segunda-feira, 26 de março de 2018

"De Pedra", de Raymundo Netto para O POVO



Mesmo não suportando a loucura da mulher, vê-la partir lhe seria insuportável.
Uma noite, durante conflituoso jantar, a drogou. Tomou-a adormecida nos braços e a levou para o mato, quase em frente à lagoa, ainda visível à janela de sua casa. Lá chegando, amarrou-a rente a um tronco estreito de árvore, onde previamente havia preparado baldes com água, areia e cimento.
Desacordada, ela respirava suavemente, balbuciando seu nome e deixando que a lua revelasse a ternura no rosto, à medida que ele punha e moldava sobre seu corpo a massa ainda molhada do cimento. Começou pelos pés. Aos poucos, as pernas, o tronco, os seios, os braços, até finalmente cobrir-lhe toda a cabeça.
Amanheceu. O Sol o encontrou sentado no capim, ainda trêmulo, com uma pequena espátula à mão e olheiras marcadas de despedida, enquanto iluminava e aquecia a figura tosca daquela mulher. Foi quando teve a impressão de ouvir dela um soluço abafado, quase como um estalo. “Acordara?”
Todos os dias, seria a primeira imagem que veria ao levantar. Horas e horas à janela.
À noite, tinha pesadelos. Ouvia os seus desaforos, as suas lamúrias. Imaginava que ela lá não mais estaria, que mesmo em pedra pudesse lhe escapar, se lançando nas águas lodosas da lagoa. Mas não. Ela permanecia ali, imóvel, como encantada, a seu alcance, aquecida para sempre em seu amor e zelo. E assim foi durante meses.
A ausência dela era quase despercebida. Trabalhava em casa, poucos amigos, filha única de mãe idosa. Quando muito, um telefonema — "Ela não está. Quer deixar recado?" — Não queria. Sabia que a ingrata não retornaria.
Aos finais de tarde, aguardava a noite ao lado da mulher. Falava sobre seus dias, contava-lhe novidades, a presenteava, confessava a falta que lhe fazia e, por fim, numa loucura própria e sincera dos amantes, a cobria em beijos amorosos, se agarrando àquele corpo frio, áspero e inerte.
Em uma noite quente, porém, ele acordou e viu ao pé de sua cama a mulher de pedra. Em silêncio, e através de seus olhos nus e cinzentos, parecia mirá-lo, até jogar-se sobre ele, e, com as mãos, tomar-lhe fortemente o pescoço e o ar. Valendo-se do vagar desajeitado da estátua, ele conseguiu, com esforço, escapar-lhe. Ainda torpe e surpreso, pegou uma marreta e a golpeou no abdome. O corpo começou a rachar. Abriu-se de meio a meio. "O que foi que eu fiz, meu amor? O que foi que eu fiz?", repetia. A estátua fez-se em pedaços e de seu interior apenas um grito moribundo, aterrorizante, de uma agonia jamais ouvida igual.
Ele, abalado, jogou-se sobre os escombros, a procurar a mulher, qualquer pedaço dela, mas nada encontrou. Saiu gritando, com restos de entulho nas mãos, e jogou-se na lagoa, pondo-se no fundo da lama com o peso de sua própria consciência e da imagem perdida de sua mulher amada.


quinta-feira, 15 de março de 2018

"Versos ao Sono", soneto de Sânzio de Azevedo



Meus pais se foram, já faz muitos anos.
Perdi depois o irmão mais velho e, um dia,
minha única irmã a travessia
inevitável fez, e dos meus manos

apenas um ficou. A fantasia
enche-me a solitude com os enganos
quando, à noite, mergulho nos arcanos
dos devaneios, que a lembrança cria.

Dormindo, pela névoa da saudade,
estou a vê-los novamente rindo
como os via, feliz, na mocidade.

Hoje, o consolo aos dias mais tristonhos
é, no meio da noite, o instante lindo
de rever o passado nos meus sonhos.



