Publicado pela Conhecimento Editora, em 2009, A Aguadeira e a Flor, obra de 112 páginas, da escritora e designer Arlene Holanda (também autora de Que Bicho é Esse?, Adedonha: o jogo das palavras,Saco de Mentiras; paixão de verdade, Cordel de Trancoso, Caixinha da Memória Ceará, Nina África, O Diário do Sol, Todas as Cores do Negro, O Fantástico Mundo do Cordel e muitos outros), da querida Limoeiro do Norte, que assina também o projeto gráfico e a capa do livro, teve a sua apresentação escrita por mim, e na quarta capa, palavras, como sempre coloridas, de Thiago de Mello. Segue um pouco das duas:
Apresentação
A Aguadeira e a Flor é uma obra para ler, viver e guardar. Livro que tem todo o jeito de uma fotografia, como de Itabira, na parede: como dói... Arlene Holanda, uma artífice da poética e da palavra, em especial a lúdica e popular, liberta as asas guardadas na gaveta, sem remorsos ou alardes, e enfeixa-nos breves histórias que, “cuidadas por ela, vicejam, crescem e florescem numa profusão de cores”. Quase em estilo musical, seu olhar atento, humano, afetuoso, nos apresenta uma trilha fluente de evocações (ou provocações?) da memória, esmerilada em saborosas imagens vividas ou colhidas dos mais antigos, e daí desdobradas e sacolejadas num redemoinho de folhas secas: os comboios em lombo de burros na madrugadinha à procura de arrancho, o cheiro das manhãs de leite mugido, as ferras de touros (só eles — os bisões e as capivaras — “sabem da fúria das flechas e dos homens”), as botijas, os desenhos a carvão na parede em ruínas, os “achadores” d’água, as cacimbas incrustadas no cristalino duro (como a lida sertaneja), as chuvas (e com elas o perfume de terra molhada), as máximas expressas em sabedoria de avós, a serralharia, as vacas pastando em fila indiana, os cata-ventos (muitos deles ventilam o livro), juazeiros, cajazeiras (cajaraneiras?), sapotizeiros, bananeiras, carnaubeiras, oiticicas, juremas, xícaras de café, cadeiras de balanço, velames e rezas, os sítios, os sinos de tempos perdidos, as moças-velhas, o colecionador de chuvas, a encantadora de serpentes, a latada, os medos (“parece ser o destino do homem”), as mantilhas e missais, as cruzes à beira da estrada, e tantas outras mais que nos levam ao “reino do vai-não-torna,/mundo povoado com o assombro/das histórias ouvidas no alpendre”.
Como numa máquina do tempo, descortina as sombras de fantasmas e mergulha em vôo mágico de pavão misterioso que “não permite palavras mordidas entre os dentes/ para que não fizessem um estrago” e nos revela: “O grande segredo/ é que a vida não tem segredo”. E por que escrever? “Sobrevivência?/ Vingança?/ Disputa?” “Essas e tantas outras perguntas jogadas num tempo que ficou para trás quando decidiu parar de perguntar”.
Uma certeza heráclita, porém, sua Aguadeira... nos deixa: “Nunca se lê por duas vezes o mesmo livro./ Nem o livro nem o leitor serão [jamais] os mesmos.”
Raymundo Netto
Li (algumas reli), devagar e como que ouvindo, as histórias que a poeta Arlene teve o gosto bom de contar neste seu livro novo, com um jeito de dizer que é só dela. A sua fala flui como água de regato, que às vezes tem fundura, mas é sempre clarinha. Ela me faz lembrar meu mestre Manuel Bandeira, dizendo que não confiava em poeta que na prosa parece cavaleiro desmontado. Minha confiança nesta cearense não vacila. O leitor há de ver.
As suas palavras caminham pela mão da Poesia, que no andar da contação (era assim que dizia a minha mãe dona Maria, esplêndida contadora), faz questão de dar o ar de sua graça ou vai entrando de cheio pelas frestas da madeira bem lavrada da sua suave prosa. (...)
O leitor vai ficar cismado com o mundo deste livro, que aliás é o mesmo nosso, onde os mistérios têm cores; as coisas têm alma; o verão enlouquece. A nossa única certeza é estar no mundo; as asas são leves como alguém que nada sabe; a saudade não cabe em casa de muitos cômodos; a moça Teresa Brasiliense jaz em continência diante da vida e a ensandecida da casa-do-alto não precisa de corpo para voar.
Te abraço, Arlene, o meu reino é igual ao teu, de árvore e vento, só que o meu tem muita água, da qual te mando a luz de uma escama esmaltada.
Thiago de Mello
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