segunda-feira, 31 de agosto de 2020

"Amor Perfeito", de Raymundo Netto para O POVO

 

Era louco por sogras... e essa penosa constatação lhe veio justamente quando ao último desenlace amoroso: não sentia falta da namorada tanto quanto de sua mãe. O mais estranho é que a vira apenas poucas vezes e nelas mal se falaram. Isto porque a ex-namorada evitava aproximação entre eles e a condição imposta para isso acontecer era amargamente burocrática: “Só se noivassem!”

Ele, que era mais velho, teve outros relacionamentos. As sogras anteriores, quando percebiam o mínimo abalo no relacionamento do casal, interferiam, buscavam contornar e, quando fracassada a investida, até deixavam de falar com as filhas: “Como pode abrir mão de um homem assim? Ficou louca? Homem bom desse não tem mais, não, hein?”

Nisso, mesmo após o fim do namoro, perdia-se a namorada, mas a sogra, esta, assim o seria para sempre!  

Ainda durante o namoro, quase clandestino, dona Dedé – era o seu nome – deu entrada no hospital. Ele, diversas vezes e com muito jeito, se ofereceu a ir visitá-la, levar algum mimo ou mesmo se postar ali para prestar qualquer assistência, mas a namorada sempre o dispensava: “Se precisar, eu digo.” Ele insistia; ela recusava. Ficava arrasado, pensava na dona Dedé a noite inteira, ligava cedo para saber notícias, o que o médico disse, que remédio tomara, o diabo a quatro.

Outras vezes, quando a namorada desabafava sobre as discussões com a mãe, ele por fim tomava o partido da segunda. Acreditava tanto na sua santidade, capaz de jurar que seria ela até virgem.

Quando recebeu, pela namorada, um presente de dona Dedé, extasiou-se, acreditando ser possível a realização de seu sonho: se imaginava ao lado da sogra, coladinhos no sofá, ressuscitando esquecidos álbuns de fotografias, assistindo ao especial do Roberto Carlos, cantando em dueto os detalhes de dores eternas de cotovelo, debatendo novelas, estirando à cozinha intermináveis histórias de seu acervo de passados, suas crenças, sonhos e amores, ao sabor do cafezinho e de pães de queijo. Assim, suspirava uma dor profunda e não perdoava a filha ingrata que, egoisticamente, impedia essa felicidade.

Não, isso não poderia terminar assim...

Meses depois, arrastava um carrinho de compras de supermercado quando a viu, ali, sozinha no mesmo corredor, escolhendo potes de doces. Em silêncio, desmanchou o queixo, lentamente, sobre os braços cruzados no cabo pegador de seu carrinho, animando um olhar enamorado de pôr de sol. Guardava ali, em seu fragilíssimo relicárdio, a imagem robusta e vivida daquela mulher.

Dona Dedé – como toda mulher tem um radar apurado – sentiu-se observada e desviando o olhar das prateleiras percebeu aquele admirador e, mais, o reconheceu: “Você?”

Alheio ao nariz torcido e olhar desdenhoso de sua admirada – decerto tomara as dores de sua filha –, ele aproximou-se, resoluto e saudoso, tomando-lhe de assalto a boca com um beijo tão perfeito quanto um amor jamais consumado.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

"Ary Sherlock: 90 anos", de Ricardo Guilherme

 

Ary Sherlock (Sobral/CE, 1930) estreia como ator na peça Os Mortos Sem Sepultura, de Jean-Paul Sartre (tradução e direção de Vicente Marques), encenada no Teatro José de Alencar pelo Grupo Teatro Experimental de Arte, em 25 de novembro de 1954. A partir de 29 de março de 1956 integra-se à tradição de durante a Semana Santa, no Patronato Nossa Senhora Auxiliadora (avenida Imperador), encenar sob a direção de Waldemar Garcia a peça Cristo no Calvário (com versos de Eduardo Garrido) na qual interpreta Caifaz e posteriormente Judas. Atua também em A Canção Dentro do Pão, de R. Magalhães Júnior e A Revolta dos Brinquedos, montagens da Comédia Cearense dirigidas por Haroldo Serra em 1958.

