segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

"Fortalezantiga: resumo adaptado", de Raymundo Netto para O POVO

 


Para Narcélio Limaverde

Era uma segunda-feira, dia de almas e de sapateiro. Sentava num dos bancos da praça do Ferreira, o que fica em frente ao cine São Luiz, e, lançando pipocas aos pombos, nem acreditava: o governo estadual comprara da família de Luiz Severiano Ribeiro o prédio do cinema, atualmente o mais antigo inda em pé na cidade e, sem dúvida, um dos mais bonitos do país. Até trasanteontem, ameaçavam vesti-lo de manto neopentecostal ou de plantar na sua boca de cena a tribuna da comédia dos edis, dois pecados mortais.

Hoje, finalmente, a esperança tocava os carrilhões deste coração malamado. Foi quando vi surgir ali, dobrando a frustrada rua do Ouvidor cabeça-chata, um garoto, o Narcelinho da avenida do Imperador. Estranho: vinha de bermuda e chinelinha, mas vestia um paletó de alpaca. Debaixo do braço esquerdo trazia um volume do Tesouros da Juventude, um Almanaque Bristol e um exemplar da raríssima Scena muda, revista de cinema. Na mão direita, um radinho de pilha enamorava o ouvido. Olhou para as janelas do sobrado do Majestic – como se estranhasse os cúmplices lençóis alarmando amores clandestinos – e sentou-se ao meu lado, num formal boa-tarde, se pondo a admirar com certo elã, à João Ramos, seu reloginho Polono, de corda, que, segundo ele, “tinha até ponteiro dos segundos”. Não queria crer, e assim mesmo perguntei: “Narcelinho, não me diga que você veio para assistir a algum filme neste cinema?” Não deu outra. Era sim! Não tinha pressa, esperaria abrir a bilheteria: “Havia alugado até o paletó no Cabana, não havia? Ademais, não sou nem a Fátima Miris para ficar de troca-troca de roupas.” Disse também que vinha da aula de datilografia do seu Quincas, que era parede e meia com sua casa, e não tinha mesmo o que fazer. Sua irmã, a Reine, havia lhe pedido para acompanhá-la até o Patronato Nossa Senhora Auxiliadora, pois como não tardava o dezembro, haviam começado os ensaios e preparativos para o famoso pastoril das irmãs Breves, e ela interpretava um dos papéis. “Na saída, ainda cheguei a tirar onda com o jumentinho do seu Antônio verdureiro, responsável por levar no lombo o sagrado bonequinho Jesus.” E cadê os seus amigos? Não tem amigos? “Eu? Tenho ibope, sou muito popular. Aliás, tenho tantos amigos que nem conheço todos! E, afora o cinema, eu gosto mesmo é do rádio... Eu amo o rádio!” Quando perguntei que programas costumava ouvir, respondeu-me: “‘Coisas que o tempo levou’, ‘Bazar de música’ e a ‘Hora da Saudade’, todos da perrenove (PRE-9).” Mas quem é que apresenta esses programas? “O speaker? É o papai! Para ele, o rádio nem é mais trabalho, mas um vício!”

Tinha que ir-me. Não sabia o que fazer com Narcelinho, afinal, o menino teria que esperar muito até que o cine São Luiz retornasse as suas atividades. Parecia não se importar. Enquanto não abrisse, ele bateria perna, encontraria outros meninos, iriam ao parque Shangai da praça José de Alencar, à Feira da Mocidade da praça do Liceu, à Festa da Imprensa no Passeio Público, passariam no La conga para alugar calções de banho e pulariam no mar de Iracema ou mesmo, na pior das hipóteses, ficariam naquela praça, acompanhando os casais morcegando nos bondes: “Raymundo, não tenho pressa para ir a canto nenhum, afinal, a gente enverga, mas não quebra! Tudo o que quis na minha vida, felizmente eu consegui. Minhas maiores paixões e amores nunca me abandonaram, assim como eu nunca os abandonei. Trabalho há anos naquilo que me dá sentido à vida, e se me perguntassem, faria tudo de novo. Só espero e torço para não ser por minha voz, no ar e ao vivo, o anúncio do fim do mundo.

 

*resumo adaptado do texto original publicado em Crônicas Absurdas de Segunda (2015), uma homenagem ao querido amigo e radialista Narcélio Limaverde, falecido em 26.01.2022.




6 comentários:

  1. Registro e resgate histórico de uma vida que se mistura com a cidade. Muchas gracias por insistir na homenagem justa ao que é mais cearense que o brilho do sol. E por curvar-se ao lado de Narcelio Limaverde - rádio, voz e espírito de Fortaleza

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  2. Belíssimo (texto) resgate em homenagem ao grande homem, radialista, comunicador Narcelio Limaverde.

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  3. Muito fácil: já era fã do pai, José Limaverde, e me tornei do filho, Narcélio. Difícil é não senti saudades desses grandes atores do cenário fortalezense!

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  4. Pois é, vício do pai, vício do filho, para a nossa alegria. Deixou um acervo de legado, felizmente.

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