domingo, 19 de dezembro de 2010

"Natais na Aquidabã", crônica de Ana Miranda para O POVO


Guardo algumas lembranças dos natais de minha infância, em Fortaleza, no nosso bangalô que ficava na avenida Aquidabã, entre coqueirais e estrelas. A mais sublime é a da nossa árvore de Natal, tão alta, ainda mais sob a perspectiva de uma menininha, e bastante enfeitada. Não é do meu feitio conservar nada por muito tempo, mas tenho até hoje uma lata com enfeites de Natal da árvore de minha infância, ternamente envolvidos em papel. Talvez eu os tenha guardado por sua fragilidade, são quase películas de vidro, em forma de alaúde, capela, sino, anjo, lampião... Todos os anos, abro essa lata com um sentimento estranho, uma espécie de alegria embebida em desalento e de sonho mergulhado em realidade, como se recuperasse um objeto perdido, que se tornou apenas uma miragem, e segurando-a com as mãos sentisse que não é a mesma a luz naquelas tintas, nem são os mesmos os olhos que as veem, nem as mesmas as mãos que as pegam. E a cada ano quebra-se mais um, mais um, o que torna minha plêiade mais preciosa e tênue.


O surpreendente da primeira árvore de minha infância eram uns apliques de metal postos nas pontas dos galhos, como pequenos candelabros em forma de flores, que suportavam velinhas brancas e finas, acesas todas elas antes da ceia, de uma em uma, num inefável ritual. Era preciso apagar as luzes da sala para a contemplação da árvore natalina, da luz natural e trêmula, mais poética do que as mimosas lampadinhas de hoje. Assim, vejo como a lembrança é assombrosa, capaz de manter presentes as coisas do passado, pois não tenho mais nenhum desses candelabrinhos, mas é como se os tivesse, pois me recordo deles, ainda mais, do sentimento que me causavam. Aquela árvore dava toda a atmosfera da noite de Natal, mais que nossos vestidos novos de renda engomada ou nossos sapatos novos de verniz, mais que a mesa posta com iguarias e arranjos. Não lembro o que ceávamos, talvez o prato principal fosse mesmo o peru com frutas, nozes, avelãs, pois minha mãe, para casar, teve de cursar a Escola Doméstica de Natal, no Rio Grande do Norte, e lá aprendeu as receitas do Natal europeu. Mas as comidas não deviam ser importantes para mim, pois delas eu nada lembro a não ser um nebuloso bolo recoberto por açúcar cristal. Lembro do presépio, também vagamente, tenho dele um dos anjos em porcelana branca e de cores suaves. Ou de estar no colo da minha adorada babá, Odete, e dos beijos, abraços e presentes que ela me dava nos natais: um broche em forma de besouro, um porta-joias em estanho, forrado de veludo por dentro, com meu nome gravado. Lembro dos presentes de Papai Noel, claro, desde o momento intenso em que o embrulho ia sendo aberto e o brinquedo, revelado! Uma boneca! Ou uma casa com os móveis, na escala da fantasia de uma criança. Inesquecível casa! Aqui na Prainha, num ano desses dei três caminhõezinhos de presente para três meninos pobres. Eles ficaram abraçados aos embrulhos, sem abri-los, uma das cenas mais comoventes.


Sempre houve algo a ensombrear os meus natais: saber que nem todas as crianças ganhavam presentes. Isso me foi dito com tal sentimento que jamais se apagou em mim. Então o Papai Noel não era justo, mesmo sendo bom. Natal sempre me trouxe a lembrança de órfãos, abandonados, esquecidos, crianças maltrapilhas e famintas olhando pelas vitrines o mundo inacessível das luzes, das guloseimas. Não sei quando foi que li o livrinho de Dickens, Cântico de Natal, a história daquele homem avarento que recebe a visita dos três espíritos, e revejo o rosto terrível das duas crianças chamadas Miséria e Ignorância. Triste livro, mas esperançoso.


Hoje tento fugir ao caráter mundano da festa. Aprendi com meu amigo, frei Betto. Houve um tempo em que meus natais eram celebrados por ele. Em tudo nos orientava, mandava com antecedência as receitas, as instruções, os textos, as músicas. Chegava cedo, pois ele mesmo cozinhava, a família toda em volta, ajudando a descascar batatas ou cortar cebolas, enquanto minha irmã ensaiava as canções com as crianças que entoavam suas vozes de anjos. Fainas de comover qualquer coração de pedra. Na hora da festa nos reuníamos em torno de uma mesa com toalha branca, um pão e um cálice com vinho, apenas. O texto escolhido por frei Betto era lido, frase por frase, pelas pessoas em torno da mesa. Depois quem quisesse dizia uma palavra de graças. E cada um de nós comia do pão e tomava do vinho. Ao final, era posta uma mesa com um ou dois pratos, sem excessos. Embrulhos de presentes, apenas para as crianças.



ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias e Dias, Yuxin, entre outros romances editados pela Companhia das Letras.

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