segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

"Adélia Prado dá força inesperada ao antiquado em seu novo livro", por Alcir Pécora


Miserere, novo livro de Adélia Prado, 78, é ótimo exemplo de como simbologias tradicionais, carregadas de mitos e de interditos supostamente ultrapassados, podem ganhar uma inesperada força como repertório poético.
A primeira explicação, em negativo, não é difícil de encontrar: aceito o pressuposto desse mundo vetusto, perde-se o medo de confessar idade, exaustão, pobreza e sujeira, pois a carência se reinterpreta como promessa de eternidade.
Abre-se uma fresta no paradigma existencial contemporâneo, restrito à banalidade laica, presentista, pragmática.
O que poderia ser visto como dogmático e conservador acaba funcionando como alívio para o efeito rebote da obrigatoriedade de se manter jovem, saudável, feliz, “up to date”.
O que haja de antiquado nas figurações da crença, de repente, anima vasta ressignificação sensória da vida diante dos programas profiláticos e assépticos da cosmética e da medicina, muito mais próximas agora do que admitiria Platão.
Em versos brancos livres, de léxico corrente e cortes gramaticais, Adélia pode falar, por exemplo, “num mundo bom onde se come errado,/ delícia de marmitas de carboidrato e torresmos” (em “Qualquer Coisa que Brilhe”); ou: “Minha mão tem manchas,/ pintas marrons como ovinhos de codorna” (em “Avós”); “Deus, tem piedade de mim./ Peço porque estou viva/ e sou louca por açúcar” (“Distrações no Velório”). 

Não temer a morte
O tom sentencioso e edificante é geralmente temperado por uma atitude bem-humorada e vigorosa diante do pânico da doença e da morte, esta que foi higienicamente desaparecida da vista dos amigos e parentes para se tornar um caso técnico hospitalar, como evidenciou o historiador francês Philippe Ariès.  
Adélia, ao contrário, pode dizer: “Tem braços acolhedores/ e vem cheia de vida./ É Deus a poderosa morte” (“O Hospedeiro”). 
E quando propõe “dormir na própria cruz sem sobressaltos, como um bebê brincando com suas fezes” (“A Criatura”) canta um mundo às avessas daquele do “grande Bazar” surdo, no qual todos “falam a mesma língua e têm o mesmo preço/ do ‘Concurso de miss para criancinhas” (“Sacramental”).
Há uma segunda explicação, desta vez imanente, para as qualidades de “Miserere”. Nalguns pontos altos do livro, o erotismo, o amor do corpo, se dá em associação direta com a evocação da vigilância repressora do pai e da unidade uterina com a mãe.
Assim: “o Senhor da vida olhava-me/ como olham os reis/ as servas com quem se deitam” (“Pomar”); “vi o dedo,/ o meu, este que, dentro de minha mãe,/ a expensas dela formou-se” (“Contramor”). 

O belo e o sujo
Resulta daí uma geração e parturição no que repugna, não no que é belo: “O verdadeiro é sujo, destinadamente sujo” (“Branca de Neve”); “Pois o encontro agora escuro e fosco/ no dia radioso é único e não cintila(...) Abba! Abba! Aceita o que me enoja,/ gosma que me ocultou o Teu rosto” (“Qualquer Coisa que Brilhe”). 
Em termos católicos, que são os pertinentes aqui, apenas neste ponto opaco e cego do abandono se aceita Deus, sendo aceito por ele.
Entretanto, como reconhece Adélia, falta-lhe coragem para dizer tudo o que, segundo ela mesma, se dito, “em mim mesma produziria vergonha, vários me odiariam” (“Branca de Neve”).
Uma língua menos gentil talvez fizesse mal a Adélia, mas faria muito bem a sua poesia. 

Alcir Pécora, da Folhapress

SERVIÇO

Miserere
Autora: Adélia Prado 
Editora: Record
Quanto: R$ 25 (96 págs.)



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