Ainda nos Anos 1950 faz parte dos Grupos Teatro Jangada e Teatro de Brinquedos (este de Rui Diniz, pioneiro em teatro para crianças), dirige os universitários que representam o Ceará no Primeiro Festival de Teatro de Estudantes do Brasil, ( promovido por Paschoal Carlos Magno em Recife, 1958), funda o Grupo Jograis do Ceará (que se apresenta com poemas dramatizados sobretudo em clubes e escolas), assina colunas no jornal Gazeta de Notícias (sobre literatura, teatro e cinema) e compõe o elenco de novelas das rádios PRE-9 e Dragão do Mar.

Na TV Ceará Canal 2, primeira emissora da televisão cearense, fundada em 26 de novembro/1960, Ary se torna roteirista e diretor, liderando intensa produção de teledramaturgia inclusive inúmeras novelas, como O Pobrezinho de Assis. Entre as suas diversas participações em teleteatros destaca-se a atuação (personagem Gedeão) em Os Deserdados, peça de Eduardo Campos adaptada para TV por Hildeberto Torres que em concurso internacional na Espanha conquista (1967) a terceira colocação do Prêmio Ondas.

Ary faz incursões também no âmbito musical, pois figura como letrista da trilha sonora de pelo menos duas de suas telenovelas da década 1960: Quando as Nuvens Passam (“Quando o cigano canta parece despontar na garganta/ o eco do coração/ É como se forte sentisse/ e em cada existisse/ a saudade que é o tema da canção”) e As Duas Órfãs (Quando o vento passa/Leva a fumaça da recordação/ Quando o amor termina/ deixa a saudade no meu coração”).

Em 1968, Os Diários e Emissoras Associados, conglomerado ao qual pertence então a pioneira TV Ceará, passa a adotar em rede nacional o videotape e concentra no Rio de Janeiro e em São Paulo os seus núcleos de produção teledramatúrgica. Desfaz-se, então, no Canal 2 o departamento de teleteatro e Ary Sherlock adota Teresina como campo de trabalho, exercendo a crônica social no jornal piauiense O Estado e capitaneando (de 1968 a 1973) as encenações de A Paixão de Cristo, O Cão Gasolina (representante do Piauí no V Festival do Teatro de Estudantes/Rio de Janeiro, 1968), O Auto de Lampião no Além, de José Gomes Campos, e A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, versão para o palco do romance homônimo de Jorge Amado.

Em outubro de 1973, Ary volta a Fortaleza para no Canal 2 roteirizar e dirigir O Som, a Luz, as Cores e os Muitos Amores de Fortaleza, show que em 26 de novembro de 1973 inicia no Ceará o processo de emissão de TV em cores. O programa (dramatização de um poema de Guilherme Neto por Ivete Pereira, Cleide Holanda e Ricardo Guilherme, entre outros) apresenta letra de sua autoria, musicada por Rodger Rogério: "A luz do sol/ o verde do mar/o azul do céu vamos mostrar/ coisas bonitas da capital/ coisas queridas do Ceará/ TV a cores, canal 2 é um encanto, uma beleza/ O som, a luz, as cores e os muitos amores de Fortaleza".

Em 7 de março de 1974 surge a TV Educativa Canal 5 (atual TVC). Implanta-se, por iniciativa do Governo do Estado, o sistema de tele-ensino (do então chamado Primeiro Grau) e dá-se a efetivação de Ary Sherlock no cargo de produtor-executivo que lhe enseja principalmente a criação de telenovelas didáticas como Futurama e O Sobradão nas quais as abordagens dos conteúdos das disciplinas estudadas em cada dia letivo contextualizam as ementas e o currículo escolar em situações cotidianas, vivenciadas pelas personagens na trama. Motivado por essa sua inserção no campo educacional, Ary conclui graduação em Pedagogia (1983) e Especialização em Supervisão e Administração Escolar (1985) na Universidade de Fortaleza.

Prestes a se aposentar e também depois da aposentadoria como funcionário público (em 1994), Ary intensifica sua carreira de ator teatral representando textos como A Mente Capta, de Mauro Rasi (1989, 1995), Francisco, o Homem que se Tornou Santo, de José Alberto Simonetti (1999), A Paixão de Cristo, de Almeida Garret (de 2001 a 2014), Coisas, Palavras e Canções, de autores diversos inclusive Ary Sherlock e Ricardo Guilherme (2008), O Fabuloso Catador de Histórias, de Lana Soraya (2010) e Na Corda Bamba, de Aldo Marcozzi (2012). Participa também dos filmes O Noviço Rebelde, de Tisuka Yamasaki (1997) e Luzia-Homem, de Bruno Barreto (1987), bem como da minissérie Sedição do Juazeiro, de Jonasluís de Icapuí (2012) em que interpreta o papel de padre Cícero Romão.




domingo, 16 de agosto de 2020

"Eu que não te amo", de Raymundo Netto para O POVO


      “Como é que eu não te amo, seu, seu, seu... ABESTADO!”