segunda-feira, 12 de março de 2018

"La Femme Bateau", de Raymundo Netto para O POVO


Foto: Francisco Viana


Para Sérvulo Esmeraldo
no Dia Internacional da Mulher

Vivia solitária em um barquinho rizado a se equilibrar por sobre longarinas a guerreira cariri. Por olhos castanhos amendoados, assistia todos os dias às crianças encimadas em ondas crespas a usar e abusar do seu eterno vaivém: “Quisera também eu ter essa liberdade”, pensava.
Ao longe, podíamos vê-la, quase triste, os compridos cabelos sempre a acompanhar a ciranda dos ventos e o passo do tempo, abstraída às manhãs num manto de luz e completamente enamorada pela linha do horizonte. Cansada da sua calculada ilusão, tinha por sonho, não sabíamos, bordejar, cruzar o desejado horizonte úmido e distante em abraços.
Um dia, o sol não amanheceu. Nuvens escuras tomaram os céus e o seu corpo em sombras, lançaram espadas de luz, rugiram e entornaram na terra outro mar cristalino.
As águas marinhas não aceitaram a invasão daquelas celestiais e as combateram com suas maiores e mais potentes vagas, numa revolta devastadora jamais vista.
A guerreira de aço testemunhou com assombro o violento embate das águas que ali se dava. Aos empurrões e tropeços, se jogavam contra as pedras da praia em forma de arrebentação, levando com elas o fundo do mar em areias e destroçando as vigas de madeira do velho píer. Era “o mar engolindo lindo e o mal engolindo rindo.”
Foi quando, com astúcia e na certeza da efemeridade das coisas, o mar verde esmeraldo lançou-se sobre ela, como se a devorasse, e a arrancou de seu cativeiro.
Por um momento, saracoteando na crista da onda, ela acreditou ter alcançado o seu sonho: “Liberdade, finalmente?” Buscou seu amado e não o encontrou. Não havia mais nem céu nem mar, apenas um mundo gris. Todavia, desastrada e pesada, tombou na profunda escuridão do mar, no qual, antes de desmaiar, por um ângulo exato pôde ver os botos-cinzas cor de chuva, debochados como eram, a brincar de atrações nas ruínas do malfadado aquário natimorto.
Acordou dias depois, com parafusos a menos, assistida por homenzinhos com pés de pato. Ela, porém, para a surpresa deles, teimava em não segui-los. Não queria voltar.
Na superfície, cansada de lutar contra a sua captura, rodeada por uma turba de curiosos, ouviu, como em uma viniciana anunciação, quando lhe perguntaram: “De onde vens assim, tão suja de terra?”
E ela respondeu, pois eu ouvi, na voz silente dos ventos: “A maior provação para o amor é deixar partir. Queria mesmo era ficar na lembrança, sentir a permanência única da saudade, colorir o imaginário do povo como aquela que se fez livre, escolheu seu caminho e se foi para todo sempre.”



sábado, 3 de março de 2018

Amigos do AlmanaCULTURA: Sânzio de Azevedo



Demócrito Rocha: 130 anos

Quando professor de Literatura Cearense no Curso de Letras da UFC, ao falar do Modernismo, o nome que eu mais destacava era o de Demócrito Rocha, o poeta de “O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta”, que assinou (como a todos os seus poemas) como Antônio Garrido. Ao incluir o poema na minha Literatura Cearense (1976), pensei em pôr o pseudônimo, mas era tarde: todo mundo sabia quem era o autor dos versos: “O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta / por onde escorre / e se perde / o sangue do Ceará. / O mar não se tinge de vermelho / porque o sangue do Ceará / é azul.”
Se formos pinçar os termos científicos do poema, veremos que são muitos, como artéria, plasma, hemoglobina, sístole, aneurismas, rede capilar, carótida, injeção de soro, células, protoplasma, cromatina, etc., mas vamos ver que os vocábulos, lidos ao longo do texto, se diluem na eloquência que povoa os versos, razão de ter sido um dos poemas preferidos pelos declamadores. 
Esse baiano de Caravelas, que veio ser jornalista no Ceará, fundando em 1928 o jornal O POVO, merecia ser mais lembrado. Raymundo Netto, notável trabalhador intelectual, escreveu uma série de textos sobre ele, mas suponho que não foram enfeixados em livro. Mas um dia desses ele, Netto, lembrou que este ano de 2018 marca os 130 anos do escritor.
Nesse artigo, em que faz justiça ao homem de letras, Raymundo Netto afirma: “Quem conhece um pouco da história do Ceará sabe que é impossível se passar pelas décadas de 1910 a 1940 do século XX sem tocar no seu nome.”
Meu Pai, o poeta e pintor Otacílio de Azevedo, que conheceu de perto esse intelectual, ao lembrá-lo no livro Fortaleza Descalça disse ter sido ele “talvez o maior dos jornalistas de nossa terra”.

Sânzio de Azevedo
                                                      Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Academia Cearense de Letras e, ainda hoje, o maior pesquisador da literatura produzida no estado do Ceará.