“A
Rua do Ouvidor, a mais passeada e concorrida, e mais leviana, indiscreta,
bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira, poliglota e enciclopédica de
todas as ruas da cidade do Rio de Janeiro, fala, ocupa-se de tudo; até hoje,
porém, ainda não referiu a quem quer que fosse a sua própria história.”
(Joaquim Manuel de Macedo, em Memórias da
Rua do Ouvidor)
450 anos de Rio de Janeiro,
cidade cantada de maravilha, com braços abertos no Cristo Redentor e na canção
do amor demais, terra de cantores, escritores, atores e toda a sorte de gente
que ilustrou e influenciou de uma forma ou de outra a nossa vida.
Com minha família, morei no Rio, num
quitinete de “janela mágica” no abraçado bairro do Realengo, em 1976. Entretanto,
foi em minha passagem pelo Rio, apenas em 2014, que fui tomado da grande emoção
de um encontro às escuras com a rua do Ouvidor.
Vinha pela avenida Rio Branco, contando-lhe
os quarteirões nos passos do coração, como quem debuxa o colo alvo e soberbo de
uma Lucíola. Afinal, desde tempos, Alencar, Machado, Macedo – que lhe devotou
uma obra: Memórias da Rua do Ouvidor –,
todos me anunciavam esse encontro. E eu lá fui.
Embora tenha sido bastante propalada
entre os séculos XIX e XX, inclusive por meio da nossa literatura, se tem
registros de sua existência desde 1578, quando ainda se chamava rua Desvio do
Mar. Depois, teve outras denominações, mas, a partir do século XVIII, servindo
de sítio de morada de ouvidores, entre eles, Manuel Pena de Mesquita e
Francisco Berquó da Silva Pereira, passou a se chamar rua do Ouvidor.
A partir do século XIX, muitos foram os pontos
comerciais ali estabelecidos, como joalherias, lojas de artigos de modas e
importados – a dona Leopoldina costumava ir pessoalmente ao ateliê de Madame
Josephine –, confeitarias, chapelarias, rotisseries,
perfumarias, cafés, casas de música, livrarias, cabelereiros de senhoras,
salões de barbearia e bilhar, redações de jornais – chegou a ser denominada “rua
dos jornais” – e tipografias etc., que convidariam a sociedade elegante e/ou
intelectual carioca a povoar a Ouvidor.
Ali se instalou o primeiro telefone do
país, os primeiros cinemas, as primeiras vitrines, a primeira linha de bonde, o
primeiro calçamento e até o primeiro motel. Ali se instalou a famosa Livraria
Garnier e foi fundada a Academia Brasileira de Letras – porque a primeira
Academia de Letras do Brasil surgiu foi no Ceará. Chupa essa manga!
Quem não conhecesse as vitrines da
Ouvidor, quem não privasse de demorados convescotes em seus cafés e livrarias,
certamente “estaria por fora”.
A Ouvidor era tão importante na cultura
carioca, que Machado de Assis afirmaria: “Se o Rio de Janeiro tivesse um rosto,
este seria a Rua do Ouvidor”.
Quem a conhece, deve ter estranhado o
quanto é estreita – Machado, em 1893, ciente da tentativa de alargar a rua, se
pronunciou contra, defendendo a sua condição de “viela” ou de “canudo” –, sendo
felizmente uma rua pedonal*. No mesmo texto, Machado de Assim a denomina “rua
do boato”: “vá lá correr um boato por avenidas amplas e lavadas de ar.”
E assim, foi no caminhar silencioso
dessa rua, que tal qual me dera fosse minha, e nas brechas do tempo, que
busquei os passos de tantos queridos, ouvindo as suas vozes distantes,
misturadas em paralelepípedos cinzentos, nas paredes, nos balcões de ferro, em
ornatos, nas imensas portas de madeiras e nas voz sussurrada em sorriso pelo
vento encanado da Ouvidor.
(*)
Por curiosidade: mesmo sofrendo a proibição de trânsito a princípio de carros
de bois – por meio de decreto de d. Pedro I, em 1829 – e dos atuais automóveis,
durante as festas carnavalescas lhe era permitida o desfile de carros
alegóricos, puxados a burros, e seus mascarados luxentos, o que, na época,
conferia prestígio à rua.
(Fotos: Raymundo Netto)
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