Enfurecida, ela só faltava arrancar os miolos de cabelos todas as vezes que ele, no calor de qualquer ruído sentimental, concluía, pesaroso: “É por que você não me ama mais...”

Para uma mulher apaixonada, não existe nada mais abominável do que negar a ela o reconhecimento desse exercício sobre-humano de amar. Então, desconcertada, mudaria completamente o rumo e o tom da conversa, tentando, a todo custo, provar a ele a magnitude de seu amor, o que parecia não ser pouco nem fácil.

Eles se conheceram como enredo de novela. Nem um nem o outro imaginaria que dali lograsse sequer amizade. Ao contrário, desde então, criariam maneiras de mudar seus caminhos para se encontrar em suas solidões, desesperanças, afinando-se em seus insucessos e frustrações, de maneira que certo mesmo era tudo dar errado, desde o início. Indiferentes a essa paradoxal e desastrosa constatação, amavam-se.

Logo os amigos passaram a sentir a falta dela, mas sabiam: “Se desapareceu, está de caso novo...” Até que, uma noite, ela os encontrou em um bar de karaokê. Ao invés de sua carnavalesca alegria, trazia olheiras impiedosas, testemunhas de uma dor. Queria beber não uma, nem duas, mas todas, para esquecer e afogar o remorso.

Os amigos, lá pelas tantas, sentenciavam: “Você está doida. O que viu nele? Velho, feio, desajeitado, sem graça. Chato que dói. Sozinha estava melhor, sabia?”

Suspirava, buscava forças do fundo do poço, chicoteava o pescoço e cantava aos berros: “Quando digo que deixei de te amar, é porque te amo... Quando eu digo que não quero mais você, é porque eu te quero...” Os amigos e outros clientes faziam coro, lançando os braços num ritmo de auditório de programa de TV, assistindo às lágrimas que desprendiam enegrecidas daqueles olhos grandes e ciliosos, bem apertados, decerto para enxergar melhor o autor daquele drama.

Noutro dia, tomada por uma noitada de conselhos e pitacos, partia para uma nova discussão de relacionamento. Começava com a voz serena, analisada: “Não podemos ficar mais assim, amor. Assim eu não quero. Você tem que mudar, senão não dá, não aguento.” Após algumas horas de exposição de argumentos, ele cala o silêncio e se manifesta: “Você só diz isso porque não me ama.” Ela endoidece, dá-lhe uns beliscões e sai do carro, batendo a porta furiosa e decidida a não vê-lo nunca mais. Desta vez, cumpre. Durante meses, nenhuma notícia, nenhuma inusitada serenata de perdão e chocolates. Desiludida, encharcou o travesseiro por noites consecutivas, numa inconsolável abstinência de quase morte.

Mas na vida nada se perde; tudo se transforma. E aquela saudade, tão singela quanto um poema juvenil, se converteu em ódio feroz, cosido pelo capricho de recuperar a autoestima e a sua afamada imagem perante seus solitários amigos.

Anos depois, numa manhã de temporal, ela guiava seu carro quando o reconheceu caminhando na rua. Veio-lhe o desejo irreprimível de passar por cima. Acabaria de vez com aquele sofrimento desigual. Não teve coragem. Então, desviou a direção e passou raspando, jogando-se em alta velocidade sobre uma poça de lama, banhando-o por completo. Pelo retrovisor, enquanto assistia gargalhante àquela figura estática e molhada, não imaginava que, naquele mesmo momento, ele sorria triunfante: “E não é que ela ainda me ama?”



 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

"Presciência Crônica: uma Odisseia sem Homero", de Raymundo Netto, publicada há 11 anos

 

Crônica publicada originalmente no jornal O POVO em 4.11.2009

 

Fortaleza, cidade-sede, 2070. Abaixo do plúmbeo céu, o trânsito disputado por carros e pessoas declina da tradicional buraqueira nas ruas capeadas por betume artificial feito do chorumento do lixo.

