domingo, 19 de janeiro de 2014

"O Mistério da Mulher do Jardim", de Raymundo Netto (19.1)


Solano chegava em sua casa, exatamente no mesmo horário de todos os dias.
Maria, a nova empregada, o recebeu com um enfado de sempre, à varanda, ao juntar mais folhas nos pequenos degraus:
— Doutor, uma pessoa veio aqui procurando o dono da casa.
— Uma pessoa, é? Quem, Maria?
Estranhava, enquanto conferia os envelopes de contas que coletara na caixa de correio. Afinal, não era de receber visitas. Tinha poucos, quase nenhum, amigos. Os parentes não via há tempos. Na verdade, ninguém em absoluto o procurava em casa, onde residia no sossego de sua quartelada solidão.
— Não sei, doutor. Eu disse que o senhor não tava. Ela falou que era importante, que o senhor sabia e coisa e tal, e ficou aí, um tempão, esperando em pé no jardim.
— Não disse o que queria? Você não deu meu número de telefone? Não falou que horas eu chegaria?
A mulher, quase como confusa — já não fosse de tão poucas ideias —, deu-lhe as costas largas, levando para dentro o saco de lixo na mão:
— Não conheço... Não falo nada, não, doutor. Deus me livre!
Solano irritou-se com a ignorância, mas, a princípio, não deu maior interesse. Durante a noite, entretanto, pensou na tal "pessoa". Quem seria? O que queria? E eu sabia de quê? "Bobagem!", concluía, afinal, antes de dormir.
Todavia, no dia seguinte, no café, perguntou para Maria:
— E ela não deixou nenhum bilhete?
— Quem?
— A pessoa que me procurou ontem.
— Não.
— Você não me disse... era um homem ou uma mulher?
— Mulher.
Por um motivo qualquer, o fato de ela ser uma mulher o deixou ainda mais curioso:
— Era bonita?
— Quem?
— A mulher que me procurou ontem, Maria.
A doméstica o olhou aborrecida, largou a louça na pia, pegou a vassoura, a pá e foi-se ríspida:
— Eu sei lá!
No decorrer do dia, o pensamento de Solano não o permitiu trabalhar direito. Desconcentrava-se de instante em instante. Pensava na mulher — era uma mulher — misteriosa. Poderia ser Fulana, que nunca mais vira, um antigo amor... Não, ela não sabia onde estava morando hoje, e, ouvira dizer que casara. Quem sabe a Sicrana? Uma amiga querida, há tempos residindo na França... Não, se fosse ela teria ligado antes ou mandado alguma mensagem. Ainda se falavam. Ou Beltrana? Um relacionamento recente, meio enrolado. Sabe-se lá se não decidira revê-lo, matar saudades, pedir-lhe desculpas pelos desaforos. Não, ela não iria para sua casa naquele horário, pois sabia que estaria no escritório. O procuraria lá, certamente.
O certo é que aquela dúvida estranhamente o consumia e passou a consultar a lista de nomes em sua agenda, na procura de algum, em especial. Olhava amiúde o seu correio eletrônico. Esperava lembrar de alguém, de algum compromisso esquivo ou mesmo qualquer aceno mais direto, como "Estive na sua casa ontem, Solano" ou coisa parecida.
Mais tarde, ao voltar, tornou a perguntar:
— Maria, e como ela era?
— Quem?
— A mulher, criatura... a que me procurou anteontem! Cor do cabelo, da pele, dos olhos? Gorda ou magra? Alta, baixa?...
— Ave Maria, doutor, eu lá presto atenção nessas coisas... Lembro não.
Teve ímpeto de despedir a preguiçosa na hora, já não estava lá muito satisfeito com seus serviços, mas perderia a única referência daquela visita misteriosa.
— Certo, Maria, tudo bem. Mas se lembrar de alguma coisa, qualquer coisa, você me diz, está certo assim?
Naquele final de semana, Solano decidira não sair de casa de jeito nenhum. Quem sabe, justamente por ser um final de semana, a tal pessoa poderia aparecer novamente? Pediu para a Maria caprichar na limpeza, o que não fez muita diferença, e transpôs o dia a olhar a janela, impaciente, ver as pessoas cruzando a calçada de seu jardim sem muros e, alucinando, quando ouvia a sirene do portão, o latido de cachorro ou a campanhia do telefone:
— É ela, Maria? É ela?
— Ela, quem?
Na segunda, à noite, após o jantar, apareceu com uma caixa de sapatos debaixo do braço e pediu que Maria, a muito custo e desconfiança, sentasse com ele no sofá:
— Maria, minha querida, vamos fazer o seguinte: vou lhe mostrar algumas fotos de amigas e eu queria que você prestasse bem atenção no rosto delas. Acho que aquela mulher, lembra, aquela... pode ser uma delas...
Nada. Maria olhava com um desinteresse notável, mal pegando nas fotografias, ainda acusando a vista ruim e se perdendo em perguntas bobas:
— Maria, quer saber? Olha, vá para o diabo que te carregue. Quero mais você aqui, não, sua imprestável. Pegue as suas coisas e rua!
Maria levantou-se com o mesmo olhar a meio-pau e disse:
— O senhor vai me pagar hoje, doutor? Então, eu vou.
Solano pagou e bateu-lhe a porta solene na cara.
Nos dias que se seguiram, porém, foi um tormento. Solano mal dormia e se quedou numa ansiedade abismal. No trabalho, não rendia mais nada. Os colegas o percebiam desatento e os superiores já o advertiam. Espremia a mente na busca de mil rostos. "Quem seria aquela mulher, meu Deus? Quem?" Ligava para uma ou para outra: "Foi você? Tem certeza que não? Não está mentindo para mim, está?"
Ouvia horrores, telefones batiam na sua cara, rompia pactos de silêncios e desafetos choravam mágoas eternas a negar perdões jamais concedidos. E nada. Nada!
Possesso, pôs-se a crer que aquela mulher, já uma sombra a lhe turvar a cabeça,  poderia voltar a qualquer momento e a casa estaria fechada. Nem a inútil da Maria, a única que poderia reconhecê-la, estaria por lá.
Assim, quando voltava do serviço, ele, que nunca foi dado a amizade com vizinhos, passou a perturbá-los, a perguntar se viram algum movimento estranho em torno de seu jardim: "Alguém, quem sabe uma mulher..." Eles estranhavam a presença daquele a quem chamavam de "eremita", mas tampouco viram nada. Ainda o interrogavam, apenas por uma curiosidade fútil particular:
— E roubaram alguma coisa do senhor?
Sim, o seu sossego.
Transtornado, chorando como uma menina, pegou o carro e foi procurar a Maria numa assentamento distante. Quando chegou, quase de madrugada, a trouxe de volta, após enchê-la com milhões de pedidos de desculpas e promessas de vantagens salariais e, mesmo assim, só o conseguiu pois a família de Maria não suportava conviver com aquele mau-humor e preguiça insuperáveis dela.
— Mariazinha, vou lhe pedir só mais um favor. Se essa mulher aparecer...
— Que mulher?
— Aquela. Aquela. Aquela, Maria, lembra? Aquela do jardim... Pois, então, se ela aparecer, a convide para entrar, ofereça um suco, um café, biscoitos, mas não a deixe, pelo amor de Deus, ir embora até eu chegar, está bem? Tranque a porta, se preciso! Tranque, Maria... Mas não a deixe sair de jeito nenhum...
— Eita, doutor, cruz credo! — benzia-se a mulher, que nunca entendeu aquele patrão, para ela, completamente maluco.
Dias e dias e nada da mulher nem de ninguém.
Solano, como esperado, surtou. Foi convidado a adiantar as férias, procurar assistência médica, apoio profissional. E, se isso não fosse suficiente, lamentavam.
Não saía mais do quarto, não se alimentava direito, não conseguia ver a luz do dia. Era fato: ela, aquela mulher ironicamente sem rosto, lhe tomara de sua vontade de viver. Na mente, dormindo ou acordado, apenas uma torrente de lembranças vazias. Tudo lhe era acabado. Nada mais tinha qualquer valor, sentido ou esperança. Acreditava, por algum deslocamento interior de consciência, sabe-se lá, que aquele momento a ele negado por um desencontro banal poderia ter sido o maior acontecimento, o grande ato que justificaria a sua vida inteira de apatias e fracassos. Em delírio febril, clamava por "ela" às noites inteiras, numa paixão inesgotável e ardente, como poucas, mesmo das grandes novelas ou romances.
Até a Maria, em sua frieza de estátua, começou sentir uma pontinha de pena dele. Numa das entradas em seu quarto para levar uma canja, ouviu o lamento:
— Ai, Maria... Ah, que eu não vou suportar... Eu quero morrer! Quero morrer!
— Doutor, e se o senhor morrer, quem é que vai me pagar esse mês?

