Noite
alta num bar em fuzilo de chuva, recente e jovem amigo chegou a chorar de
bêbado a dor pela perda da “noiva”, namorada eterna, maior amor de toda sua
(curtíssima) vida, desde os 18 aos atuais 25 anos.
Assistindo
ao choro, percebia-lhe a lágrima sincera a salgar os enegrecidos coraçõezinhos
flechados pelo espeto insensível de churrasqueiro. Respeitando sua dor e dela
não compartilhando — meus sofrimentos são bastantes para mim —, aboletou-me à
cabeça, sei lá o porquê, a lembrança de um primeiro cheque devolvido. Na época,
como ele, era muito jovem para entender a perecibilidade dos sentimentos
indesejosos, e cria ser aquilo de injustiça tamanha, “logo eu”, homem correto,
honesto, trabalhador, no começo da vida, por um descuido do sistema financeiro,
ser vitimado pelo atesto em carimbos de incompetência. Não sabia ainda que
pessoas assim são merecedoras (e carentes) mesmo de tais adversidades. Pois
sim, o primeiro me voltou como beliscão no orgulho. Em seguida, mesmo mês, mais
oito se numeraram àquele, até brilhar-me ante a manhã a notícia esparsa de que
parecia ter acontecido uma outra vez... Ora, e daí? Devo não nego, pagarei quando
puder e pronto! E paguei, sim, por nunca me gostar do dinheiro alheio. Nunca
mais tal coisa me foi de sofrimento e, talvez, por isso nunca mais me
aconteceu. Quando todas as dores do mundo parecem encontrar aconchego em nosso
peito, tudo se torna mais fácil, calejada a alma, rimos até diante dos pequenos
padecimentos.
No
cérebro, o "hard disk" da natureza humana, também o Criador engendrou
mecanismo similar, que os cientistas denominariam de “Portão de Controle”. O
que é isso? As fibras nervosas que transmitem ao cérebro os sinais de dor são
como "estradas carroçais", enquanto as que carregam os sinais de
pressão e de tato são "pistas asfaltadas". Assim, se no corpo houver
algum trauma (pancada, corte, etc), mas tiver muitos "estímulos" velozes
de natureza de pressão e/ou de tato (impulsos elétricos artificiais, massagem,
acupuntura, dô-in, etc), o cérebro fica tão “lotado” deles de não mais abrir seus
"portões" aos vagarosos sinais da dor, que, ao chegar em frente ao
portão verão apenas o cachorro sorrir latindo...
A
respeito da nunca sofismável e ao mesmo tempo caleidoscópica constatação, ao
encontrar, nas minhas madrugadas solitárias, o Mário Gomes, o filósofo das
calçadas, ele me parou, olhou torto — não só o olhar torto eu diria, devido à
desconjuntura de seu esquadro — e disse: “Raymundo Netto, você é um cara
simpático, mas não é feliz. Para o artista não é fácil ser feliz, mas você pode
conseguir... Pode... Mas tem que cair no fundo do poço primeiro para saber o
que é a felicidade.” No fundo do poço, repetiu.
E foi
no intervalo desse pensamento que o etílichato amigo, diante da minha aparente insensibilidade,
e com anseio de atirar em mim o pouco de sua ingênua tragédia pessoal,
sentenciou: "Você não sabe o que é amor, Raymundo, por isso nem
liga".
Sorri,
com a mais absoluta despretensão diante daquele seu grande e podre amor, e comprovei
que o que quero para mim é tão maior que não cabe dentro dele nem um nome.
Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br
Muito bem, meu caro Raymundo.
ResponderExcluirEssas tiradas são próprias do velho Mário. já presenciei algumas e constatei que os "doidos" (ou os assim considerados) carregam sábias verdades.
Abraço.
Pois é, chapa, tem quem seja doido por entender a loucura do mundo...
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