Uma chuva saiu em linhas prateadas das brumas da noite e adentrou a manhã, levantando o cheiro antigo da terra molhada. Meus cajueiros, felizes, foram trabalhar, e passados uns dias botaram flores, que se abriram, cândidas. Depois as florinhas se cobriram de estrias encarnadas, de perfume como o lírio dos vales, conforme consta na mais antiga descrição do cajueiro, feita por Thevet, em 1558. Flor “lindíssima, variegada, a cor muitas vezes rosácea; a tal ponto rescende, sobretudo de manhã, que, durante todos os três meses de setembro, outubro e novembro, perfuma bosques inteiros, com grande deleite dos viajantes”. Depois do perfume, os frutos, e os talos vermelhos e amarelos. E cá estão os manás orvalhados, à minha mesa, perfumando a manhã.
O cajueiro é nosso. Em seu livro O cajueiro nordestino, Mauro Mota levantou algumas comprovações. Foi em nossa costa que o cajueiro decidiu existir e, generoso, escolheu os lugares mais secos, mais áridos, tirando da areia e da luz o que precisava para ser tão bonito, nutritivo, e saboroso. Quando colho um caju vermelho, ou amarelo, suculento, e o como ali mesmo debaixo do cajueiro, os pés no chão – cuidado com os bichos de pé!, experimento a plenitude da natureza. Uma vizinha costuma me mandar um vidro de compota de caju temperada com louro, e sinto-me a própria dona Brites, mulher do governador-geral, que se deliciava com o doce tirado dos tachos, ou o caldo sagrado das igaçabas indígenas.
Tenho quatro cajueiros no quintal, mas sei que aqui, onde fica a minha casa, havia muitos outros pés nativos, que foram derrubados, as crianças do povoado vinham antigamente comer cajus nesta duna em que habito. Quando colho baldes de caju, mando entregar na casa de mestre Oliveira, e de outros, que deviam ser aqueles meninos hoje despojados de seus bosques naturais, de sua infância, mas não de suas lembranças. A caminho de casa, pelos matos eu vejo um cajueiro ali, outro acolá, soterrando-se pelas areias, dando suas flores e talos e frutos. Textos antigos, como o de Laët, contam que havia bosques e bosques de cajueiros a cobrir praias, areais, a subir colinas, o chão ficava vermelho, “cajus em tal quantidade que não se pode dar consumo, pois os matos estão cheios deles”, ou o comentário de Conrad Guenther, segundo o qual podia-se andar durante horas através das matas de cajueiros da costa nordeste do Brasil. Não há mais tantos cajueiros assim, nós fomos ingratos, cortamos aos milhares essas árvores tão amigas e acolhedoras, capazes de acabar com a desnutrição, a fome, dá para fazer mil coisas com caju, com a árvore, com a casca, a seiva, as folhas, até as folhas secas servem, são um maravilhoso adubo. O cientista cearense, professor Carioca, descobriu utilidades combustíveis para o rejeito da pele da castanha, na química verde. Ele conta que nós jogamos fora por volta de um milhão e meio de toneladas de caju, todos os anos, só considerando os cajueiros cultivados. Estão estudando a transformação do caju em pó de caju, para a merenda das crianças. Caju tem proteína, tem vitaminas, tem ferro, sais minerais, zinco, fibras, uma oleosidade que previne colesterol alto... a casca é adstringente... a seiva produz tinta... o tronco produz goma...
Os botânicos seiscentistas já conheciam algumas propriedades do cajueiro. No tempo colonial, quando um marinheiro ou soldado chegava por aqui com escorbuto, cortavam seus lábios para o mal não progredir, mas então descobriram que o caju minorava essa enfermidade. Os índios conheciam ainda mais as qualidades do caju, chegavam a fazer guerras pela posse de cajuais, assim que caíam as chuvas de setembro, as chamadas Guerras do Acayu. Alimento de migração, tombança, comida de resistência... Maurício de Nassau deveria voltar com a sua multa de cem florins por cada cajueiro derrubado. Mil florins. Para cada cajueiro derrubado, dois cajueiros plantados. Colonos levaram as sementes para África, Índia, os elefantes as espalharam. E lá estão eles, produzindo frutas. Aqui, tantas derramadas no chão... Nem existem mais aquelas placas antigas, na porta das casas, Dá-se caju!
Ah cajueiros lindos, cajueiros de nossa infância... Quem é que nasceu por aqui e não tem um cajueiro em seu coração? Minha babá me ensinava os versinhos de Casimiro de Abreu, recordo vagamente... “Não te recordas, debaixo do cajueiro, lá da lagoa nas bordas, aquele beijo primeiro?”... e cantava, “Cajueiro pequenino, carregadinho de flores, eu também sou pequenina, carregadinha de amores...”
Ana Miranda, autora de Desmundo, Dias e Dias, Yuxin e Boca do Inferno.
Valeu, Raymundo Netto. Você voltou com muitas variedades literárias.
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