***

Era uma tarde fresca de verão. Um desempregado Solano estava irreconhecível, magro, envelhecido, a barba por fazer. Sentado nos degraus de sua varanda, assistia impassível a uma rabugenta Maria a catar as folhas que escapavam-lhe as mãos num ziguezagueado na calçada.
Então, quando, na casa da frente, um casal alegre descia ligeiro os degraus da varanda, acompanhado por pessoas a brindar a felicidade com uma chuvinha de arroz mixuruca. A moça trazia o talhe bonito de rendas brancas. Os cabelos cor de trigo sentavam em um coque de pequenos fios em desalinho. Os olhos formavam pingentes cintilantes e o seu sorriso, certamente, era a coisa mais generosa e sincera que Solano já vira no mundo.
Foi quando percebeu que a doméstica acenava desajeitada para a noiva. Depois, num sorriso quase macabro, olhou para Solano e, com o indicador em riste, acusou:
— Doutor, é ela... Aquela!


4 comentários:

  1. Não resisti e li tudo. Assim, não me sobra tempo sequer para jantar. Ai, ai, meu adorável Bruxo das Letras hipnotiza-me de tal forma que, primeiro, leio, tudo oque ele escreve. O resto fica para... Depois!
    "Ocê" é demais"!

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    1. Abraço grande, escritora e amiga Lucineide.

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    2. Maravilhoso! Somente o Solano estava mais curioso do que eu para saber quem era a tal mulher (risos). Parabéns, Raymundo Netto!

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    3. Lenice, o Solano e eu, diga-se de passagem...

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