Segundo Otto Maria Carpeaux, no livro ideal em que Bandeira realizaria a ordem da sua obra, ela partiria da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”, para outra vida que viera ficando “cada vez mais cheia de tudo”.
É uma grande ordem, reconheçamos. Mas a ordem do grande livro de Bandeira, para os leitores, não precisa ser a ordem que lhe deu a melhor crítica literária. A nossa ordem particular, o nosso Bandeira é uma viagem íntima com os poemas que nos abalaram desde quando éramos adolescentes. E nos dizíamos, surpresos, “então isto é poesia!”. E por isso mesmo, por força dessa revelação, passamos a louvar e a ser amantes de:
“PORQUINHO-DA-ÍNDIA
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.”
A parte que vem da razão nos fala que por trás dessas linhas existe um bruxo, um homem experiente na arte de criar um poema, um ser feroz porque fere porque é poesia. Esse poema cresce pelo pequeno, pelos diminutivos: porquinho, bichinho, limpinhos, ternurinhas, até explodir no inusitado, no súbito golpe, no absurdo da relação entre uma cobaia e o amor, “o meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada”.
Olhem. “Porquinho-da-índia” é um poema escrito antes de 1930, mas um verso diz, “Levava ele
pra sala”. Isso até então não era poesia nem português. Até hoje, em 2011, os gramáticos de boa
fama condenam quem usa “levava ele”. Levava-o, corrigem, e vamos todos ser idiotas na felicidade da norma culta. Levava-o, para o inferno. E nada mais antipoético que um “levava ele”, sentenciariam os asnos de 1930 a 2011 e vindouros.
“POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de
apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de
cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare.
- Não quero saber do lirismo que não é libertação.”
Bandeira é autor de versos que atingiram aquele estado raríssimo de ir além do gosto da gente culta. Viraram quase uma reflexão, um anexim, um provérbio. Exemplos disso vêm sem muita pesquisa: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”, ouvimos, quando nada mais resta fazer. “Foi o meu primeiro alumbramento”, e vejam que palavra bela, alumbramento, posta em circulação e moda na língua. Todos apreendemos de imediato o significado, porque o poeta nos diz isso depois de “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo”. Assim como também apreendemos pelo poema o sentido de “Vou-me embora pra Pasárgada” – fugir, sumir, buscar abrigo em uma terra utópica de felicidade.
Essas coisas não se escrevem por dom ou presente dos deuses. Versos assim se conseguem ao longo de muita vida e estudo e observação.
A linha do poema de Bandeira parece vir curtida, decantada, palavra por palavra. Raro ele corre em voo livre de condor, antes plana, paira, na altura, contraditoriamente parecendo voar baixo, ao nível do chão, do cotidiano, do minúsculo dos dias.
Nele, o sentido do poema está antes no verso.
Essa linha lapidar que sobrevive ao poema, à circunstância, não se encontra em outro poeta brasileiro com a frequência com que se encontra em Bandeira. “A vida inteira que podia ter sido e que não foi” é um verso que nos fica, para sempre, é uma luz que guardamos até mesmo sem conhecer o poema “Pneumotórax”. Até mesmo sem saber que o poeta vai para 125 anos.
Urariano Mota é pernambucano, autor de “Os Corações Futuristas” e de “Soledad no Recife”, que recria os últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, executada por Fleury com o auxílio do traidor.
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