sábado, 11 de dezembro de 2010

"Sobre Relatórios e Artes", crônica de Tércia Montenegro para O POVO

Impressionante como as filas de banco são o palco da vida alheia! Parece que quanto mais fazemos cara antipática, mais nos tornamos ouvintes passivos. Não existe fumante passivo? Pois ouvinte passivo é aquele que ouve sem querer, porque afinal seria deseducado pôr as mãos sobre as orelhas. Entretanto, os assuntos algumas vezes são mais intragáveis que fumaça, quando não beiram o absurdo.


Naquela tarde, duas jovens à minha frente – após trocarem ideias sobre alisamento de cabelo e choque de queratina – passaram a falar de amor. A primeira, uma gordinha de rosa-choque, suspirou quando disse que ia completar um mês de namoro no dia 10. A outra invejou a sorte da companheira; falou que nos últimos tempos estava só “ficando”, e então a gordinha, talvez para atiçar o desgosto da amiga, revelou a surpresa que estava preparando para o amado:

– Eu fiz um relatório de cada dia do nosso namoro...


Não pude deixar de prestar atenção, afrontando as regras de privacidade de fila: arregalei os olhos como quem quer abrir mais os ouvidos. Felizmente, não fui percebida. Ela continuava:

– Para cada dia, contei o que tinha acontecido, se eu tinha telefonado para ele, se ele tinha me telefonado, o que nós conversamos. Se houve dia em que a gente não se falou, eu coloquei também...


Ninguém mais ao redor percebia a gravidade da situação: uma namorada tecia atas, descrições do comportamento de um rapaz, algo próximo de um arquivo de alta espionagem – e chamava isso de prova de amor.

– Assim, ele vai ver que estive sempre pensando nele, e vai adorar!



Tive que virar de costas, para não ver a cara de hipocrisia da outra garota (não podia ser que ela estivesse sinceramente invejando aquela criatividade!). Daí em diante, as duas amigas mudaram de assunto, mas eu fiquei mordida pela imaginação, pensando no pobre rapaz, na sua cara de susto quando abrisse o tal relatório.


Se ele tivesse um mínimo de juízo, pensaria: essa minha namorada é louca, não tem o que fazer, concentrou toda a vida em mim, e em apenas 30 dias analisa os meus atos milimetricamente – vou cair fora já!


Entretanto, outro dia li a declaração de um artista, que disse compor suas obras para vencer o tempo e ter a ilusão de que a existência podia ser traduzível. De repente, pensei se a gordinha de rosa-choque não agia assim. O relatório era uma forma de reviver cada dia do namoro, traduzindo a vida dos dois, ou a vida dela sob a presença dele, a importância dele. Vendo dessa maneira, ficava aceitável e até mesmo bonito. Mas isso dependia de eu estar pensando na situação em horário próximo ao da meia-noite, sob o luar. Naquela tarde, em plena fila de banco, realmente não me pareceu que um diário de namoro tivesse proximidade com as artes...

Um comentário:

  1. Tércia, querida, outro dia pesquisando presentes pela net encontrei um site com ideias de presentes, uma espécie de fórum. Me diverti muito! Vc não imagina o q existe de namorada surtada nesse mundo de meu Deus. Mas era cada absurdo q merecia ser encadernado em capa dura com o título COMO COLOCAR UM HOMEM P CORRER. kkkkkkk. Salvei em algum lugar do meu pc, p quem sabe um dia escrever sobre.
    Adorei a crônica em fila de banco, há quem leia, há quem encontre temas fabulosos p escrever. Já fiz um dia!
    Grande beijo!

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