Seguindo as avenidas, os OutWindows, imensas telas de diodos orgânicos com imagens tridimensionais anunciam automóveis, dentifrícios, sapatos femininos e lojas da moda.

Condomínios de apartamentos de 45m2, sob redomas de refrigeração e purificadores de ar, encerram centenas de pequenas famílias – o controle da natalidade é rigoroso. Na sala, nos quartos, no banheiro, monitores com programação pay-per-view simulam janelas postas em paredes de espelhos. Nas áreas públicas: playgrounds, lan houses, quadras, lojas de conveniências, decks e muita grama artificial. Por todos os lados, câmeras, cercas elétricas e alarmes sonoros que causam, pela cidade, sobressaltos a todo instante.

As pessoas quase não saem mais de suas casas –  muitas trabalham nela: sistema home-office. O inesperado não existe – pensam! Tudo é planejado e previsível. A vida e a morte. Aliás, a eutanásia, como o aborto, a pena de morte e o uso da maconha são legais. Sonegar, porém, ainda é ilegal e continuam sonegando. Os cemitérios foram extintos. Cremar é obrigatório. Não se discute mais sobre gênero: ser homem ou mulher não faz diferença. Todos são potencialmente híbridos.

Em torno da cidade-sede, as satélites — aglomerado de favelas e fracassados conjuntos habitacionais — se disseminam e crescem a cada dia, fomentadas pelo abismo gerado pela exclusão tecnológica e mercantil, fervendo em miséria, doença, violência e rancor, desejosas do inevitável dia em que, juntas e cansadas de privações, tomarão a sede de inocentes burguesinhos, consumistas inúteis, mantenedores do sistema selvagem de capital.

Nos transportes coletivos, a maioria com andar superior, as pessoas dormem, ouvem música, leem mensagens em seus clocks-mails –  relógios especiais em sistema de rede wireless. O celular foi abolido — descobriram que predispunha aneurismas e acidente vascular cerebrais — usando-se, então, fones com discagem vocal.

As cidades do interior, por ausência de políticas contínuas que evitassem o êxodo de seus jovens à capital, foram esvaziadas e arrematadas a preço de nada por igrejas que passaram a comprá-las e a construírem pequenas promessas de “paraísos”. Nelas, as autoridades, todas elas, são pastores, eleitos por “inspiração divina”. Os reverendíssimos mantêm, por meio de legislações intermináveis, a cidade “higienizada” — e o grande comércio local — sobre o jugo da tirania celestial, censura dos meios de comunicação, impostos – físicos e espirituais – altíssimos e uma harmonia exclusiva e dogmática.

Quase todas as faculdades aderiram ao ensino a distância. Em algumas, como a da Filosofia Livre Pensar — que há anos tenta obter aprovação do Ministério Federativo de Educação —, seus alunos, alcunhados de "espantalhos" e coordenados pelo prof. Aquino, ainda resistem em aulas presenciais nas quadras, praças e vielas das cidades-satélites.

Nas farmácias, ambulatórios coloridos destinados aos portadores das pandêmicas síndrome do pânico, TOC e depressão disponibilizam kits-coktails reequilibrantes e fornecem óculos especiais Dreams’Pixels de projeção de imagens e som, “bengalas” endorfinomiméticas.

Os carros à eletricidade fracassaram e abriram espaço para os movidos por etanol celulósico e à água dessalinizada, nos quais, de seus escapamentos, flui um vapor branco que deixa no corpo dos transeuntes certa sensação grudenta de maresia.

Pneu. Droga, nada substituiu o pneu!

Na paisagem, shoppings de resinas poliméricas e aço de usinagem facilitada tomaram dimensão de bairros. O Cocoh é o maior deles, homenagem ao rio completamente aterrado num passado – o antigo shopping do local foi demolido após a inesperada falência do grupo. O segundo, o Trilha das Garças, no Lagamar, que dizia promover a conservação ecológica, foi construído sobre o rio onde as alvas pernaltas, agora extintas, e os pescadores se encontravam.

Os grande fóruns e casas legislativas, parceiros fiéis dos poderes dominantes, para reduzirem o caótico tráfego aéreo e assegurar a distância do povo, mudaram-se de vez para BrasILHA, onde atuam, quando o fazem, por protegidas e impessoais vias e plenárias eletrônicas.

