas frases dos contos criando um efeito surpresa na mente do leitor. Os termos regionais aparecem naturalmente em determinadas situações, fazendo resgate e registro valiosos de termos já quase perdidos em nossa memória. Além disso, o emprego dessas palavras e expressões pode tocar emocionalmente o leitor cuja vivência se reporte ao sertão nordestino. São palavras ouvidas dos nossos avós, pais, e que compõem a nossa memória linguística ancestral. São exemplos do que acabamos de comentar, as seguintes expressões: “De novo pai? Bora, a mãe tá chamando...”; “leriado”; “xaninho”; “miolo de pote”; “carocim d´água”; “de primeiro”; “Amor? Ôxe! Por que não?”; “Antes que o pior se abancasse.”; “Tomara que seus dentes caíam tudim.”; “...virada na peste, a sua rotina...” e outros.

Considerações finais

Por fim, a título de conclusão, deixamos aqui como sugestão de leitura, embora seja difícil escolher, entre tantas excelentes opções, os seguintes contos: “Os acangapebas”, “Gêmeas”, “O circo”, “O estandarte do coronel” e “Cadeiras na calçada”. Porque estes, sem demérito para os demais, são verdadeiras pérolas literárias. “Os acangapebas”, não só por ser o conto que nomeia o livro, mas pela beleza poética que contrasta com a dureza cortante do conteúdo; “Gêmeas”, porque é um dos contos mais fortes e impressionantes do livro, de um realismo e crueza quase insuportáveis; “O circo”, porque através de uma personagem comum, como um simples menino palhaço, figura provocadora do riso, somos quase levados ao choro, mergulhados na densidade de uma vida marcada pela dor, pela tristeza e por um dos traumas mais profundo que um ser humano poderia tolerar; “O estandarte do coronel”, por ser uma obra-prima representativa do estilo tragicômico e “Cadeiras na calçada”, último conto do livro, por ser merecedor de estudo em separado. Além da riqueza da linguagem já destacada aqui, este texto sensibiliza demais o leitor, principalmente àqueles que vivenciaram esta experiência maravilhosa de ter assistido às rodas de cadeiras na calçada. As personagens são tocantes, o relato é demasiadamente verossímil e a intertextualidade musical com a canção Rosa, de Pixinguinha, confere ao texto um lirismo indescritível.




[1] Segundo palavras do próprio Umberto Eco in: ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 2003. Toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação; a "obra aberta" não é uma categoria crítica, mas um modelo teórico para tentar explicar a arte contemporânea; qualquer referencial teórico usado para analisar a arte contemporânea não revela suas características estéticas, mas apenas um modo de ser dela segundo seus próprios pressupostos.

