Resenha publicada
originalmente, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em
25 de outubro de 2011, e no blogue do autor: Monte de Leituras
“Foi assim de repente, quando menos se esperava (em
plena tarde morna) o sol tornou-se pálido, para sumir logo em seguida. O povo ainda
não havia acabado de se assustar-ouvimos no meio da escuridão um bater de asas
atravessando o vilarejo, como se um bando de pássaros saísse em revoada. Um pouco
antes de os moradores da vila abandonarem suas casas em grande alvoroço, os
bichos já alarmavam o acontecido: galinhas cacarejavam, galos cantavam em
desespero, porcos fugiam pelas ruas atropelando as pessoas…
O relógio do mundo parecia ter
sido alterado, os sons se intensificavam mais e mais; e não havia quem não
gritasse ou corresse de um lado para o outro. Mulheres procuravam seus maridos,
mães chamavam pelos filhos, ninguém se entendia.
Alguém com voz desesperada
anunciou o fim do mundo: suas palavras ecoaram em outras bocas, e o
que se ouviu depois foi um desfiar de rezas e choros. Os mais agitados gritavam
o nome de Deus, pedindo ajuda; outros sussurravam um padre-nosso em meio
ao soluço intenso. A maioria andava de um canto a outro feito barata tonta.
(Estávamos apreensivos desde a
semana anterior ao acontecimento, quando a chegada de três grupos de
forasteiros fez com que todos saíssem para as ruas e corressem, admirados,
atrás dos automóveis, que pela primeira vez cortavam a poeira de nossas ruas.
Das três equipes somente uma falava de maneira compreensível, as outras duas
apenas trocavam entre si uns mungangos. De início se instalavam na praça da
matriz, armaram barracas de lona e começaram a abrir grandes caixas trazidas
nos automóveis [...] Com uma semana todos os aparelhos já estavam montados,
grandes canhões apontavam, de diversos cantos da praça, para o céu. Os mais
entendidos da vila, fingindo compreender as explicações dos invasores, tentavam
acalmar a maioria, que permanecia apreensiva com tudo aquilo. Antes que os
moradores dos povoados se acostumassem com os visitantes e suas extraordinárias
maquinas de apontar para o céu, o mundo escureceu pela primeira vez às três da
tarde.)
Mas também de repente, como tinha
escurecido, começou a clarear [...] Na praça, os estrangeiros davam pulos de
alegria e estouravam garrafas de espuma [...] os que falavam melhor tentaram,
em vão, explicar aos curiosos o que havia acontecido [...] porém não
souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou
a vila na escuridão.
No mesmo dia desmontaram os
aparelhos e foram embora…”
(de A passagem do dragão, de Pedro
Salgueiro)
“Na verdade, antes de mim, jamais se ouviu um relato
confiável a respeito desses supostos inimigos…”
(de A grande fogueira, idem)
Em 2006, em Dos
Valores
do Inimigo, Pedro Salgueiro fez uma seleção entre os textos curtos
que publicara até então (nas coletâneas O
Peso do Morto, O Espantalho e Brincar
com Armas). O conjunto assinalava um escritor de admirável
sobriedade e controle da narração, sintético e cheio de lampejos brilhantes,
mas traia igualmente certa timidez narrativa (que se sobrepunha ao talento
imaginativo), poucas vezes indo até o fim do que sugeria com suas histórias. O
adjetivo “curto” para os textos era tanto índice de qualidade quanto de
limitação[1].
Essa
oportunidade de rever seu percurso anterior permite valorizar ainda mais o
salto que Inimigos,
uma das obras de ficção mais notáveis publicadas no Brasil dos últimos anos,
representa. Salgueiro utilizou alguns dos incluídos na antologia citada,
juntando-os a outros (num total de 20) de altíssimo nível, fazendo um aliciante
misto de romance e de conto e nos propondo uma idéia de sertão completamente
desvinculada de quaisquer clichês ou personagens “típicos”.
As histórias
se referem à Papaconha, povoado cuja inquietante característica é não ser fixo.