Hospitais públicos – assim como as escolas e a segurança – só existem nas cidades-satélites. Na Sede, as cooperativas de médicos aliadas aos grandes laboratórios farmacêuticos monopolizaram a atenção — inclusive a financeira — da saúde. As doenças, misteriosamente, só aumentam!

Depois que conseguiram vender o Cine São Luiz aos neopentecostais, abrasadas foram as línguas de fogo que consumiram o resto do centro da cidade. Nada mais ficou em pé. Suas ruínas marginais fazem parte de um sítio arqueológico conservado para pesquisas universitárias que não servem para nada, assim como a plataforma do Lattes, detonada num bug irreversível. Também estão esquecidas as ruínas de antigos resorts e de parques aquáticos, simulações de um Caribe commodus vivendi metido a besta que expulsou a população nativa, evadiu divisas e descaracterizou para sempre a paisagem natural.

Na praça dos Leões, a estátua da Rachel de Queiroz continua sem óculos e sem cabeça, sendo agora acompanhada da estátua de uma jornalista da cidade que, ao contrário dos demais, conquistou a sua cadeira na Academia Cearense de Letras apenas após a sua morte. Aliás, a Academia, por não conseguir mais o vantajoso ingresso de políticos, juízes ou demais que intermediassem por recursos de subsistência, fechou as portas. Decadentes, outras dezenas de academias foram esvaziadas. Apenas uma resiste — com sede no coreto, mictório improvisado, da praça dos Leões — tendo como único representante e líder, o Lima Freitas, atualmente com mais de 130 anos. Vez ou outra o velho poeta, com seu surrado fardão, sai bengalando os ambulantes perdidos da praça, acusando-os de macularem aquelas calçadas com suas desprestigiosas presenças, tal qual um Jesus nos templos, gritando: "Academus! Academus!"

Na praça Poeta Mário Gomes, antiga do Ferreira, brincadeira de um prefeito, a Coluna da Hora sucateada não resistiu ao tempo. Do cacimbão, afloram entulhos do velho comércio e ossadas de jumentos.

Diante da escassez planetária de árvores, a Livraria — existe apenas uma rede, a BookMegaStore — vende livros impressos tão somente em forma de edições de luxo e em pequeníssimas tiragens destinadas a abastados colecionadores de arte. Os demais fazem download, por meio de assinaturas, para leitores óticos — curiosamente, os preços nunca diminuem e os autores continuam sem ter a certeza do que vendem — ou os adquirem em forma da mídia Blu-Ray MONDO, versão bisneta do CD/DVD. Mesmo com todas as restrições, comercializam-se Pirate Books. Hoje, a Livraria  lançará a coleção Obra Completa de uma autora cearense que residia em Aquiraz, anunciando, como bônus, hologramas seus em circuitos de entrevistas, enquanto outra, agora, romancista, bastante idosa, recebe um prêmio na África em reconhecimento pela obra.

José de Alencar é considerado, então, o mais revolucionário escritor brasileiro, seguido por seu discípulo e amigo Machado de Assis. Livros impressos também são encontrados na nova Biblioteca Pública — a antiga foi demolida para dar espaço ao Centro Cultural Dragão do Mar, parcialmente arrasado pelo avanço das águas que deixou submersos o prédio da Alfândega, a Ponte Metálica e o Acquário. Com pouquíssimos visitantes presenciais, a Biblioteca funciona com o Arquivo Público e mantém um amplo serviço de pesquisa e empréstimo on-line, por meio de cientistas da informação — os dantes bibliotecários.

Na Universidade Federal, ao lado do antigo bosque Moreira Campos, uma herma em bronze de um antigo professor anuncia “O último crítico e historiador literário do Ceará, cujo maior pecado foi não ter deixado substitutos”.

Há alguns anos, por não se ter mais o que falar de novo sobre os grandes nomes da literatura nacional, os alunos do curso de Engenharia Linguística e de Artes, antigo curso de Letras, se viram obrigados a estudar os esquecidos autores cearenses, descobrindo na pesquisa de microfilmes de jornais dos séculos XX e XXI que pouco se falava deles, e que, menos ainda — raras as exceções em flashs de colunas sociais cheirando a uísque — se tem registro de sua existência e de sua obra.

