Para
Zuila Nóbrega
Bate-me à porta o de
2022. O Velho, o de 2021, pula-me a janela,
feito um amante em cinzas, sem despedidas. O Novo chega envolto em fraldas
enrugadas de promessas de esperanças, o anúncio de vida bafejante aos olhos
nunca tristes, sempre azuis, a trazer, como de costume, as mãos vazias. Já
amadureci o suficiente para saber: ele nada traz que nós já não tenhamos. Pois
sim, vem ele, todo em Menino, e abanca-se no sofá. Olha-me terno, como a saber
de tudo de mim. Sorri balançando as perninhas ligeiras e pergunta sobre o
Velho, o que foi dele. Poderia dizer muito, entre confissões cansadas de se
repetir por demãos de cal de incompreensão e certa autopiedade, mas pouco de
nada lhe disse, porque a palavra falada seca a língua, trava à garganta,
finca-se entre os dentes, dói ao peito resfolegante. O pensamento, coitado,
mais confuso do que provador feminino em véspera de Natal, despeja as suas
verdades: “Tenho os melhores amigos do mundo, a melhor família – embora me
sinta irremediavelmente só – e o módico castigo de tentar escrever escrevendo.
Entre palavras, a correria insensata, sempre de trabalho – mais do que mereço
–, mais dos outros e pouco de mim.
Mesmo
assim, passei a limpo as minhas faltas, ausências, cansaços e promessas não
cumpridas que puseram por terra a estima de alguns menos compreensivos. Tinha
que lembrar e lhes pedir desculpas. Antes, lembrar de!
Na semana
passada, durante uma das 100 confraternizações em que fui convidado – cheguei
atrasado ou faltei –, uma senhora, a dona Zuila, no ecoar de seus 92 anos,
olhou-me nos olhos e vozeou: “A vida é breve demais... É maravilhosa, mas o que
fica é sempre muito, muito pouco.”
Tempo... sempre
o Novo e o Velho brincando de revezamento, como a pular carniça, sem dós de seu
ninguém, imagine se de mim. Às palavras da dona Zuila, deu-se a melódia: a
incompletude de vida baixou-me em cortina. A lua, toda céu, insinuava ondas no
mar. Desfiando a história de M., que começou na cachoeira do Riacho do Sangue,
rompeu-me o coração alfinetado de saudades – não há uma única lembrança que não
me doa –, o desejo de saltar no escuro, a esfolhar uma a uma das mealhas de
meus dias, desfazer-me dos trilhos seguros, largar por aí o entulho às costas,
desmanchar os escritos, continuar a apaixonar-me, como desde garoto, pela
desconhecida que me passa na rua, mesmo quando ela nunca o fora nem jamais o
será por mim. Amar, um dia – ou dois –, ganhar o mundo, perder a vida, sumir!
Ora, como me lembra a princesa Isadora, das Claráguas del Noroña, na voz de
Manoel de Barros: “Tenho em mim esse atraso de nascença.”
Daí que o
improviso dessa crônica berce sem atrasos ou pudores e seja absolutamente
branco, como se não existisse, nem fosse legível, como não se pudesse guardar.
Que se queime, que se rasgue, que seja esquecida, que carregue do cimo distante
a paz mais incômoda. Que chegue como sorriso tatuado na testa, a desconstruir
espíritos, a apagar velas, a torcer orelhas, a beber-lhes da carne. Assim,
verei aquele Menino-Velho se ir, veloz, mas marcando em definitivo a única
coisa que nos pertence realmente nesta vida: o mais que imperfeito e impaciente
AGORA!
P.S.: vez por outra eu me lembro do
mundo grande.
Raymundo meu amigo, como são breves os momentos e como nós fogem das mãos. lendo e me policiando de saber e nunca ou quase, voar através desse jeito de deixar ou ficar para depois. um ser especial de nos mostrar e relembrar, você, que antes de qualquer coisa ou tudo se precisa agradecer e humanizar. um abraço
ResponderExcluirMuuuito obrigado, Lucirene. A vida nos ensina todos os dias, não é? O melhor é que os(as) professores(as) podem ser qualquer um(a)... Atenção, sempre. Grande abraço.
ExcluirTexto sempre encantador, especialmente qdo traz marcas de reminiscências...parabéns.
ResponderExcluirGrato, prof. Vicente. Grande abraço (reminiscentes também rsrs)
ExcluirVejo a sorte que temos na oportunidade dos seus textos. Dá até vontade de lançar grandes suspiros.
ResponderExcluirFabreu, pois vamos suspirar, querida. Ahhhhhh... rsrsr Abração
ExcluirRaymundo, bela reflexão. Um abraço.
ResponderExcluirPrezado Raymundo Netto,
ResponderExcluirSua crônica que sacode dentro de nós, as dúvidas e incertezas que alimentamos. Muito boa!