segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

"História de Não se Dar Passo", de Raymundo Netto (20.1)


Ilustração: "Noite Estrelada", de Van Gogh

Crônica publicada em O POVO, originalmente em dezembro de 2011

Moral da História: a vida é o exercício do perder!
Essa fábula ao inverso, nada mais é do que a minha tese de pós-torturado da faculdade da vida, na qual nem pedi a inscrição, mas onde tenho cadeiras obrigatórias desde a primeira tapa, e onde jurei: até a morte hei de viver!
Pois sim, que não acreditem em mim, mas é mesmo a vida, tão querida ad respirata, dentre as tantas coisas que desaprendi, um exercício de perdas. Desde a nascença, nada nos é tão certo quanto a perda, cosida, pontilhadamente, até de um dia perder, irreparavelmente, a própria vida. Vai-se infância, saúde, amores, amigos, cabelos e, dolorosamente, os dentes, tudo se vai e, acreditem pelamordedeus, rapidamente num cadinho.
Nos meus quarenta anos, já perdi tanta coisa, deixei tanto para trás, nem vale a pena o sofrer por isso... Ciente da prática de perdas, tenho desapegado franciscanamente, exercitado ao máximo, a ponto de, às vezes, ficar me rindo da ausência do peso das tantas coisas que não tenho... Sempre disse: Posso perder tudo, menos as pessoas... E as tenho perdido mesmo assim, aqui e ali, sem jeito.
Por que é charmoso e chama a atenção, vez ou outra grito a todo pulmão: “Desisto!”, mas continuo insistindo nas mesmas burradas a perguntar-me por que as coisas não me hão de nunca dar certo. Chego a ter dó de mim, um dó em si tão grande de fazer choro, não fora eu um nordestino, cem por cento negro, um forte Xunembó, caucásio-brasileiro, sem carteira assinada, nem dinheiro no banco, sem parentes importantes e nascido embaixo de fogos de São Pedro.
É quando me lembro da passagem literária, essa de Queiroz, d’Os Maias, em seu último capítulo, quando Carlos e o João da Ega, numa conversa descontraída de meio da rua, conceituam os românticos de “indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...” e resumem: “não vale a pena viver!” Explicam inda mais: “Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra, porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.” Aconselham: “Não saia deste passinho lento, prudente, correto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.” Os dois fanfarrões estavam convictos da descoberta da fórmula do mais seguro viver: “não fazer um esforço, nem correr com ânsia para coisa alguma... Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...”
Foi quando avistaram, ao longe, uma carruagem. Atrasados que estavam, entreolharam-se e “os dois amigos romperam a CORRER desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia”.
E é assim, meus amigos, que corremos quando temos que correr — a vida não espera —, mas das vezes temos que parar um pouco e apenas olhar o movimento das ruas, encantar-nos com as pessoas que nunca víamos chegar, ouvir histórias demorosas com amigos, arriscar novos pratos, novos sons, tomar banho de chuva e de sol, nunca dizer nunca nem sempre, pensar menos no passado e no futuro, viver mais o presente, ganhar o mundo, não pentear sempre os cabelos, nem fazer sempre a barba — trocar a cueca sempre é bom —, mas acima de tudo isso fazer as pazes com a gente mesmo, não nos cobrarmos tanto e dar-nos a pequena chance de não nos perdermos, a não ser de amor.

Feliz Dois Mil e Doces para todos.

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