terça-feira, 7 de setembro de 2010

"Meu Primeiro Magritte", de Tércia Montenegro para O POVO

No hotel em Florença, em cima da cômoda, achei o folder da exposição sobre os “pintores metafísicos”. Não tive dúvidas quanto a passar as primeiras horas na cidade seguindo um mapa até encontrar o Palazzo Strozzi. Tinha visto um Magritte poucos dias antes, em Veneza, na Fundação Peggy Guggenhein: uma belíssima conjunção de noite e dia, na paisagem que alguns classificam de surreal, mas para mim é algo mais específico e intraduzível.


No Palazzo Strozzi também havia quadros de Max Ernst e De Chirico, montando o fio temático da mostra – e eu pensava nessa dimensão dita transcendental, onírica ou ilusória, um mundo à parte, criado pelo imaginar. Claro que tudo estimulava o pensamento, e era fácil, por exemplo, compor o ateliê dos artistas no momento em que as obras foram feitas. Uma confusão de cores no feitio de espasmos: ao menos, seria assim para Max Ernst, dadaísta e irreverente. Pensei nos seus gestos ágeis traçando a estranha criatura, semelhante a um pássaro, que dizem ser seu alter-ego na pintura.


Imaginei De Chirico para além dos manequins e das paisagens solitárias: um homem de rosto expressivo, que um dia recebeu certa mulher misteriosa para fazer-lhe um retrato. A mulher era brasileira, escritora, e estava morando na Itália. Posou para De Chirico durante três tardes silenciosas, e numa delas ouviu-se na rua o jornaleiro gritando: a guerra tinha acabado! Mas De Chirico continuou com os pincéis, e a mulher, que se chamava Clarice Lispector, talvez não tenha estranhado.


O meu preferido, entretanto, sempre foi Magritte. Fantasio sua voz em tom terno, com curtas frases, muitas irônicas; uma piscadela de olhos esperta, que seria impossível para o estrondoso Dalí. Claro que me encantam as geniais criações do surrealista espanhol – mas guardo uma especial comoção para este delicado belga, René. Seus sonhos são mais poéticos e delicados, e com ele sinto ter maior “empatia de delírios” em arte, se assim se pode dizer.


Aconteceu desde o primeiro momento, quando conheci seus quadros em reproduções de livros, na época de minha licenciatura em francês. A chuva de homens com chapéu-coco, as aves em silhueta, o traço perfeito para criar rupturas de sentido... Aquela pintura me fulminou de um jeito tão intenso que habitou meus olhos para sempre. Eu a reencontrei em Veneza e Florença com a emoção de folhear retratos de um antigo amor: mãos frias, respiração curta... Algo que ainda hoje permanece, quando deparo, em certas manhãs, com esse céu de um azul esticado e uniforme: um céu de Magritte, que Fortaleza – quando se despe de nuvens – sabe muito bem ter.


Tércia Montenegro em crônica publicada na coluna Opinião, do jornal O Povo em 11/08/2010.

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