"Loura Desposada do Sol", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO



Sempre gostei desse verso de Paula Ney sobre Fortaleza. Tanto que resolvi em algumas crônicas fazer gaiatices com ele. A “loira” foi carinhosamente desmilinguida para “loirinha” e a “desposada” cruelmente metamorfoseada para “desmiolada”, “destiorada”, “descabelada”, “desterrada’, “desbotada”, “desancada” e outros mais.
Desde que deturpei pela primeira vez o famoso verso recebo reprimendas, elogios, brincadeiras de leitores e colegas de escrita. Alguns mais carrancudos me mandaram ler mais, que eu fosse conhecer o poema original de Demócrito Rocha, outros educadamente (e sutilmente) me sugeriram que já haviam “topado” com aquela frase em algum lugar; uns me corrigiam apenas mandando a cópia do longo texto trabalhosamente copiado, vários me cumprimentaram pela sacada “espirituosa” do uso do esplêndido verso de Antônio Sales.
Resignei-me e continuei a usar a brincadeira, sem maiores preocupações com os puristas e/ou os brincalhões de plantão. Até que fiz uso de “A nossa burrinha loura desmiolada pelo sol” em meu livro de crônica Fortaleza Voadora, de 2007, e recebi a estranha mensagem de uma suposta correligionária (dessas que saem da faculdade quase sem saber de nada e, de cabo eleitoral, são logo alçadas aos muitos cargos comissionados que terrivelmente infestam os nossos três poderes) me espinafrando por estar falando mal, usando até termos “depreciativos”, de nossa prefeita Luiziane Lins. Não precisa dizer que ri muito, depois respondi negando e confessando que até votei nela (a prefeita) e previ (para a moça) que ela logo chegaria aos cargos mais alto dentro da administração municipal.
Mas, pasmem!, com o passar dos anos comecei a ler minha inocente gaiatice nas bocas (ou melhor, nas páginas) de outras pessoas. O saudoso Aírton Monte vez por outra tascava a reles frase corrompida no meio de uma de suas divertidas crônicas. O amigo Ricardo Kelmer a vive citando em palestras e até em convites eletrônicos. Dia desses o contista-arquiteto Brennand Bandeira me ligou perguntando se realmente aquela frase era “minha”, pois a vira numa ótima página do Romeu Duarte (e o pior, diz ele, atribuída a outro), eu imediatamente esclareço que não, dou a fonte original (e correta) e assumo apenas a peraltice da deturpação. Até um anacrônico grupo de recitadoras de versos noite dessas deu o vexame de citar erroneamente o glorioso verso durante um dos mil e quinhentos lançamentos de livros mensais de nossa culta loirinha esfarrapada pelo sol.
Claro que minha pouca vaidade jamais permitiria que eu me ofendesse pelo uso indiscriminado do que foi apenas uma simples molecagem: a deturpação de um importante símbolo de nossa cidade. Mas de vez em quando dá vontade de fazer como aquele escritor que estava assistindo a uma palestra em que, lá pelas tantas, uma ideia sua foi citado como de outro. E, mesmo sendo tímido, o “verdadeiro autor da importante descoberta” se levantou da plateia e interpelou o palestrante:
— Me desculpe, nobre amigo, mas esta frase não é de fulano de tal! Sei que não estou sendo educado te interrompendo. Mas “esta” ideia é minha, e tenho tão poucas que acho justo defendê-las com unhas e dentes!

"O Ano Envelheceu", crônica de Pedro Salgueiro para O POVO



O ano envelheceu cedo, senhores, eventos de toda sorte foram apodrecendo suas vísceras, minando seus frágeis alicerces. 
A cidade envelheceu de política e futebol, viveu mais de bastidores que de cenas, envelheceu nas sombras, construiu em silêncio suas podres carnificinas.
O país envelheceu devagarinho, com tanta lama à direita e à esquerda do surrado caminho.
Envelhecemos todos, estupefatos com o fim esperado, longamente anunciado, engendrados em seus vis maquinários.
Apodreci eu, por dentro e por fora; cada tripa escondida no mais recôndito lugar: esconderijos de todas as vergonhas minhas e dos outros, todos.
Apodreceram os inimigos fartos em maldades e covardias. Apodreceram todos, como as demais coisas esquecidas nos armários mais esquecidos.
Apodreceram os poetas engalfinhados com as lutas mais vãs, mais comezinhas e fúteis, como brigas de casais que nem sabem mais por que brigam essa briga em comum, mal sabendo que são o fazem é o que lhes restam, como restos de peixes apodrecendo nas coxias de uma calçada do subúrbio mais distante.
Apodreceram todos os domingos, as segundas, as terças e quartas, as quintas e os poetas de quinta, apodreceram as sextas, mas ainda restam luminosos (até quando?) os sábados.
Apodreceram os ladrões, engravatados ou não, os donos de bares mal humorados pelo eterno fel que nos servem impunes.
Apodreceram todos, enfim, desta infame loirinha desmiolada pelo sol. Apodreceram os daqui e os que vieram do interior. Apodreceram de sol e de sal.
Apodreceram, principalmente, os que se encharcaram de perfume, de roupas caras, de livros raros, de desculpas esfarrapadas...
Apodrecemos nós. Os simples mortais deste lado de cá das mil e uma Aldeotas, dos seus vis e servis clubinhos.
Apodrecemos e escorremos sem fins pelos buracos dos trens subterrâneos que nossa insana arrogância cava há séculos. Que nossa burguesiazinha sonsa cava há séculos, que nosso escroto povinho cava há séculos...
Pois o ano envelheceu, senhores, e apodrecemos todos na espera deste outro que bem já nos diz a que vem!
O ano apodreceu, senhores...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

"Quando o Amor é de Graça XIX: Amores (se) Vãos", de Raymundo Netto para O POVO (12.12)


Drummond, Vinicius, Bandeira, Quintana e Paulo Mendes Campos


"Depois de te perder, te encontro, com certeza,
talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada; nada aconteceu.
Apenas seguirei, como encantado, ao lado teu." (Chico)

