domingo, 29 de agosto de 2010

"O Encontro", conto poema de Chico Araújo para o Celeiro de Escritores.

Chico Araújo


O ENCONTRO

(um olhar para dentro da noite)


Sentou-se à margem do rio, ainda a noite a perdurar.

Naqueles dias havia lua, e o caminho de luz, riscando a água, iluminava a paz do lugar. Atrás de si, a mata resistindo e, além dela, a cidade crescida. À sua frente, após o frágil ondular das águas ao sopro manso do vento constante, nova mata, esta quase virgem, tocada apenas pelo dócil homem, ainda não por sua inteligência rebentadora de progresso. À sua direita, o vasto mundo que trazia o rio em descida de quilômetros acima, de onde o olhar não alcançava nem de dia; à sua esquerda, as águas que dançavam para seus olhos deixavam-se seduzir e acolher pelo mar, desfazendo-se/ampliando-se. Acima, as estrelas. Em tudo, o reverberar humilde daquilo que é sossego, o soar contínuo do canto noturno, entoado por seus intérpretes naturais.

Frio. Sem prudência, deixara qualquer agasalho em casa. Encostou as pernas dobradas ao peito e determinou-se abraçá-las por muito tempo, o queixo segurando a firmeza do olhar sobre os joelhos. Olhava. Um olhar além?

Dez anos. Quanta coisa mudou por aqui...

Agora era uma sensação estranha, uma dor-prazer por estar ali. Não havia pressa, nem nele nem na noite que estava bela, desavergonhadamente bela. E então o sorriso veio vindo devagarinho, passo a passo, de longe, muito longe. Surgiu aos poucos, como de fato poderia surgir. E era lindo... Tal qual a noite, um convite à entrega de uma busca que se fazia presente há tempos. Eterna.

Não havia espera dele, havia vontade a sete chaves dela emergindo sabe-se lá de onde, contanto que viesse, de uma vez ou aos poucos, não importava... Não, importava sim, deveria ser caminho que convida, dúvida-certeza que tomasse de conta devagar, instaurando a ambígua angústia de amar e não ter a certeza de que ama, de ser amado e jamais saber-se assim.

Chegou, por fim, não como queria, mas como ele sabia que deveria chegar... Devagar... Devagar... Até tornar-se forma, quase vida existindo de tão puro sopro de saudade verdadeira. O branco com que se vestia, fino, leve, destacava o corpo bem feito e cheio do viço de que só é capaz a juventude. Era linda. Sim, ainda era linda.

— Como você é...

A frase emocionada foi interrompida pelo indicador suave e carinhoso que pedia o silêncio dos lábios. Tantas vezes agira assim! Ele atendeu-a e quase beijou-a docemente na mão que já fugia. O sorriso que brilhava nos lábios – um contínuo cântico de paz. Por que ele estava inquieto? Sabia que daquele encontro em pouco tempo levaria mais saudade. Ela não poderia ter vindo para ficar! Sentou-se colada a ele sorrindo, pacífica, quase verdade na noite de estrelas e lua amante de brilho intenso beijando o rio e o mar que se encontravam mais adiante.

Mar e rio se encontrando – cumplicidade natural.

Ela estava ali, mas quando quis beijá-la, ela pôs-se de pé e olhando-o e sorrindo começou a valsear em volta dele, alegre, fugidia. Sua pele alva não expressava nenhuma dor, nenhuma amargura. Estava, de fato — via-se — em paz. Enquanto o branco do vestido era uma dança sem par na noite de lua e estrelas, vento e brisa marinha conspiravam para que se colasse cada vez mais àquele corpo em movimentos quase de volúpia insuspeita.

Os seios rijos, as coxas densas, o ventre... A dança...

— Estivemos aqui tantas vezes, lembra? E esse bailado que agora é só teu, já o bailei também. Gostávamos sempre de vir para cá por causa da solidão, por causa da paz. Ardíamos, lembra-se? Éramos fogo uno cuja brasa ardia em movimentos violentos que nos sacudiam para explodirmos tempos depois. Esses teus olhos claros nunca perderam o brilho. E os teus cabelos longos... Ainda escondo meu rosto dentro deles.A tua boca... Ah, a tua boca...

O ar da noite trouxe, de repente, o aroma de rosas.

As lágrimas começaram a cair enquanto a dança mais e mais e mais e mais rápida volteava o tecido fino branco bem perto bem perto bem perto o cheiro dela invadindo-lhe as lembranças e acordando-lhe os desejos as lágrimas a dança o branco roçando-lhe a memória o sorriso as pernas o ventre o ventre o ventre...

A noite era realmente linda! Uma lua jamais antes, as estrelas intensas em brilho conspirativo, o mar se encorpando do rio que agora descia forte e rápido de longe e corria forte e ele... E ela... Ela nesse instante mais próxima do rio, ele, de pé, em busca dos passos dela. A nossa cidadezinha, lembra? Pequenininha e pacata, só amizade e respeito de todos por todos. Agora está com pose de cidade grande, muitas lojas comerciais, muitos hotéis, muito turismo, é gente indo e vindo o tempo todo, de todo lugar. Só há um pouco de tranquilidade à noite, como agora. Acho que não me acostumo mais aqui, a não ser que você... Como eu a amava! E ainda a amo, ouviu!? A dança. Nós ainda nos amamos? Diz, ainda nos amamos? A dança a dança a dança... As lágrimas...

O urro intrépido não interrompeu a dança da moça no vestido branco que girava girava girava volteando agora sobre si mesma enquanto ele estendia a mão para alcançá-la mas ela escapava dançava rodopiava fugia sem ser tocada veloz veloz veloz veloz...

Jogou-se de joelhos na areia molhada do rio. Já faz dez anos! A água que vinha cada vez mais correnteza forte molhou-lhe dos joelhos aos pés. Viu que as pernas dela também se encharcavam enquanto o ritmo com que ela se movia aumentava-lhe a aflição. Ela sorrindo sorrindo sorrindo... Um olhar sereno, firme, brilhante... As mãos desenhando no ar imagens que só ela sabia de tão leves de tão mansas de tão etéreas...

Ele tentava alcançá-la, mas ela sempre rodopiando e fugindo, sorrindo sorrindo sorrindo... As estrelas no céu começaram a luzir distantes, também fugidias. Ele a olhava e compreendia que sua saudade não o deixaria enquanto com ela não estivesse. O rio avançava para o mar e se alargava para as margens. A lua escondia-se pelo sol. A noite iria sumir-se no dia. Ele lançou-se no rio, deixando-se levar pela correnteza que dançava uma dança frenética, sedutora, voluptuosa, branca, com cheiro de rosas...

Do único hotel próximo ao rio, por uma vidraça cujo tempo respeitou, um casal jovem olhava o rio naquela manhã, abraçados, felizes por aquele momento. Estavam molhados, e os cabelos longos e claros dela realçavam a beleza brilhante dos olhos claros sorrindo sorrindo sorrindo...

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