sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

"O Beco do Pilão", de Pedro Salgueiro para O POVO

 

Sempre me atraíram as ruas sem saída, como se fossem nada mais que uma negação delas mesmas: afinal para que serve uma via senão para comunicar-se com outras, levar enxurradas de ventos e gentes de um lado pra outros? Tão perigosas suas entranhas que geralmente nos mostram como aviso: Cuidado – Rua Sem Saída!

Quem, que não vá visitar alguém que more em tal sítio ou oferecer algum produto aos seus moradores, irá arriscar pegadas em seu trajeto.

Confesso: já me fiz de desentendido, fingi baixar a cabeça e segui adiante rumo ao fundo de muitas ruas sem passagens... Coisa de louco? Talvez, mas quem sabe “sabedoria” de sujeito curioso de conhecer o que há por trás das coisas, mesmos as tão obscuras ou óbvias.

Apenas chegava ao final e dava meia volta, antes olhava de soslaio para ver se tinha plateia... Caso sim, balançava a cabeça como se fosse mais um distraído que não mirou para frente e voltava fingindo vergonha pelo patético descuido; caso não houvesse bisbilhoteiros, voltava observando tudo, o “jacaré” de flandres enferrujado numa fachada, o desolado telhadinho em “mão francesa” pendente sobre uma porta, aqueles ângulos todos tão particulares e presenciados por bem poucos.

Que estranho, pensava, chegar ao fundo de uma reles rua sem saída: sentia-me ao mesmo tempo bobo e esperto, idiota e sábio... Afinal pouquíssimos provariam essa deliciosa experiência de entrar e sair impunimente de uma rua sem passagem.

De início não as procurava intencionalmente, apenas aproveitava a coincidência de encontrá-las por aí ao léu, esquecidas em sua estranheza única: então passei a caçá-las, de início sem pressa e, que vergonha!, com o andar dos anos com avidez dos que buscam grandes tesouros... Cheguei mesmo a alugar um casebre em determinada vila sem saída na Rua Bárbara de Alencar quase esquina com Idelfonso Albano: confesso que me afeiçoei tanto à vilinha que descobri com moradores mais velhos que um dia ela tivera a charmosa alcunha de Vila Amora, então encomendei placa imitando a das ruas importantes e num sábado bem cedo pregamos – com ajuda de dois adolescentes que adoravam jogar bola usando como trave exatamente a parede dos fundos quase colada à minha porta – a placa azul com letras brancas que ainda hoje se encontra por lá.

Com os anos me aquietei de buscar essas excrescências urbanas, conformei-me com as chatas ruas normais, nas quais se transita sem motivos que não sejam os triviais: deslocar-se de um canto a outros, cortar distâncias em menos tempo, pois rumando célere em direção à morte não me apetecia mais perder tempo com inutilidades.

Até o dia que me deparei com o delicioso livro de Naguib Mahfuz, O Beco do Pilão, que ambienta toda sua narrativa num velho beco sem saída do Cairo, onde vidas humanas (mas não só) chafurdam: “Muitos testemunhos afirmam que o Beco do Pilão era uma das pérolas de seu tempo e que brilhou como uma estrela resplandecente na história do Cairo. (...) Apesar de estar quase totalmente isolado do curso do mundo, pulsa nesse beco uma vida própria que guarda as raízes da vida como um todo e preserva, por isso mesmo, uma infinidade de segredos do mundo exterior”.

Desde então (já que as pernas não me ajudam mais a procurá-las) busco nos livros, fotografias em jornais e revistas, mas principalmente na memória as muitas ruas sem saída que percorri pela vida inteira: E creio que o farei até o final dos meus dias, quando – mais uma vez curioso e bobo – entrarei na mais bela e trágica das ruas sem saída: então não mais terei coragem de me fazer de desentendido, fingindo descuido, e voltar meneando a cabeça!



6 comentários:

  1. Lembrei da casa que a tia Geny morava.

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  2. Que gosto peculiar, que coisa linda esse texto.

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  3. Todos iremos um dia cair em um beco sem saída e teremos a felicidade de termos tido a chance de optar pela melhor travessia. Belíssima crônica! Me fez lembrar do "Beco das Foices" no conto "Encurralado" do livro "Contos Farpados" cujo desfecho culmina em uma única saída ou não?

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  4. Eu me vi em tantos becos e TB lembrei da casa da d. Geni. Deliciosa leitura!! Quantas memórias saborosas me abraçaram!!!

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  5. Querido amigo, Pedro Salgueiro, quanta beleza há nesta apaixonante crônica, a qual retrata sua contagiosa sensibilidade que me inebria e arranca lembranças de um beco próximo à rua J. da Penha, antiga Aldeota. Naquele beco morava um grande amigo meu, formado em engenharia, dono de uma inteligência privilegiada, porém bastante pobre, mas hoje é bem rico. Ele fazia as refeições na casa de sua tia, minha vizinha, na citada rua, assim nasceu a nossa amizade. Certo dia, perguntei-lhe por qual motivo nominaram o lugar de "Beco dos Pecados"; ele sorriu e disse: - Lá é o melhor lugar do mundo! Tudo acontece, desde mulheres correndo nuas pela rua, a qualquer hora; valentões quebrando botequim; bêbado chorando por amor; marido pegando mulher no flagra; chove mais dentro de casa do que na rua; roubam o varal; pedem esmola; vizinhos são despejados todos os dias; os ébrios cantam batendo em latas... Lá é o melhor lugar do mundo, pois todos nós estamos vivos e alegres, apesar dos percalços.

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