Em 31 de maio, a ministra da Cultura de Portugal, Gabriela Canavilhas, anunciou o agraciado da edição de 2010 do Prêmio Camões: Ferreira Gullar. Artista da palavra, o brasileiro escreve em uma gama vasta de gêneros, que vão do poema à crônica, detendo-se na crítica de arte, com passagens inusitadas pela teledramaturgia e pela literatura de folhetos. Foi por esse conjunto heterogêneo que ganhou a maior comenda das letras lusófonas, organizada em conjunto por Brasil e Portugal. Ambos os países escolhem, a cada ano, apenas um escritor para ser homenageado.
O reconhecimento chegou, não por coincidência, poucos meses antes de Ferreira Gullar completar 80 anos, na próxima sexta-feira. Foi o momento inicial de uma série de homenagens ao poeta, que chegam a seus leitores na forma de novas edições de seus trabalhos mais conhecidos, de convites para que o próprio participe de feiras de livros, além de retrospectivas nos jornais, revistas e TVs.
Sisudo, Ferreira Gullar participa de toda essa movimentação com certa desconfiança. Não vê motivos para mudar seu discurso, nem a direção que sua produção tomou. Mais que um olhar para o passado, o marco dos 80 anos é recebido como um indicativo de que o que interessa ao poeta é o que ainda está por vir. Tanto que ao invés de alguma antologia luxuosa ou um volume de obras completas, preferiu lançar uma nova coleção de poemas, Em alguma parte alguma, a primeira em 12 anos.
A escolha é significativa e diz muito da forma com que Gullar sempre atuou. Sua trajetória é marcada pelo embate constante, por uma ousadia quase atrevida de sustentar ideias que o trazem não poucos desafetos. O poeta não temia novos caminhos, mesmo se estivessem na contramão daqueles que o escritor trilhara antes.
Trajetória
Ferreira Gullar nasceu José Ribamar Ferreira, em 10 de setembro de 1930, em São Luís, Maranhão. Foi o quarto filho dos onze do casal Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart. Iniciou-se na poesia, aos 13 anos, na tentativa de impressionar uma colega por quem se apaixonara. Criança agitada e inteligente, Gullar se fez um adolescente sensível às causas sociais.
Os primeiros flertes com o comunismo que mais tarde abraçaria se manifestaram ainda nas redações escolares e estão presentes no primeiro poema publicado, "O trabalho", de 1948. No ano seguinte, com recursos próprios, publica sua primeira coleção de poemas, Um pouco acima do chão - livro que mais tarde se negaria a incluir em suas "obras completas".
Na virada da década de 1940 para a de 1950, Gullar se encontrava em ebulição, agitado por ideias acerca do mundo e pela descoberta da poesia ("Foi com um livro de Rainer Maria Rilke", afirmou mais tarde). Deixou o Maranhão para se fixar no Rio de Janeiro, de onde só sairia anos mais tarde, para fugir da repressão da ditadura militar.
Foi no Rio que conheceu Mário Pedrosa, pernambucano que teria grande influência tanto em suas ideias políticas quanto em sua concepção de arte. Ao lado de Pedrosa, Gullar converteu seu interesse pela arte em atuação, passando a escrever para jornais e revistas. A imprensa foi o que, aliás, garantiu-lhe a sobrevivência: ora escrevendo, ora trabalhando como revisor.
Em 1954, Ferreira Gullar lançou uma de suas obras mais importantes, A Luta Corporal, que recebeu elogios do modernista Oswald de Andrade antes mesmo de ser publicado. Nele, o poeta testava os limites da linguagem, procedimento que o esgotou e lhe deu dores de cabeça ao negociar com impressores para que o livro contasse com uma inusitada sintaxe visual.
Concreto
As experiências poéticas de Gullar chamaram a atenção dos paulistas Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, que desde 1952 trabalhavam em conjunto numa poesia que mais tarde seria chamada concreta. Foi através do maranhense que acessaram outros poetas e artistas do Rio de Janeiro para, em conjunto, lançar em dezembro de 1956 a I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (no ano seguinte, a mesma mostra foi montada na capital carioca).
A parceria, marcante para os envolvidos durou pouco: Gullar discordou abertamente do manifesto em que os paulistas defendiam a "matemática da composição" poética. Da discordância surgiram ideias que mais tarde Gullar cristalizaria sob a forma do "Manifesto Neo-Concreto" (1959), escrito solitariamente, mas assinado coletivamente por Lygia Pape, Franz Waissman, Lygia Clark, Amilcar de Castro e Reynaldo Jardim.
Em diálogo com esse grupo de artistas, Gullar aproximou seu fazer poético das artes visuais, não se restringindo à sua dimensão pictórica, mas flertando com a escultura e a instalação. Neoconcretista, o poeta projetou obras famosas, como o "Poema enterrado", no qual uma sala subterrânea guardava uma peça de uma palavra apenas: "Rejuvenesça".
Como se mostrou comum à obra de Ferreira Gullar, um ciclo se fechava para que, após a crise, um novo se iniciasse. Para ele, a experiência neoconcreta chegou ao seu limite em meados dos anos 60. Foi precisamente no dia do golpe militar, em 1º de abril de 1964, que Gullar se filiou ao Partido Comunista.
Momento marcante não apenas para sua vida, como para sua produção. Adotou a fórmula poética das literaturas de folheto do Nordeste (cordel), escreveu peças de teatro e panfletos em que almejava uma comunicação direta com o "povo". Atuações que o obrigaram a tornar-se um clandestino, a fugir do País, passando pela Argentina e pelo Chile. Foi no exílio que Ferreira Gullar compôs um de seus livros mais importantes - Poema sujo. Nele, o tom militante era deixado de lado. Um novo fazer poético era apresentado, marcado por uma angústia existencial que impregnava as referências à infância e aos percalços como militante comunista. Mais tarde o poeta diria que o tom visceral do livro nascera da condição de incerteza.
Quem trouxe a obra para o Brasil foi Vinicius de Moraes, amigo do poeta. Ela veio na forma de uma fita cassete, na qual o próprio Gullar lia os versos, e que rodou diversas mãos até encontrar um editor disposto a publicá-los. Tom semelhante marcou a obra posterior de Gullar, não tanto pela amargura das memórias, mas pelas reflexões a respeito do ser e do dizer.
Família
"Não quero ter razão, quero é ser feliz" é o bordão inesperadamente bem-humorado que o poeta repete quando fala de sua vida. Gullar mora sozinho, em Ipanema. É casado com a poeta gaúcha Cláudia Ahimsa, segue trabalhando como tradutor, articulista da Folha de S. Paulo e, quando tomado por algum assombro, como poeta.
Fonte: Diário do Nordeste, texto de Dellano Rios
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