Dentro da
comemoração dos 70 anos de minha mãe Geni, planejamos (eu e o primo Mileno) uma
viagem aos vilarejos onde ela e, claro, os irmãos e meus avós maternos nasceram
e viveram suas infâncias, na primeira metade do século passado.
Teríamos que enfrentar
estradas carroçáveis num ziguezague danado pelo semiárido quase desértico entre
os municípios de Tamboril, Independência e Boa Viagem: um recanto do mundo
pouco habitável, com raríssima água disponível e população cada vez menor.
Juntamos mais
alguns primos, minha companheira Ana e minha irmã Geyna, os tios José e
Gilberta e rumamos na sexta feira, 13 de janeiro, em dois carros rumo às nossas
origens. A última vez que minha mãe e sua irmã haviam andado por aquelas bandas
tinha sido há mais de 50 anos, quando ainda eram mocinhas e nossa família fazia
pela primeira vez o caminho (sem volta) da zona rural para a pequena cidade de
Tamboril.
Mal deixamos o
Bairro das Pedrinhas e atravessamos o Cercado do Estado na direção do Bom Tempo
ela foi adquirindo uma ansiedade própria das crianças que dão os primeiros
passos: os olhos, entre arregalados e lacrimejantes, iam se recordando
milagrosamente de coisas nas quais nunca mais haviam pensado, tocado, olhado
desde suas meninices distantes.
Na Fazenda Cilista
foram, os irmãos emocionados, se recordando das primeiras descobertas da
infância, das brincadeiras nos terreiros em noites de lua, naquela enorme casa
de reboco milagrosamente preservada em tudo: na janelinha para o oitão onde um
irmão empurrou o outro em 1957, nos armadores (que eu nunca havia visto nem
imaginado iguais) de galhos de árvores parecendo cotovelos de madeira torta
saindo das paredes em que armavam as muitas redes, na camarinha escura onde a
irmã Núbia falecera de apendicite, no quartinho de bodega do avô Chico Inácio,
na linha do teto onde numa noite de chuva com vento caiu um raio, que abriu um
enorme buraco no teto e encheu de espanto a imaginação dos pequenos.
Tudo isso narrado
pela memória prodigiosa do tio José.
Fomos saindo de lá
e retomando a estrada de pura terra e poeira como se andássemos sobre nuvens,
as cabeças distantes no tempo em que apenas animais atravessavam aquelas
paragens ermas, percorrida mais por anuns e raros galos de campinas. Logo
avistamos, da passagem do mata-burros, por sobre o açude em que minha mãe um
dia quase se afogou, a localidade de Oliveiras, onde viveram por muitos anos e
nasceram alguns dos vários filhos. O casarão mais que centenário em que meu avô
foi criado, as três casas (uma só já caída) em que habitaram, lá ouvi pela
milésima vez a famosa história dos quatro assassinatos por vingança da morte do
Velho Dionísio (o lendário Jumentão da Maravilha), acontecidos na bodega de meu
avô Chico Inácio.
De lá rumamos,
depois de conversarmos um pouco com o quase centenário Chiquinho Flor, para a
Curimatã. Então visitamos a casa dos Diogos e suas velhas fotografias nas
paredes protegendo a solidão de Rosa, que me presenteou com uma boneca de sua
infância: “Você tem filha? Leve pra ela, eu fiz quando era criança...”. Em cada
alcova ainda os suspiros dos mortos. Como que por encanto pularam a cerca,
vindos de um brocado atrás da casa, os irmãos Antônio (e sua nobre Guerreira) e
Chico. Eu fiquei sem saber se eles eram reais ou somente visagens, na dúvida
chamei os outros para que fôssemos logo procurar a Cruz de Zé Guilherme, morto
(lá para as bandas do São Francisco) em 1928, a mando do Velho Dionísio, que
por sua vez fora assassinado 32 anos depois de maneira semelhante dentro de sua
fantasmagórica casa (fato que desencadeou a vingança, já citada, dos quatro
assassinatos na bodega de meu avô).
Precisaria de um
livro inteiro para descrever todas as emoções que senti, através de meus
próprios olhos e dos de meus familiares, nessa simples (mas profunda) viagem de
regresso.
Voltamos para
Tamboril cobertos de poeira e de sonhos, certos de que nunca mais seríamos os
mesmos.
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