Almoçava
sozinho no L’Escale, o melhor lugar para almoçar na cidade, claro, depois da
casa da sua mãe, quando chegou-me, ante a mesa, um rapaz a estender-me as duas
mãos: “Raymundo Netto, leio sempre de você no jornal. Sou seu fã!”
Brinquei
com piada velha: Ah, então é você? “Ora, devem lhe dizer isso sempre...” Não,
isso nunca aconteceu comigo antes, e digo isto sem folclore. Tem a minha mãe a
garantir não haver no Ceará, quiçá no Brasil e nas redondezas, escritor melhor do
que eu, embora nunca me leia nada e assine o jornal concorrente. Sabe como é
mãe: “Não li e já gostei”.
Sem
cerimônia, puxou a cadeira. Sacou guardanapo, caneta e pediu autógrafo.
Senti-me o próprio Moacir Franco ou Odair José, de uns 15 anos, em pleno
revival. Tirei do cinto de utilidades um “Cadeiras na Calçada” e o dediquei.
Ele abraçou o livro: “Essa edição eu não tinha!” Para não esfriar de todo o meu
prato, prenunciada a tardança, pedi: falasse algo de si. Não queria. Preferia
expor a sua compreensão dos meus textos, compreensão essa largamente estendida.
Tudo lhe era suposto, acreditado, evocado e tão ampliado em sua imaginação, de
fazer percebê-la bem mais generosa que a minha. “Eu entendi o que você quis
dizer quando...” e ria, ria bastante dessas “coisas de não se rir”.
O
fato: Eu não queria dizer exatamente aquilo. Poderia. Talvez gostasse até do dizer
além, ou não. Escrever é exercício de desconfiança em si mesmo, uma constante autocrítica.
O pensamento dando voltas em nossa cabeça até desmanchar-se em letras a unhar o
papel. As palavras não se permitem domesticar. São livres e, acima de tudo, libertadoras.
A nossa segurança única é o ancorar do ponto final, o fechar da porteira. Demais,
ser escritor, em tese, é quase nada. Escrever pode ser, mas ler é muito mais.
Droga,
aquele cara era bom! Passou-me pelo lado cafajeste de todos nós a ideia de sugerir
a sua inspirada leitura antes de pôr o selo de envio à redação, mas assim nem
tinha graça. Acabei por perguntar se escrevia. “Que me dera... Não tenho esse
talento.”
Pelo
jeito, nem eu. Tento. Um dia aprendo ou tomarei o túnel do esquecimento, em
fila epopeica com alguns melhores do que eu, com o consolo do igual
deslembramento de minhas falhas, das atrapalhadas histórias nem sempre alegres
ou tristes mesmo às minhas janelas.
Como
era o seu nome? “Raimundo. Entretanto, Raimundo de pobre com ‘i’ mesmo”. Pobre,
dizia, mas fazia questão: pagar-me a conta, mais salgada que o prato, garanto.
Não satisfeito, ofereceu-me carona, “podia dizer para onde”, sabia da minha
inaptidão ao guidom, dentre outras que citou zombando a valer — nunca de supor minha
tragédia tão divertida. Não aceitei. Deus me livre de saber até onde morava.
Jamais.
Porém,
tomou-me, não tive como evitar, o número do meu celular. Pensei se ligaria, a
cada crônica publicada, a me ferir os brios com tudo aquilo de nunca escrito.
Ao mesmo tempo, registrado também o seu número, poderia não atendê-lo, e engendrar,
a cada ligação, toda a sua literatura presumida. Nós dois, Raymundo e Raimundo,
passaríamos a ser ficção de nós mesmos, como duas faces de espelho num jornal,
a tentar nos encontrar no pasmo eterno de nosso próprio reflexo.
Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br
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