A primeira garota a despertar-me o sentimento de esquecer de mim tinha nome de flor, entretanto, nada de peitos, nem bunda, as pernas eram finas e os cabelos escureciam o rosto alvo, decorado em sardas, de quase não ver os olhos acastanhados. Ora, ela contentava apenas 9 anos! Nem sei como se deu, nem como começou. Lembro apenas de seu sorriso e do inocente desinteresse a minha figura esquálida, repleta de apelidos, protegida dos colegas moleques pela irmã mais velha.
No ano seguinte, mudando de escola, encantei-me por outra garota, mais madura, com 10 anos, que habituava cobrir as mechas negras em gorro de crochê azul. Eu, nos finais de semana, por não suportar-me em saudades, ia ao mercadinho em frente a sua casa, com a desculpa de comprar biscoitos, mastigados com a lentidão da espera de a qualquer momento vê-la — e apenas isso — passar por trás do muro baixo.
Com o fiar dos anos, a adolescência, percebi: passava à calçada uma, apaixonava-me. Cruzava por ali outra, também. E assim se movia a torcicolos o coração de menino para lá e para cá, enamorando-se intensamente, sempre de súbito, por estranhas das quais nunca foi merecedor sequer de descuidoso olhar.
Aos 13, num esboço de reflexão prematura, pensei: alguma coisa está errada! Desconfiei se não constatava ali a promessa de um tarado, um pervertido. Promessa essa, decerto, não cumprida ao longo de uma vida sempre muito solitária, ensimesmada e pensativa. Na época, ironicamente, o desejo de seguir a carreira sacerdotal, a Bernardo Guimarães — eu gênio e a cidade proibida, Margarida —, nada de envolvimentos que pudessem atrapalhar o destino já escolhido. Ainda assim, entre os intervalos dos serviços de igreja, passava horas infindas da mais pura adolescência ouvindo músicas melosas, gastando-me em sinceras e bizarras quadrinhas apaixonadas. Que sacrilégio, hoje sei, com tanto que já se disse em completude sobre o amor... Talvez, por isso, quando um candidato a poeta mostra-me seus versos, dá-me logo a vontade de dizer-lhe: “Desista enquanto há tempo! A boa poesia é sempre muito difícil e a falha, assim como ao violino, é imperdoável”.
Não surpreende então que meu primeiro beijo tenha-me chegado em uma tarda noite aos 20 anos — por iniciativa de uma garota de ideias cacheadas e com nome de pintura —, e durado dois anos de um tempo que no próprio se encerrou, deixando-me largo ensinamento: a melhor coisa do fim de um primeiro amor é descobrir ser possível ter início um segundo, assim como também concluí-lo e partir para um terceiro ou a um quarto. Tudo é questão de decisão. Para os mais românticos, os quase religiosos, isso é demasiadamente herético, cabendo um protesto magatônico de eu não saber de fato o que é amar ou ser amado. Sim, considero a possibilidade de caber-me tal maldição do egoísmo, do desamor profundo e da esterilidade de um coração ateu, embora compreenda que grande fosse esse amor não caberia nele a vaidade ou afetação. Sabe-se lá se “l'amour n'est pas pour moi”, como apontava-me uma amiga aos gritos de uma canção. É-se possível o maior amor do mundo ser aquele do momento, sem tempo de mágoa, remorso ou ressentimento, apenas brilho no peito livre de um tudo, mesmo de não caber na memória o rosto da amada, posto tal chama viniciana, a levar, como sonho, por poucas horas, um dia ou dois, ou tão contrário a si mesmo, como amor camoniano, por uma vida inteira. Para mim, o amor anda de mãos dadas e é no beijo perfeito que devora o seu espírito. Agora, sentado à janela a emoldurar um imenso céu estrelado que não existe em minha vida, trago na pele o que vem de Drummond, o mesmo que me matou em desastre: “Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor à procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa, amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.”

