Bem, se todo cronista tem o direito de passar a vida chafurdando seu próprio umbigo, como se todos nós leitores estivéssemos muitíssimo interessados nele, acho que, como projeto mal acabado de escrevinhador de província, também tenho o direito de fazer certas digressões sobre uma parte do meu corpo não tão nobre: O Dedão do Pé Direito, ou melhor, sobre a Unha do Dedão do meu Pé Direito.
Explico antes, o dedão do meu pé direito não é uma parte do corpo tão desprezível assim, pois quando criança e adolescente me deu destaque no futebol como um bom batedor de “bicudo” (coisa que pouquíssimos jogadores de futebol foram capazes, mais recentemente só o artilheiro Romário conseguia bater com maestria de bico de pé). A ponto de ter sido apelidado de “Pedro Bicão”, tamanha a facilidade pra bater na bola com essa esquecida parte do corpo, e, diga-se de passagem, com direção e força. Sempre consegui botar a “redonda” onde queria com o bico de pé.
Mas, descambando dos 40 rumo aos 50, ultimamente o velho bico de pé voltou à sua costumeira insignificância, tendo como tarefas mais nobres furar meias, segurar linha de anzol e uma que outra topada. E esquecido do glorioso dedão ia eu em viagem para Fortim, perto de Aracati, onde o rio Jaguaribe adentra o mar, quando uma criança se trancou no banheiro do ônibus, e fui eu tentar salvar o barulhento pimpolho. Final da cena que não quero lembrar, o garoto livre e eu com a unha entre a porta do banheiro e o carpete do piso. Dor intensa, unha de imediato pretinha de sangue pisado. Uma dor insuportável, uma vontade de urinar nas calças, um manquitolar de volta pra minha poltrona. O dedo todo preto, dormente por um tempo e doendo muito em seguida. Nada de gelo para pôr no local.
Chegando ao destino a decisão de não estragar o passeio por tão “simples” acidente. Aguentei a dor, travei os dentes e fiz de conta que não era nada. Fomos, criançada barulhenta, família desorganizada e eu (triste) atrás para a costumeira barraca de praia (graça a Deus quase vazia). Lá pus o pé sobre um tamboretinho de madeira e fiquei assoprando de longe, lágrimas pra cair no canto do olho. Foi quando seu Dadá (marido de Joana, a barraqueira amiga de muitos anos), jangadeiro experiente, percebeu a arrumação e deu o diagnóstico de unha perdida, sem jeito, e aproveitou e passou o primeiro de uma série de remédios usados por mim nesta saga pelo alívio da dor: “Tinta de Caneta!”... “Como?”, perguntei incrédulo. “Tinta de Caneta! Seca e depois cai!!!”, e foi logo providenciando a dita Bic azul sem tampa e com a metade avariada pelo uso... E lá me vi eu, enquanto crianças faziam castelos de areia, adultos descosturavam caranguejos, riscando pacientemente a minha dolorosa unha do dedão do pé direito. A companheira pondera, como tentando aliviar o ridículo da cena, que talvez seja verdade, pois a violeta genciana usada em ferimentos e machucaduras era também azul.
O dia passado a custos não deu o alívio esperado para a noite, agora a maldita unha latejava. Fomos ao hospital da cidadezinha, sexta à noite, sem médico (uma vergonha que já virou hábito: uma criança com falta de ar tentava desesperadamente chorar e não conseguia, um enfermeiro inutilmente tentava dar um jeito), me mandei prum hospital particular em Aracati, espera (o médico jantava, ou cochilava, ou não sei o quê...), uma olhada rápida sem levantar da cadeira, um antiinflamatório na receita. Saí puto em direção à farmácia.
O alívio do remédio permitiu dormir em paz, no dia seguinte (glorioso sábado de um sol maravilhoso) a dona da pousada vaticinou novamente: “Vai cair”... “É bom pôr um pouco de água quente de noite pra desinflamar”... Mas como conseguir água quente, bacia adequada para um banho-maria de alívio? Fui desta vez para a foz do rio e caminhei pacientemente em direção ao encontro com o mar, o dedo já inchado, luminoso e saindo uma gloriosa secreçãozinha pelo canto da unha. Sentei numa pedra e enfiei o pé na água salgada, cobri com um pouco de alga marinha. Fiquei me lembrando da infância, quando passávamos frequentemente por problemas parecidos e até piores, simplesmente jogávamos um pouco de terra em cima (quem foi criança e nunca usou este infalível método?) e pronto.
