“(...) É no jornal que o povo
encontra o seu pão espiritual de cada dia. O jornal descortina-lhe o mundo,
vencendo distâncias. [...] Quando o povo geme escravo, entorpecido pelas
algemas do cativeiro, indiferente à violência paralisante do grilhão, o jornal
é o sangue novo, forte e generoso a nutrir-lhe as células dormentes, a
despertar-lhe os neurônios amortecidos, a ondear-lhe, nas veias, a torrente
vigorosa e enérgica da revolta. O povo precisa de mais gritos que o estimulem,
de mais vozes que lhe falem ao sentimento. Eis porque surgimos...”
Esse é um
fragmento do primeiro editorial d’ O POVO, o jornal
mais antigo e o único diário em exercício e impresso no Ceará, publicado em 7 de janeiro de 1928, ou seja, há 94
anos. Foi escrito pelo seu fundador, o jornalista, telegrafista, odontólogo,
político e poeta baiano Demócrito Rocha (1888-1943).
Quem
conhece um pouco da história do Ceará sabe que é impossível se passar pelas
décadas de 10 a 40 do século XX sem tocar em seu nome. Na década de 20, em especial,
por meio de suas “Notas”, a princípio no periódico O Ceará e depois em O POVO, era, em um tempo sem rádio, TV
ou internet, a legítima voz do povo que acolhera em seu coração, razão pela
qual teria sido, na época, covardemente surrado e humilhado em emboscada em praça
pública por 12 policiais armados a mando do governador.
Então,
decidiria: fundaria o seu próprio periódico na marra, por atrevimento, com
pouquíssimos recursos e quase nenhuma condição, movido pelo sonho de edificar o
jornal que ele queria, mais justo, livre e independente, inovando o fazer da
imprensa desde então.
Com início
num sobradinho da praça dos Leões, um gregário Demócrito criava campanhas,
concursos, promoções, poemas, lia caligrafias, atraía intelectuais e
escritores, idealizava projetos musicais na recente rádio PRE-9, elaborava
estratégias comerciais, participava de reuniões artísticas, políticas e sociais
de toda natureza. Durante algum tempo, exerceu concomitantemente as carreiras
de dentista e de professor da Faculdade de Odontologia – do qual também foi
defensor – para ajudar a pagar a folha e manter a sua família: a esposa Creuza
e as filhas Albanisa e Lúcia.
Assim, com
muita resiliência – e forte dose de teimosia e idealismo – conseguiu sobreviver
à quebra da bolsa de Nova York, logo no ano seguinte, além de duas grandes
guerras mundiais, às censuras e golpes de estado e a todas as crises nacionais
e internacionais que elevavam os preços dos insumos e equipamentos, entre os
quais, o imprescindível papel.
O POVO, ele sabia, seria amado e odiado, aclamado e perseguido, de modo que
habilmente pressentia quando reagir e/ou quando recuar, tudo ao seu tempo, e
nada mais natural para uma folha que trazia entre seus princípios a democracia,
princípio esse que Demócrito levou às tribunas quando deputado federal, até ser
deposto durante a ditadura Vargas. Idealista, Demócrito não visava ao poder,
morrendo sem nunca ter tido uma casa própria ou publicado um único livro seu,
ao tempo que publicava e promovia os de outros talentos locais.
Entendo
que o jornal O POVO, aos 94 anos, não é a sua diretoria, assim como
também não é apenas o seu corpo funcional, menos ainda o edifício que o acolhe.
Escorre por ele o sangue Demócrito Rocha – talvez o mesmo citado em seu famoso
poema “O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta” – e de todos os seus sucessores:
Creuza do Carmo Rocha, Paulo Sarasate, Albanisa Sarasate, Demócrito Rocha
Dummar e, hoje, Luciana Dummar.
Esse
acervo de histórias é um patrimônio legitimamente cearense e que vai mais além,
trazendo nessa “artéria aberta” o espírito de todos aqueles que por essa escola
passaram um dia. De personalidades reconhecidas a pessoas comuns que
encontramos nas ruas, nos bares, nas igrejas, nas praças e que, ao saberem que
fazemos parte do O POVO, nos relatam histórias suas ou de parentes
e amigos que ali escreveram ou trabalharam, ou mesmo as de assinantes
históricos e de matérias que os impactaram. Já conheci jornalistas, editores,
gráficos e até ex-gazeteiros que se recordam do som das pesadas máquinas ou das
campainhas que indicavam a hora de distribuir o vespertino.
O jornal
de Demócrito, aniversariante do dia, acessível em grande audiência pelos
impressos, celulares, tablets, computadores, rádio e TV, é presente
em 94 anos de história de todos os dias e em todos os segmentos, fazendo as
contas para além do calendário, significando e revelando muito mais do que
podemos ver, ler, ouvir ou tocar. E tudo isso a partir do sonho de um homem.
P.S.: Se você se interessou em conhecer mais sobre a vida e obra de Demócrito Rocha, assista ao vídeo de Os Cearenses: https://www.youtube.com/watch?v=_fYlVceVoZk
Que maravilha de texto. Viajei no tempo e recordei o breve período em que também fiz parte de O Povo. Este jornal sempre foi e será o meu referencial. Parabéns a você e a todos que fizeram e fazem o O Povo.
ResponderExcluirObrigado, Fabreu. Sim, você faz parte demais dessa história.
ExcluirQue bonita história sonhou e realizou Demócrito Rocha. O Povo sempre foi motivo de orgulho da nossa terra.
ResponderExcluirObrigado, Zélia, pela leitura e retorno.
ExcluirExcelente! Texto pra lá de excelente. Maravilhosa história de seu fundador.Fui assinante por um tempo. Realmente um jornal de responsabilidade e credibilidade. Parabéns!!
ResponderExcluirMuito grato pela leitura. Abraço.
ExcluirVárias vezes na minha infância admirei as máquinas fazendo jornal,na época ficava na rua Senador Pompeu,tempos depois mudaram par a Av.Guanambi,ótimas lembranças
ResponderExcluirEita, foi longe... Foi uma sede, a da Senador Pompeu, que viveu muito sucesso do jornal. Sim, ótimas lembranças.
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