Rafael, atual estudante do curso, fora “sorteado” em classe com o nome deste autor que vos fala por meio dessas folhas d’O POVO (“Que droga... pode ser outro, não?”). Dirigiu-se à Midioteca — intitulada com o nome de um contista tamborilense devido à generosa doação, pela viúva, de seu acervo bibliográfico particular — e, em meio às crônicas delongadas, como esta que agora leem, encontrou o seu obituário:

— Caramba! E esse coitado morreu assim?

 

Esse texto encontra-se enfeixado na obra Crônicas Absurdas de Segunda, de Raymundo Netto, finalista do Prêmio Jabuti em 2016.

 


terça-feira, 11 de agosto de 2020

"Capitães da Areia: dicionário de língua e cultura", disponível para download GRATUITO.

 

Sobre a Obra:

"Recomendo, pois, a leitura atenta deste livro, não só como referência, mas como livro que se pode ler por deleite, pois há nos verbetes todo o encanto de uma paixão pelas palavras.

Ademais, julgo que os interessados em trabalhar da perspectiva culturológica têm muito a ganhar com a minuciosa e precisa descrição metodológica com que o autor nos brinda.

Na verdade, todo estudioso da linguagem, seja qual for a perspectiva, se beneficiaria da leitura desse Dicionário. Porque, insisto, ele não é apenas um dicionário, mas um repositório da relação vida-cultura-literatura estudada culturologicamente.

Encerro declarando que é um privilégio prefaciar Capitães da Areia: Dicionário de Língua e Cultura, de Vicente de Paula da Silva Martins. Nele vi que os culturemas estão presentes tanto na arte como na vida e que seu levantamento pode integrar arte e vida.”

Adail Sobral

Professor, tradutor e pesquisador - FURG/Pelotas / RS


O livro é dedicado a Mauro de Salles Villar, amigo, filólogo e lexicógrafo brasileiro, diretor do Instituto Antônio Houaiss, por ter me dado a oportunidade de contribuir com o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, através de sugestões de verbetes e datações a partir dos romances regionais, em especial os culturemas em Capitães da Areia, de Jorge Amado.

O Autor

 

Para referenciar, baixar e ler integralmente o livro:

MARTINS, Vicente de Paula da Silva. Capitães da Areia: dicionário de língua e cultura. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020. 256p. Disponível em http://www.pedroejoaoeditores.com.br/e-books1 [ISBN: 978-65-87645-37-7]
Ou
https://www.academia.edu/43833531/CAPITÃES_DA_AREIA_DICIONÁRIO_DE_LÍNGUA_E_CULTURA

 


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

"Lockdown", de Raymundo Netto para O POVO (na íntegra)



