terça-feira, 6 de dezembro de 2011

"Hábitos do ofício, brincadeiras testosterônicas e boemia 1: happy hour de bancários", de Manuel Soares Bulcão Neto


"Angústia" de David Alfaro Siqueiros




“Não leve problemas do trabalho para casa”, determina o bom senso. Mas… e quanto a nós, escritores, que trabalhamos em casa, sob – como se costuma dizer – os “tormentos da criação”? E sem ganhar dinheiro?! Por isso que minha mulher (inteligente e pragmática como todas as advogadas) pediu o divórcio. Decisão sensata.
Quanto aos “hábitos” do ofício, ora, passamos a maior parte do nosso tempo de vigília trabalhando. Tão condicionados ficamos que impossível não levá-los para onde quer que vamos.
A propósito, lembro-me da época em que fui bancário (escriturário do extinto BEC). Sexta-feira à noite, relaxávamos eu e outros – todos, menos eu, estudantes ou formados em Contabilidade – pelos bares da Avenida Tristão Gonçalves. Pois, bêbados ou não, em qualquer conversa manifestavam sua “visão contábil do mundo”. Exemplo: à luz de um globo colorido e giratório, contei a um deles que, logo após o big bang, igual era a quantidade de matéria e de antimatéria – sim, meu papo sempre foi teórico, abstrato e chatíssimo –; que houve um processo de aniquilamento mútuo, restando, como refugo, um oceano de fótons e ínfima quantidade de matéria: esta de que nós somos feitos. Meu insólito interlocutor, com ar de espanto, disse: “Quer dizer que somos parte do patrimônio líquido do universo!”.
Noutra dessas “noites no século”, o mais feio e desengonçado deles – do tipo que, por mais caríssimas que sejam as roupas de griffe que vista, em vez de elegante fica só “enfeitado” – afirmou, jactando-se, estar namorando uma mulher casada. O único que acreditou passou-lhe um sermão: “Essa senhora” – nestes termos falou – “é um crédito indevidamente lançado no livro-caixa da sua vida. Estorne-a!”
Havia, ainda, o poeta da turma. Romântico – sim, empacou no romantismo –, costumava afetar profunda introspecção e melancolia (ou, como ele preferia chamar, tedium vitae), principalmente na frente de mulheres, entre as quais escolhia, para namorar, a mais “bandida”, só para ser corno (outra vez, sempre) o mais rápido possível, curtir aos prantos a dor de cotovelo e ter inspiração para escrever poemas — versos que recitava para outra musa “com cara de safada” num eterno retorno de dar piedade. Por sinal, ele lembrava muito aquele poema Elegia desesperada, em que Vinicius de Moraes roga a Deus que tenha piedade das meninas feiosas que, na adolescência, adquirem buço, dos que andam de ônibus, dos que empobreceram, dos práticos de farmácia que queriam mesmo ser médicos, dos ficcionistas frustrados que, para compensar, tornam-se ensaístas (poxa, o Vinicius foi muito cruel!) e, também, “muita (sic) piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta…”.
Pois, também bacharel em Contabilidade, às vezes, vagueando nas profundezas abissais do seu espírito, levantava-se da mesa, saía do bar e, na calçada (um cigarro no canto da boca, parecendo o Bogart) contemplava o firmamento infinito — contemplação à maneira contábil; isto é, ficava a “contar” as estrelas e com o cuidado de não deixar passar nenhuma célula falsa: “Uma, duas, três, quatro… não, aquilo é um avião… quatro, cinco, seis, sete…”.
Seu insight poético mais hilário e criativo, porém, foi na vez em que, agraciado não com um chifrezinho qualquer, mas com uma galhada do já extinto alce canadense (a maior que jaz registrada nos anais da zoologia), abraçou-me chorando e, entre soluços, desabafou: “Bulcão, minha autoestima nunca esteve com o passivo tão a descoberto!”. “Ó que bela metáfora!”, foi o que me saiu da boca. Ele, apesar do choro, abriu leve sorriso. “Obrigado…”, disse-me, agradecendo o elogio.
E por falar em poetas, estes, tanto os profissionais (isto é, os raríssimos que vivem do seu ofício literário) como os permanentemente desempregados (em cada esquina existem pelo menos doze) mantêm o cérebro operando, o tempo todo, no modo mágico-poético. Em tudo vêem metáforas e metonímias — e se rimarem, melhor. Um mundo, portanto, literalmente onírico e de tal modo fantástico que, estando o poeta em saias justas ou situações-limites, de seus atos e palavras podem surgir imagens as mais inusitadas e de uma criatividade que somente os deuses, “quando ainda crianças”, são capazes de manifestar. Conheço um caso bem ilustrativo. Não sei se devo contá-lo… Vou!
Meu saudoso amigo Francisco Moreira Júnior (“Bigo”, entre os mais íntimos), poeta (um dos mais criativos que já conheci), nos episódios maníacos do seu transtorno bipolar, perdia o controle sobre as pulsões eróticas do id. Em consequência disso, flagrei-o, num recanto escuro do campus do Benfica, dando o maior amasso na garota com quem eu estava “ficando” (aviso que, na época, eu ainda era solteiro!). Pareciam dois animais!… Bem, na verdade não — pelo menos não conheço nenhum animal que faça aquilo. A menina, morta de vergonha, limpou as mãos na calcinha e as levou ao rosto. Quanto ao Moreira, disse-me ele a seguinte pérola:“Bulcão, pelo amor de Deus entenda tudo isso no sentido figurado!”

Manuel Soares Bulcão Neto para o blogue Arte do Conceito  http://artedoconceito.blogspot.com/

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