sábado, 11 de setembro de 2010

"As Neuras dos Escribas", crônica de Airton Monte para O POVO

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O Asdrúbal é um velho conhecido meu de outros carnavais, metido a escritor, mas que não passa, pobre diabo, de um insigne turista das letras da pior estirpe e que odeia o escritor Raymundo Netto pelo simples fato deste ter talento e ele não. Sinceramente falando, nada tenho contra o Asdrúbal, um sujeito até muito simpático por sinal. Isto é, não fosse a sua amizade com o "crítico literário" Zé Mané e pela incômoda mania de forçar todo cidadão que encontra pela frente a ler sua última obra-prima que, em geral, nunca tem menos de trezentas páginas.

Pois estava eu na porta do Hospital Mira Y López, assim de tardezinha, vigiando o movimento do atlético mulherio no vai e vem da malhação. Prazerosamente distraído, quase não me dei conta do Asdrúbal me pegando pelo braço e dizendo em tom gravíssimo:

— Nós corremos um sério risco de ficar doidos!

Redargui:

— Nós quem, cara-pálida?

— Nós escritores — respondeu quase aos berros o Asdrúbal, claramente eivado de uma angustiosa preocupação, que no momento eu achei evidentemente exagerada.

Segundo o ilustre confrade, pelo fato de puxarem demais pelo juízo, os escribas se tornam mais suscetíveis de perdê-lo. Cerca de 80% dos poetas e romancistas parecem padecer de uma mui significativa tendência à depressão. Já 90% dos ensaístas e filósofos estão sujeitos ao bel prazer das psicoses, principalmente as paranóias. Em meio aos dramaturgos e contistas, o alcoolismo reina soberano feito um carcará. Quanto aos críticos literários, a coisa pode ser muito mais grave do que se pode imaginar. Que bom, eles merecem com distinção e louvor.

O caso dos críticos requer, inclusive, a atenção especial das autoridades sanitárias. Entre eles também são bastante comuns as ciumeiras doentias, a impotência criativa e sexual, o "voyerismo" literário, os fecalomas cerebrais. Porém, no que tange aos cronistas, nada se pode afirmar porque não foram alvo das pesquisas do Asdrúbal. Portanto, escaparam de um possível diagnóstico psiquiátrico. Cá por mim, ouso afirmar que cronistas padecem de uma obssessiva compulsão pelo cotidiano, porque sabem que a vida tem muito mais imaginação que nossos sonhos.

Airton Monte, para o jornal O POVO, 2 de novembro de 2007

6 comentários:

  1. Adorei: "ouso afirmar que cronistas padecem de uma obssessiva compulsão pelo cotidiano, porque sabem que a vida tem muito mais imaginação que nossos sonhos".

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  2. Sou fã do Airton Monte, sempre me vem um sorriso ao ler suas crônicas...

    E Asdrúbal o Raymundo é um exemplo nesse mundo tão doido e competitivo, é muito raro uma pessoa onde o talento e o bom senso andam de mãos dadas.

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  3. É interessante o poder da literatura(vou me esquivar de dizer a boa)em tornar vivo para sempre pessoas como Airton Monte. Ao reler a crônica acima, por um instante esqueci que ele tinha partido. O cotidiano tem muita dureza, inveja e outras mazelas, mas ele aproveitava isso para evidenciar o que temos de melhor: a criatividade para transformar... Sigamos...

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  4. É uma perda lastimável a ida do nosso cronista Airton Monte.E essa crônica "A Neura Dos Escribas", é pra lá de criativa e irônica...é bem a tua,a nossa cara,não é vero,Raymundo Netto? rsrs Cuidado, Raymundo!Com essse teu antagonista, o "cronista" Asdrúbal! rsrs

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  5. Na literatura, a crônica, para mim, é "o trivial simples" da gastronomia...gostoso e caseiro!
    Tive um irmão cronista, que eu adorava. Adoro, boas crônicas...dos bons cronistas. Beleza, revisitar Airton Monte... Obrigada, Raymundo Neto!

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