ATCHIIIMMM!
O que outrora poderia ser entendido como um desgracioso espirrozinho na intimidade e segurança do lar, naquele momento gerava grave inquietação, uma perturbação da ordem social.
Alardeando como uma sirene, Tomásia, paramentada com máscara e luvas, deflagra uma ação nervosa, agitando um borrifador com desinfetante. Bate no marido, grita que saia da cama e reclama a colcha trocada há pouco, rebolando-a no balde. Pergunta se o espirro pegou na parede, ensaiando com grossas luvas cor de rosa passar a esponja nela. Manda que tome o enésimo banho. Ele, que antes descansava solenemente em sua cama, grita: não aguentava mais tomar tantos banhos, lavar as mãos já descascadas de sabão e o troca-troca de roupas. Ela exigia: “Quer que eu morra, quer?”
Tomásia não perdia um noticiário, além de cutucar o aplicativo do celular de instante em instante. Numa perplexidade quase eufórica, perseguia o marido pela casa, atualizando-o daquilo que não o interessava: “Mais mortos. Mais de mil todos os dias.” Puxava do raciocínio e fazia umas contas nos dedos: “Deus me livre! Como não me preocupar?”
O marido, cujo ouvido estava cansado do soar da trombeta portátil do apocalipse, não aguentou e saiu nu de casa. “Se sair não volta mais, hein?”, avisou.
Entre as notícias, a milagrosa vacina que viria dar fim ao arborvírus, um parasita com estrutura parecida com a de plantas e grande capacidade de contágio.
Quando a súbita vacina foi anunciada e distribuída a todos os países do mundo, parecia a aguardada vinda do Messias, não se falava em outra coisa. Ali, pensava-se, o fim do pesadelo.
Tomásia, pela janela e pela TV, assistia ao povo nas ruas, em pleno Carnaval, se tocando, se agarrando, se beijando, lançando gotículas no ar como se fossem fogos de artifício: “Estão loucos?”, pensava, apertando o borrifador, como talismã, contra o peito inconformado. Também silenciava quando os vizinhos lhe batiam à porta: “Acabou, dona Tomásia. Pode sair, criatura!” Não saía nem a pau! Havia até quem achasse que morrera durante a pandemia, pois nunca mais fora vista.
E assim, os próximos meses: filas extensas de vacinação, multidões aglomeradas em festas que rompiam noites e dias, a salvação do mundo, o novo mundo: Aleluia!.
Porém, com o tempo, Tomásia percebeu o esvaziamento das ruas e o silenciamento da TV e do rádio. Nada nem ninguém nas redes sociais. Inquietou-se. Só assim decidiu, muito bem equipada, sair às ruas – pois não encontrou ninguém em seu prédio.
Quando chegou à avenida, teve uma visão escatológica: centenas de milhares de corpos tomavam as calçadas, a pista, as lojas, os muros e jardins. Corpos cinzentos, desfigurados, com numerosas pústulas verdes de onde rompiam galhos sinuosos e folhas de árvores. Em alguns, grossas raízes saiam das mandíbulas escancaradas ou pelo ventre em busca do solo, atravessando o asfalto. Noutros, mal se percebia a origem humana tamanha a deformação. O silêncio só era quebrado pelo vento corrente e pelo barulho das aves rapineiras que aos montes disputavam os restos de carne ainda possíveis naqueles cadáveres vegetativos.
“A vacina...então...” Ainda matutando, Tomásia tirou a incômoda máscara e completou o sorriso e o peito daquele ar úmido e puro da manhã, na certeza esperançosa e azul de que agora, sim, estava segura.



sábado, 1 de agosto de 2020

"Gargalhadas & Lágrimas", de Pedro Salgueiro para O POVO



Foto: Aurélio Alves (para O POVO)
Clique na imagem para ampliar!

Dentre as melhores páginas de Nelson Rodrigues estão as crônicas publicadas no jornal Correio da Manhã, entre fevereiro e maio de 1967, mais tarde reunidas na coletânea A menina sem estrela (hoje encontradas nos sebos em três edições diferentes); dessa seleta o escritor, no seu estilo exagerado e trágico, tratou em duas peças da Gripe Espanhola de 1918, nos seguintes (e terríveis) termos: “Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos”, que – mesmo bem antes da pandemia do Covid-19 – nos deixava assustados, ainda que fatos do passado tenha o poder de amenizar-se aos poucos na memória coletiva, mas os poderes hiperbólicos (e hipnóticos) das palavras do autor de “Vestido de Noiva” não nos permite esquecer aquele terrível drama quando o recordamos 101 anos depois: “...vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: ‘Aqui tem um! Aqui tem um!’. E, então, a carroça, ou o caminhão parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém. E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes”.
Porém o que nos deixa mais estupefatos após a leitura dessas sangrentas linhas sobre a peste de 1918 vem por contraste quando nos deparamos com a crônica dedicada ao carnaval do Rio de Janeiro de 1919 (lembremos que dos estimados 35.000 mortos no Brasil, o Rio “contribuiu” com 12.700 óbitos, nessa que é considerada a pior pandemia da história, que dizimou cerca de 5% da população mundial): “Toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída. (...) A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas. (...) O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal ou que outro nome tenha. Psicologicamente, ainda não ocorrera para nós a abertura dos portos. (...) E tudo explodiu no sábado de Carnaval. (...) Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola — e tão humilhados e tão ofendidos — que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias. Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: ‘Na minha casa não racha lenha./Na minha racha, na minha racha./Na minha casa não falta água./Na minha abunda’. etc. etc. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias; e iam assim de paroxismo em paroxismo.”
Lembrei-me, imediatamente, dessas crônicas (e da euforia suicida do carnaval de 1919) quando vi no jornal O POVO de domingo, 26 de julho de 2020, a inacreditável foto da aglomeração no trecho da Praia de Iracema conhecido como Praia dos Crushes, em Fortaleza, logo após a liberação parcial da quarentena.