Mais uma tarde de capengado caminhar, sem querer admitir batalha perdida. Acompanhando a custo a turma feliz que ganhava a praia, a praça. De noite consegui um pouco de água morna, que de pouco adiantou. O retorno adiantado pra Fortaleza, a esperança do alívio imediato com a volta pra casa. Ledo engano. Mas agora a higiene demorada, a água quentinha três vezes ao dia. Quarta a ida a outro médico, que se admirou da infecção e passou antibiótico, comprimido pra dissolver na água quente e pomada noturna. Nada disso deu resultado! Uma semana depois novo e fortíssimo (e caríssimo!) antibiótico! Uma semana depois o vaticínio: Uma pequena cirurgia pra extrair a unha! A simples notícia já me foi bastante dolorosa, porém seria enfim o alívio... Engano, antes uma bateria de exames de sangue (suspeitavam de diabetes, causando a demora da cicatrização), continuando o tratamento passado antes pra desinflamar...
Hoje completou três semanas de sofrimento e já começo a contar os minutos pra extração da unha (prometi a mim mesmo que a pintarei de novo de azul e a pendurarei no pescoço, em promessa até o fim do ano). Antes já experimentei pelo menos uns quinze remédios diferentes, passados pelos amigos, familiares, curiosos... Ontem fui a uma benzedeira no final do Montese, que garantiu que não demorará a cura.
De bom apenas a solidariedade geral: o atencioso chefe na repartição me deu dois dias de folga (e contou um caso idêntico vivido por ele), minha mãe fez chás e liga todo dia, em casa uma vida de rei, todos olhando pra mim com certa pena. Na rua tratava de manquitolar um pouco mais, o passante olha e põe a mão na boca com espanto. Descobri que (como disse Nélson Rodrigues, mas atribuindo a frase a Otto de Lara Rezende: “O mineiro só é solidário no câncer!”) todo cearense é solidário com unha bichada!
Aprendi muito de medicina caseira, da convencional também. Esta semana fui ao consultório de um muito bom médico e boa gente, Dr. Veras, que recentemente perdeu três dedos do pé por conta de uma simples infecção na unha, nas complicações da diabetes. Ele me prestou solidariedade, aprovou com elogios o tratamento passado pela minha irmã médica Rute, e me receitou paciência, que não extraísse a dita cuja, não fizesse mais um trauma no meu já tão sofrido dedão do pé direito.
Bom, mais de três semanas de sofrimento, dor, raiva, paciência, automiseração, ainda padeço do problema, e agora mesmo, enquanto completo esta mísera crônica, feliz por ter passado a manhã olhando de vez em quando pra unha sequinha e desinchada, percebo um filetinho de secreção bem no canto dela, que curiosamente ainda tem resquícios da tinta azul do primeiro remédio.
P.S.: Também preocupa que já começo a me acostumar com o problema, e ontem à noite me flagrei bolando uma maneira de, assim que sarar, machucar outra unha, só que desta vez do dedo mindinho do pé esquerdo...
Pedro Salgueiro é escritor e funcionário público. Publicou alguns livros de contos (O Peso do Morto, O Espantalho, Brincar com Armas, Dos Valores do Inimigo e Inimigos), um de crônicas (Fortaleza Voadora). Tem no prelo um panorama do conto fantástico no Ceará (O Cravo Roxo do diabo) e um livro de contos curtos (Movimento Esperado).
To com do da situacao do Pedro. Tambem ja tive problemas com esse dito dedo. Aiii.Uiii.
ResponderExcluirMelhoras, Pedro!
Seria cômico se não fosse tão dolorido, gostei de conhecer as aventuras do dedão do Pedro. rs
ResponderExcluirAdorei a leitura.