sábado, 11 de dezembro de 2010

"As Costureiras de Mamãe", crônica de Ana Miranda para O POVO



A jovem Rachel de Queiroz escreveu uma poesia lírica, mas amarga, sobre uma costureira. Via-a sempre passar à sua porta, “sombrinha aberta, ligeira, sob o sol quente... que importa?”. Rachel lamenta aquela sina de trabalhar em casa alheia, pois a costureira não tinha máquina sua, e ganhava tão pouco que mal dava para ajudar a mãe doente. Os dedos picados de agulhas, as orlas escuras nos olhos rasos d’água, dos tantos serões na faina dos caseados... No entanto, ia alegremente.


Desde criança tive as costureiras em minha vida como personagens quase mágicas, capazes de transformar embrulhos em suntuosos trajes de sonhos, prosa cotidiana em fantasia poética. Viviam em nossa casa moças de que não recordo os rostos, mas sim, seus dedos, dedais, agulhas, e gestos e trabalhos, seus cantos e algaravias. Lembro-me do nome de uma delas, a mais exímia, uma verdadeira artista: dona Zuila, o mesmo nome de minha mãe. Com seus cabelos já grisalhos, dona Zuila fazia especialmente os vestidos de baile, em algum tecido precioso sobre o qual bordadeiras trabalhavam com capricho, criando um espetáculo de gradações e lampejos. Os vestidos de baile eram tão maravilhosos que eu imaginava ser a minha mãe uma rainha. E era assim que ela talvez se sentisse naqueles momentos em que se paramentava para ser recebida nos salões, vendo como por encanto apagarem-se todas as agruras da vida, as barreiras, as humilhações, as desesperanças, todo o passado, enfim, que talvez retornasse ao adentrar a festa.


Mamãe colecionava rendas as mais preciosas, que rendeiras vinham lhe oferecer à porta, e mantinha “cadernetas” nas lojas do Centro, onde suas costureiras iam pegar amostras para que se escolhesse o tecido mais adequado a tal ou qual vestido. As costureiras faziam as compras da metragem necessária, dos aviamentos, também do pano para forro. Trabalhavam em nossa casa, na máquina de costura que não possuíam, instalada num atelier nos fundos do quintal. Os moldes de papel eram desdobrados em cima da mesa de refeições sobre a qual estendiam o pano; calculavam, mediam, cortavam as peças. A nossa sala de jantar ficava animada, com aquelas moças e suas tesouras e fitas métricas, que ali mesmo alinhavavam as partes umas nas outras, enquanto bordadeiras trabalhavam com linhas sedosas e pires cheios de contas, entre sianinhas douradas, rosáceas, miosótis, campânulas, transparências para detalhes...


Às vezes, sobre uma saia rodada, em círculo elas trabalhavam, num alegre e repetitivo balé dançado com as mãos. Enquanto isso, conversavam, riam, escutavam a vitrola, cantavam, comiam tapiocas e tomavam café. Experimentávamos várias vezes as roupas que elas faziam: vestidos do dia a dia ou para domingos ou aniversários, para nós, crianças; ou para nossa mãe, que iam sendo ajustados detalhe por detalhe, sublinhando as curvas do corpo. Os meus vestidos e os de minha irmã tinham pequenas diferenças, ora na cor, ora num tipo de renda da gola, mas havia a intenção de parecerem iguais. Eram preciosos, posso ver pelas fotografias que nos restaram, com minuciosas rendas e nervuras, apliques, todo tipo de enriquecimento que o vagaroso tempo e o orgulho da destreza permitiam. Como minha mãe costurara seus próprios vestidos, quando era pobre e esquecida no interior, antes de casar, tinha uma boa noção do molde, do corte, da costura em si, dos acabamentos, e ela mesma desenhava seus vestidos de festa, feitos então com uma frequência talvez semanal. Vejo nas fotos como eram bonitos e trabalhados. Tenho uma roda de tecido rebordado que foi um dia a saia de um traje de baile, uma coisa realmente bela, que se tornou uma blusa para minhas ocasiões festivas.


Talvez aquelas moças saíssem dali com o dinheirinho na bolsa, fossem comprar o remédio da mãe doente, ou pagar o aluguel da casa modesta, e tivessem a tristeza de que fala Rachel em sua sensibilidade de poetisa mocinha. Talvez se sentissem humilhadas por não terem a própria máquina de costura para trabalharem em casa, talvez tivessem mesmo os olhos fundos e ornados por orlas escuras, e descessem a ladeira, tristes e silenciosas, lamentando a pobreza. Mas eram trabalhadoras, produtivas e talentosas, tudo faziam com o maior esmero, eram artistas; afinal, há um mesmo espírito na construção de um vestido de baile e na de uma catedral, ou na textura sinuosa de uma escrita, onde há espaço para se abrigar “gesto e movimento, graça e malignidade, oferta e ironia, langor e negaceio, dando todo o pano à desmedida inventividade”, dela, a costureira.



ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.

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