Segundo o que corre no sertão, seus habitantes são os “inimigos” que estão
sempre de mudança, aproximando-se, e podem chegar e invadir a região (um
processo que leva gerações): “O boato corrente na região dava
conta da existência de um povo estranho, que pretendia invadir e saquear todos
os lugarejos, escravizar seus homens, aproveitar-se de suas mulheres e comer
suas criancinhas. Mas a distância que os separava era tanta que, se um bando
deles se dispusesse a andar até os vilarejos, certamente morreria no caminho, e
as poucas crianças que porventura os acompanhassem chegariam tão velhas que nem
forças teriam para contar as histórias do percurso”. Por isso, dissemina-se um sentimento
de expectativa, de angústia, de fim de mundo, “esse medo que
nos consome desde o começo dos tempos”.
Há quem
acredite (como o narrador de Um Batedor) que infiltrados de Papaconha ocultem-se
entre os moradores locais - os “inimigos” podem estar entre quem menos se
espera, como a esposa de Fronteira (o marido “cavou
trincheiras no jardim e montou um observatório no galho mais alto da ingazeira
do quintal”,
nem se dando conta de que o adversário “se infiltrara há muito tempo em
sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando
em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no
assoalho da sala enquanto ganhava a sua confiança. Se não olhasse para tão
longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas do fogo”).
Há quem se sinta
forasteiro e “inimigo” como o narrador de Descoberta, ou nostálgico, como
o de Madrugada
(um daqueles textos anteriores, nos quais a intuição certeira do grande
escritor cearense identificou as marcas desse universo de valores em choque,
sem que possamos decidir qual é o lado “certo”); há quem se perca pelo mundo e
acabe em povoados que podem ter a marca de Papaconha, e de qualquer forma são
quase experiências com alienígenas, como os narradores de Aleine, A grande aventura
e Perdido.
O
peculiaríssimo universo sertanejo de Pedro Salgueiro, a ambivalente tensão que
estabelece entre os pólos do atraso e da modernização, nos remete às parábolas
e fábulas de Kafka como, por exemplo, Uma
mensagem imperial ou Um
médico rural[2], um mundo onde as pegadas morais se
apagam, as certezas se dissolvem, a realidade se torna ameaçadora (e muitas
vezes cômica), como se também nos perdêssemos por trilhas inesperadas, sem que
haja um único elemento sobrenatural, como experimenta o marido atrás da esposa
desaparecida: “De repente, um medo tomou conta de mim… e disparei na mais apressada
carreira de que as minhas pernas foram capazes… Corri a madrugada inteira, subi
e desci serras, encontrei nova estrada—sempre me afastando. Hoje não me arrisco
a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em
meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que - enquanto
eu a procuro - muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela”. Tudo e todos se tornam
estranhos e absurdos. E a linguagem brilha, absolutamente irretocável,
nessa obra-prima (acho que já dá para arriscar essa avaliação ousada) da nossa
literatura atual.
[1] Já não tenho mais essa opinião. A leitura de
Pedro Salgueiro, aliás, está me demonstrando mais uma vez como é interessante e
absorvente acompanhar a “evolução”, por assim dizer, de um determinado universo
criador. No momento em que escrevi a espinha dorsal do texto acima, não havia
lido nem O peso do morto
nem Brincar com armas,
cuja leitura modificou consideravelmente os dados. A obra de Salgueiro é um
pouco como a sua cidade de Papaconha: nunca fixa, sempre movente, e
inquietante.
[2] Discordo, nesse ponto, de Miguel Sanches Neto, o
qual escreveu um simpático posfácio à edição da 7 Letras (Coleção Rocinante,
2007), em que afirma: “Se fosse para eleger um
parentesco literário, poderíamos dizer que a vila dos contos e a cidade móvel
chamada Papaconha [...] são desdobramentos das orbes fictícias de Italo Calvino
(As cidades invisíveis), o que
significa dizer que elas guardam as mesmas latitudes imaginárias, funcionando
mais como metáforas do que como pontos em um mapa.” A meu ver, isso passa
longe do coração do universo de Salgueiro, uma vez que—sem ser menos profundo
ou complexo—o universo de Calvino tem uma benignidade, uma deliberada leveza,
uma transparência, muito pouco afins de Papaconha e das vilas que aparecem em Inimigos, mais próximas de
Kafka, de José J. Veiga e Juan Rulfo, com um sentido mais trágico e “pesado” da
existência.
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