segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

"O Mundo segundo Ferreira Gullar", de Raymundo Netto (2009)


Numa palavra: intraduzível.
Semiótica às favas, e com ela a “estupidez” conceitual e seus tangentes quadradismos, você perpassa por extremos que se comungam com desembaraçado misto de criatividade e lógica. A primeira, traço que, para mim, é a marca maior de sua natureza indomável, e a segunda, fruto da sua impossível busca de segurança.
Como do mar a onda que verdeja silenciosa na areia àquela que se rasga em ribombos, forte e irrefreável, nos diques, em ressaca, nos chega: a voz neutra modulada pela fala com correção em tom professoral, o castanho olhar analítico, o pensamento encadeado por reminiscências selecionadas da infância de quem era feliz e o sabia, a sensibilidade aguçada e a memória musical pulsante viva e apaixonada quase a gritar (ou a literalmente gritar).
Quando em olhar distante a acompanhar, no corredor “do café”, a fumaça sinuosa do “Carlton vermelho”, a rigorosa inquiridora e voluntariosa inquirida se abraçam, os conflitos se arraigam e se dissipam na cabeça corajosa de uma menina moleque de Noronha que desfila, magra, alta e bela, num corpo flor, ou à la fleur de la peau, de mulher. Assim como “a poesia que não respeita nada, que beija, acolhe no colo e promete incendiar o país” você vem e o tédio do dia se entorna em cor.
De tudo o quanto a comporta o coração encoberto, intenso, seletivo, quase impenetrável e só (mesmo fiel, você é sempre só, como as onças), é presente e subversiva como a boa poesia (e daí Gullar), sua certeza é perturbadora, sua doçura é envolvente, sua presença é inquietante.
“Uma parte de si é permanente, outra parte se sabe de repente. Uma parte de si é só vertigem; outra parte, linguagem.”
Impulsionada por desejo enleado em razão explícita, quando sorri o mundo inteiro delira em seu rosto. Quando acolhe, seus braços são nuvens. Quando explode, é furacão.
Dentre as coisas de todas, conhecê-la, aos poucos e sem pretensão de sabê-la inteira e toda, encanta-me, revela a visão de um mundo largo, arrebatante e original no qual ingresso, muitas vezes, na tentativa de margear a dor da obviedade institucionalizada de nosso mundinho, mesmo passeando despreocupados (e atrasados) pelos corredores quando “nos seus olhos também posso ver as vitrines lhe vendo passar”...
“Sabe, no fundo eu sou um sentimental” que fica feliz por tê-la por perto, inclassificável sobrevivente barroca, tão perto, e longe, a assistir a sua vida caminhar a passos de tango, disciplinados e de rompantes.

 “Sem música, a vida seria [e é] um erro.” (Nietzsche)


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