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

"Segredos", Pedro Salgueiro para O POVO (05.12)



“O que se diz é que o desejo atual das pessoas de se mostrar, de se exibir, de que sua vida tenha testemunhas (o exemplo citado é o das pessoas que penduram sua vida na internet), talvez seja o resultado de uma nostalgia da velha ideia de que Deus era testemunha de tudo que fazíamos, de nossa vida inteira.”
(Javier Marías, entrevista aO GLOBO)

Numa das poucas pistas que deu para o fato de ter deixado de escrever (ou pelo menos de publicar), Raduan Nassar disse, em rara declaração, que o escritor é como aquele menino que os pais colocam na sala diante das visitas para se mostrar: recitar versos, cantar de cor uma canção, fazer “de cabeça” operações matemáticas, tocar algum instrumento musical ou simplesmente dizer gaiatices.
Sempre me intrigou o motivo que leva alguém a transpor para o papel (hoje à tela) seus segredos mais bem guardados, suas taras mais secretas, seus instintos menos públicos. Deixa-me de cabelo arrepiado (o pouco que tenho) a perspectiva de que um estranho me desvende atrás do novelo de uma frase. Que do emaranhado de palavras brote, para um atento leitor, o monstro que sou (somos todos nós!?) na intimidade do coração.
Assusta-me a necessidade desenfreada que as pessoas têm (temos) de se expor, de se “amostrar”, de se desvendar inteira para essa multidão de estranhos que as (nos) rodeiam. E essa carência de reconhecimento, de não serem anônimas no mundo, (ou sempre foi assim, hoje apenas é mais visível?) se tornou doentia.
O exibicionismo impera na internet e fora dela. Facilmente sabemos quase tudo da vida de qualquer um: não só de seu corpo, tatuagens e manchas, mas até nuanças emocionais. Fotos e confissões disputam espaços nos blogs e sites. Fala-se publicamente de finanças e sexo, de trabalho e viagens, de projetos e sonhos. Nós — sem que nenhum governo tirano, nenhum sistema político sofisticado, nos obrigue — nos colocamos numa bandeja prontos para ser servidos.
Quisesse saber de segredos, antes: necessitava o marido suspeitoso contratar detetive para seguir a esposa (ou o contrário, claro), a empresa enviar funcionário à vizinhança do futuro empregado. Serviços secretos, de espionagem doméstica ou empresarial, pública ou privada, proliferavam em várias escalas da sociedade.
Hoje não, bastam alguns minutos na frente do computador e já sabemos o signo, as preferências culinárias, a ideologia política ou religiosa, as taras e fetiches e até (pasmem!) projetos de vidas e sonhos de qualquer pessoa, seja ela uma simples doméstica ou um pedante professor universitário.
Claro, não colocamos todas as verdades, pois muitas vezes nem mesmo nós as sabemos. Deixamos apenas pistas. Fotos e pegadas que jamais (me fala um amigo fanático pela “grande rede”) poderão ser apagadas.
Se formos baixos, ficamos altos; se pobre, ricos; se desinformados, copiamos citações no Google.
Criamos nossos próprios “fakes”. E saímos (pior, nem mais saímos) por aí completa ou parcialmente Frankensteins.
Resta-nos somente, na nossa incontrolável ânsia de exposição, saber quem vai nos inventariar no futuro.
Quem vai comer esse prato quente que ora servimos a todos?

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"Literatura? No Ceará não tem disso não!", crônica de Raymundo Netto para O POVO (28.11)



