Sempre me atraíram as ruas sem saída, como
se fossem nada mais que uma negação delas mesmas: afinal para que serve uma via
senão para comunicar-se com outras, levar enxurradas de ventos e gentes de um
lado pra outros? Tão perigosas suas entranhas que geralmente nos mostram como
aviso: Cuidado – Rua Sem Saída!
Quem, que não vá visitar alguém que more em
tal sítio ou oferecer algum produto aos seus moradores, irá arriscar pegadas em
seu trajeto.
Confesso: já me fiz de desentendido, fingi
baixar a cabeça e segui adiante rumo ao fundo de muitas ruas sem passagens...
Coisa de louco? Talvez, mas quem sabe “sabedoria” de sujeito curioso de
conhecer o que há por trás das coisas, mesmos as tão obscuras ou óbvias.
Apenas chegava ao final e dava meia volta,
antes olhava de soslaio para ver se tinha plateia... Caso sim, balançava a
cabeça como se fosse mais um distraído que não mirou para frente e voltava
fingindo vergonha pelo patético descuido; caso não houvesse bisbilhoteiros,
voltava observando tudo, o “jacaré” de flandres enferrujado numa fachada, o
desolado telhadinho em “mão francesa” pendente sobre uma porta, aqueles ângulos
todos tão particulares e presenciados por bem poucos.
Que estranho, pensava, chegar ao fundo de uma
reles rua sem saída: sentia-me ao mesmo tempo bobo e esperto, idiota e sábio...
Afinal pouquíssimos provariam essa deliciosa experiência de entrar e sair
impunimente de uma rua sem passagem.
De início não as procurava intencionalmente,
apenas aproveitava a coincidência de encontrá-las por aí ao léu, esquecidas em
sua estranheza única: então passei a caçá-las, de início sem pressa e, que
vergonha!, com o andar dos anos com avidez dos que buscam grandes tesouros...
Cheguei mesmo a alugar um casebre em determinada vila sem saída na Rua Bárbara
de Alencar quase esquina com Idelfonso Albano: confesso que me afeiçoei tanto à
vilinha que descobri com moradores mais velhos que um dia ela tivera a charmosa
alcunha de Vila Amora, então encomendei placa imitando a das ruas importantes e
num sábado bem cedo pregamos – com ajuda de dois adolescentes que adoravam
jogar bola usando como trave exatamente a parede dos fundos quase colada à
minha porta – a placa azul com letras brancas que ainda hoje se encontra por
lá.
Com os anos me aquietei de buscar essas
excrescências urbanas, conformei-me com as chatas ruas normais, nas quais se
transita sem motivos que não sejam os triviais: deslocar-se de um canto a
outros, cortar distâncias em menos tempo, pois rumando célere em direção à
morte não me apetecia mais perder tempo com inutilidades.
Até o dia que me deparei com o delicioso livro
de Naguib Mahfuz, O Beco do Pilão,
que ambienta toda sua narrativa num velho beco sem saída do Cairo, onde vidas
humanas (mas não só) chafurdam: “Muitos testemunhos afirmam que o Beco do Pilão
era uma das pérolas de seu tempo e que brilhou como uma estrela resplandecente
na história do Cairo. (...) Apesar de estar quase totalmente isolado do curso
do mundo, pulsa nesse beco uma vida própria que guarda as raízes da vida como
um todo e preserva, por isso mesmo, uma infinidade de segredos do mundo
exterior”.
Desde então (já que as pernas não me ajudam
mais a procurá-las) busco nos livros, fotografias em jornais e revistas, mas
principalmente na memória as muitas ruas sem saída que percorri pela vida
inteira: E creio que o farei até o final dos meus dias, quando – mais uma vez
curioso e bobo – entrarei na mais bela e trágica das ruas sem saída: então não
mais terei coragem de me fazer de desentendido, fingindo descuido, e voltar
meneando a cabeça!
Magnífico!
ResponderExcluirLembrei da casa que a tia Geny morava.
ResponderExcluirQue gosto peculiar, que coisa linda esse texto.
ResponderExcluirTodos iremos um dia cair em um beco sem saída e teremos a felicidade de termos tido a chance de optar pela melhor travessia. Belíssima crônica! Me fez lembrar do "Beco das Foices" no conto "Encurralado" do livro "Contos Farpados" cujo desfecho culmina em uma única saída ou não?
ResponderExcluirEu me vi em tantos becos e TB lembrei da casa da d. Geni. Deliciosa leitura!! Quantas memórias saborosas me abraçaram!!!
ResponderExcluirQuerido amigo, Pedro Salgueiro, quanta beleza há nesta apaixonante crônica, a qual retrata sua contagiosa sensibilidade que me inebria e arranca lembranças de um beco próximo à rua J. da Penha, antiga Aldeota. Naquele beco morava um grande amigo meu, formado em engenharia, dono de uma inteligência privilegiada, porém bastante pobre, mas hoje é bem rico. Ele fazia as refeições na casa de sua tia, minha vizinha, na citada rua, assim nasceu a nossa amizade. Certo dia, perguntei-lhe por qual motivo nominaram o lugar de "Beco dos Pecados"; ele sorriu e disse: - Lá é o melhor lugar do mundo! Tudo acontece, desde mulheres correndo nuas pela rua, a qualquer hora; valentões quebrando botequim; bêbado chorando por amor; marido pegando mulher no flagra; chove mais dentro de casa do que na rua; roubam o varal; pedem esmola; vizinhos são despejados todos os dias; os ébrios cantam batendo em latas... Lá é o melhor lugar do mundo, pois todos nós estamos vivos e alegres, apesar dos percalços.
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