Quando tive que elencar obras de autores cearenses para publicação na coleção “Nossa Cultura” da Secretaria da Cultura do Ceará, achei que teria alguma dificuldade. Qual nada. Acabei por descobrir que a maioria dos livros publicados no Ceará só teve uma primeira edição — muitas vezes em tiragens mínimas —, mesmo aqueles que são considerados referências da historiografia literária: “O Canto Novo da Raça”, livro inaugural do modernismo no Ceará, “Coroa de Rosas e de Espinhos”, de Mário da Silveira, autor precursor desse modernismo, “Prelúdios Poéticos”, de Juvenal Galeno, marco do romantismo cearense, “Quem Com Ferro Fere com Ferro Será Ferido”, também de Galeno, pioneiro da dramaturgia escrita e encenada no Ceará, inédita e publicada 151 anos depois, “Obra Perdida de Américo Facó” (“Sinfonia Negra” e “Poesia Perdida”), “Minha Terra” – poesia parnasiana —, e “Retratos e Lembranças”, ambos de Antônio Sales, “O Livro dos Enforcados”, contos de Gustavo Barroso, “Romanceiro de Bárbara”, poesia épica de Caetano Ximenes Aragão, dentre outros. Para mim, é histórico e notório o desinteresse com a manutenção e difusão do nosso patrimônio literário. E, confesso, digo “nosso” sem acreditar muito na existência do sentimento de pertença do povo cearense, a mesma “inexistência” que estimula a destruição completa dia após dia do patrimônio artístico-cultural e arquitetônico no Ceará. Chego até a crer que os posteriores “lamentos”, após as constantes derrubadas nos feriados prolongados, são falsos, frutos da simples falta do que fazer ou dizer.
Durante a pesquisa para a publicação de tantos títulos, descobri também que há pouquíssimos estudiosos na temática — o que a princípio deixou-me confuso — e os que ainda encontro, muitos deles, escrevem sobre as obras baseados na pouca e rara crítica literária existente, sem jamais ter tido o trabalho de lê-las, confiando piamente nas opiniões, por vezes equivocadas, de antecessores. Também encontrei outros que defendem, sem tremer a cara, erros históricos, mas que, como ninguém sabe de nada nem tem o interesse de saber, acabam por deixar como estar sem entender que aquele erro difundido e propagado, num futuro não tão distante, pode vir a ser levado a sério.
Conheço muita gente do curso de Letras que afirma, estranhamente, não gostar de literatura, menos ainda da cearense, que não conhecem. Acham uma bobagem perder tempo discutindo e estudando isso, enquanto cada vez mais a linguística ganha novos adeptos.
Na escola, depois do advento do ENEM, se fala cada vez menos sobre a literatura do Ceará. A impressão que se tem é que aqui, além da aridez do clima, também nossos escritos não vingaram. Nada se colhe de bom no Ceará é o que provamos.
Enquanto que no curso de História da Universidade Federal do Ceará as disciplinas de História do Ceará I e II são obrigatórias, no curso de Letras, da mesma UFC, as disciplinas de Literatura Cearense I e II são optativas e, devido a diversas questões, não são ofertadas em todos os semestres. Ora, é óbvio que se essas disciplinas fossem obrigatórias — são muitos os argumentos em defesa disso —, não faltariam professores nem alunos para ela. Tememos que a ausência da oferta, a aumentar a cada semestre, se torne ainda mais frequente, a exemplo do princípio número um do marketing: “Aquilo que não é visto não é comprado!”. Outra prova disso: quando lançava os livros da coleção “Nossa Cultura”, não raro os editores presentes me diziam que eu só editava aqueles livros porque trabalhava em órgão público, pois que todos sabiam: aqueles livros não eram de interesse de consumidores/leitores. Creio que eles não estavam enganados. Apenas pelo fato de a Bienal do Livro ter como tema a Padaria Espiritual — temática criada por mim — fez com que algumas editoras investissem na publicação de livros em torno dela, assim como sabemos que outras editoras só se empenhavam na publicação de clássicos e contemporâneos cearenses quando as obras eram, na época, elencadas no Vestibular. E, por esse motivo, apenas por esse, os professores e alunos das escolas do Ceará as liam. Mas, o melhor: muitos deles se surpreendiam com a possibilidade de se ler e de se gostar da literatura feita em sua própria terra.
Da mesma forma, penso qual é o estímulo de um professor para se debruçar na pesquisa e no estudo de algo tão desvalorizado, sem procura, quanto essa misteriosa, inalcançável, talvez odiosa, Literatura Cearense.
Dia desses fui convidado para participar como jurado de uma semana cultural em uma grande escola de Fortaleza. Numa das salas, uns adolescentes apresentaram uma espécie de jogral com recortes de textos poéticos de autores, a maioria contemporâneos, de outros estados. Perguntei o porquê de escolherem aqueles autores sem destaque nenhum. Responderam-me: “eles eram desconhecidos e as pessoas precisavam saber que há muita coisa boa na nova poesia brasileira”. Surpreso, perguntei, então, o porquê de naquela lista não constar autores cearenses. Foi quando uma mocinha de olhos brilhantes de 16 anos, linda e ingênua como uma pérola alencarina, respondeu-me no ato: “No Ceará não existem poetas." A orgulhosa mãe da menina, que distribuía bolachas e cafezinhos para a audiência, tremeu-se toda com a afirmação lampejada da criatura, objeto de seu candor: "Tem certeza disso, minha filhinha?". Sim! Como todo jovem, naquela idade, ela tinha todas as certezas do mundo!